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17 de Maio de 2024

Jurisprudência STJ - Direito civil e da criança - Negatória de paternidade socioafetiva voluntariamente reconhecida proposta pelos filhos do primeiro casamento

EMENTA

DIREITO CIVIL E DA CRIANÇA. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA VOLUNTARIAMENTE RECONHECIDA PROPOSTA PELOS FILHOS DO PRIMEIRO CASAMENTO. FALECIMENTO DO PAI ANTES DA CITAÇÃO. FATO SUPERVENIENTE. MORTE DA CRIANÇA.1. A filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança.2. A superveniência do fato jurídico representado pela morte da criança, ocorrido após a interposição do recurso especial, impõe o emprego da norma contida no art. 462 do CPC, porque faz fenecer o direito, que tão somente à criança pertencia, de ser abrigada pela filiação socioafetiva.3. Recurso especial provido. (STJ �- REsp nº 450.566 �- RS �- 3ª Turma �- Rel. Min. Nancy Andrighi �- DJ 11.05.2011)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do (a) Sr (a). Ministro (a) Relator (a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora. Impedidos os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina. Dr (a). JOSÉ ROLLEMBERG LEITE NETO , pela parte RECORRENTE: G B B.

Brasília (DF), 03 de maio de 2011 (Data do Julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI�- Relatora.

RELATÓRIO

Cuida-se de recurso especial interposto por G. B. B. e outros, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ/RS.

Ação (inicial às fls. 2/5): “negatória de paternidade”, proposta pelos recorrentes, em face de O. A. B., M. B. F. e F. F. B., o último menor nascido em 16.1.1993, representado pela sua mãe, a segunda ré (M. B. F.). A ação foi distribuída em 12.7.1996.

Os autores, filhos do primeiro casamento do réu O. A. B., insurgem-se contra o reconhecimento voluntário da paternidade do menor F. F. B., mediante escritura pública lavrada em 25.10.1995, no Tabelionato da Comarca de Encruzilhada do Sul, com as respectivas anotações à margem do assento de nascimento da criança, efetuadas em 31.10.1995. Afirmam que M. B. F. e o filho, com apenas poucos meses de idade, passaram a viver na propriedade rural de O. A. B. Sustentam que

naquele tempo sequer era cogitada a paternidade de O.; todos diziam, e até mesmo a mãe, mulher de todos os homens, que a criança era filha de pessoa conhecida pelo apelido de 'XUXA', motorista de transporte coletivo de passageiros que fazia a ligação rodoviária entre esta cidade [Encruzilhada do Sul] e o Vau dos Prestes (fl. 3 �- com adaptações).

Mencionam o ajuizamento de ação de interdição de O. A. B., a qual alegam tramitar na mesma Comarca, em razão da idade avançada e débil estado de saúde a abalar o discernimento do interditando. Aduzem, como causa de pedir, a falsidade do registro de reconhecimento da paternidade, por não corresponder com a verdade biológica. Asseveram que o próprio O. A. B. segredou a sua filha R. B. Q., uma das autoras desta ação, que o menor F. não era seu filho, mas que ainda assim o reconheceria. Postulam, por fim, a anulação da escritura pública de reconhecimento de paternidade, bem como a retificação do assento de nascimento de F. F. B.

Emenda da inicial (fl. 23): em razão do óbito de O. A. B., ocorrido em 30.7.1996, quando contava com 85 anos de idade, sem que tenha ocorrido a citação, os autores desistem da ação com relação ao falecido pai.

Contestação (fls. 28/34):alega a mãe do menor e ex-companheira do falecido, que com ele manteve união estável por mais de 5 anos, época em que ambos já se encontravam separados de seus primeiros cônjuges, e que da união resultou o filho F. F. B., assim voluntariamente reconhecido por O. A. B., o que relata ter sido

um passo espontâneo e querido pelo próprio pai que reconheceu a paternidade, juntamente com sua companheira de todas as horas, alegres e sofridas pela doença e tantas incompreensões que resultaram no inexplicável e inconcebível ajuizamento de várias ações, no Foro local, pelos filhos, ora autores e ex-cônjuge (fls. 30/31).

Sustenta a irrevogabilidade do reconhecimento da paternidade, nos termos do art. da Lei 8.560, de 1992, a prescrição da pretensão dos autores, bem como sua ilegitimidade ativa.

Assevera que

se dedicou, com todas as suas forças, em prol da saúde, do bem estar e da higiene de O. A. B., pai dos autores, o que representa uma flagrante e injusta ingratidão àquela que no convívio do lar, sob o mesmo teto, foi quem, por último, atravessou noites indormidas (sic) e deu banho, limpou-o, enfim, cuidou de sua higiene. (...) Afinal, ele procurou, mas encontrou quem lhe cuidasse com extrema dedicação até o dia de seu falecimento,

vindo a lamentar que o companheiro tenha “morrido na miséria, por absoluta falta de numerário para sustentar-se com alimentos e medicamentos” (fls . 33/34), sem, portanto, o amparo dos filhos, autores da ação.

Decisão interlocutória (fls. 46/47): o i. Juiz afastou as preliminares de ilegitimidade ativa e de prescrição, dando por saneado o processo.

Manifestação de M. B. F. (fls. 79/81): pela desnecessidade de realização de exame de DNA.

Parecer do MP/RS (fls. 108/113): o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul opinou pelo acolhimento da preliminar de ilegitimidade ativa e consequente extinção do processo, sem apreciação do mérito; não sendo acolhida a preliminar, opinou pela improcedência do pedido, com as seguintes considerações:

O. B., separado há algum tempo da esposa e litigando em juízo (em vários processos) com os filhos havidos na constância do casamento, dedicou os últimos dias de sua vida à nova família e principalmente ao filho caçula, tratando-o como tal, reconhecendo-o como tal e contemplando-o em testamento. Em outras palavras: cercado de dúvidas quanto aqueles que até então tinha como filhos, optou por aquela que talvez fosse a última certeza que lhe restava: a certeza de que F., sendo ou não seu filho biológico, era seu filho de coração e como tal merecia ser reconhecido legalmente (fl. 112 �- com adaptações).

Sentença (fls. 115/120):ao entendimento de que cumulativamente à negatória de paternidade há pedido de anulação da escritura pública de reconhecimento de filiação, por falsidade ideológica, o i. Juiz reconheceu a legitimidade dos autores, afastando assim, a preliminar de carência de ação, bem como de prescrição. Quanto ao mérito, julgou improcedente o pedido, ante a ausência de prova de falsidade no registro de reconhecimento de paternidade, lavrado mediante escritura pública, considerando que “existe manifestação de vontade livre, válida e sem vícios, de reconhecer como filho criança que se tem como filho”, ressaltando que “o interesse do menor deve ser sempre priorizado, pelo princípio da proteção dos menores, que norteia toda a legislação nacional, em especial o direito de família” (fl. 119).

Acórdão (fls. 177/203):em contraposição ao parecer do MP/RS (fls. 164/170), por maioria, o TJ/RS rejeitou a preliminar de ilegitimidade ativa e deu provimento ao apelo interposto pelos recorrentes, julgando, por consequência, prejudicado o apelo adesivo da recorrida, ao entendimento de que a

inexistência de escritos e mesmo da posse de estado, levam à convicção de ter sido falsa a declaração do pai, que reconheceu o filho através de escritura pública, pois há prova testemunhal bastante no sentido de que a gravidez da mãe do menor teria sido resultado de relacionamento com outro homem, e não com aquele que reconheceu o produto de seu ventre como sendo filho seu

e de que

a negativa em se submeter a uma perícia pelo método do DNA, se constitui em um indício relevante contra a verdade das alegações da parte que se recusa ao exame, negando-se a uma prova que serviria para confirmação da paternidade, constante do registro civil (fl. 181).

Acórdão em embargos infringentes (fls. 243/273): também em contraposição ao parecer do MP/RS (fls. 236/241), por maioria, o TJ/RS deu provimento ao recurso do menor representado por sua mãe, sob a conclusão de que prevalece a paternidade socioafetiva, nos seguintes termos: “não ofende a verdade o registro de nascimento que espelha a paternidade socioafetiva, mesmo que não corresponda à paternidade biológica” (fl. 248).

Embargos de declaração (fls. 297/333): interpostos pelos recorrentes, foram parcialmente acolhidos, também por maioria, para reconhecer mero erro material, sem modificação do julgado, com republicação do acórdão dos embargos infringentes às fls. 309/333.

Recurso especial (fls. 338/354): interposto sob alegação de ofensa aos arts. 530 do CPC; 355 do CC/16; 25 e 26 da Lei n.º 8.069, de 1990 (ECA); 242 e 299 do CP, além de dissídio jurisprudencial.

Recurso extraordinário (fls. 356/366).

Contrarrazões (fls. 568/574).

Juízo Prévio de Admissibilidade (fls. 589/592): o TJ/RS admitiu o recurso especial pela alínea “a” da norma autorizadora, determinando a remessa dos autos ao STJ.

Em 19.11.2002, foram os autos conclusos ao Ministro Antônio de Pádua Ribeiro (fl. 600), remetidos os autos à redistribuição, em 15.6.2005, em razão do disposto no art. 103-B, § 5º, da CF/88 (redação da EC n.º 45/2004).

Atribuído inicialmente ao Ministro Ari Pargendler, em 29.6.2005, houve redistribuição dos autos ao Ministro Vasco Della Giustina, em 21.1.2009 (fl. 606 �- v.), que declarou sua suspeição, nos termos do art. 135, parágrafo único, do CPC (fl. 607).

Conclusos os autos a esta relatoria em 27.5.2009, foram encaminhados à Douta Subprocuradoria-Geral da República, em 5.8.2009 (fl. 611).

Parecer do MPF (fls. 613/616): o Parquet apresentou parecer da lavra do i. Subprocurador-Geral da República, Antônio Fonseca, opinando pelo não conhecimento do recurso especial.

Conclusos os autos com parecer do MPF, em 17.9.2009 (fl. 617), foi incluído o processo na Pauta do dia 1º.12.2009, conforme publicação no DJe em 25.11.2009.

Petição dos recorrentes (fls. 619/620): noticiando o falecimento do menor F. F. B., ocorrido em 20.6.2004, quando contava com 11 (onze) anos de idade, conforme certidão de óbito à fl. 625.

Decisões: foi ordenada a suspensão do processo (fl. 628) e posterior expedição de carta precatória ao Juízo de origem (fl. 632), oficiando-se o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, tudo para fins de que se procedesse à substituição processual do menor falecido, F. F. B., nos termos do art. 43 do CPC, com o devido acompanhamento do Parquet na condição de custos legis, para que, ao final, tenha continuidade o julgamento deste recurso especial. Todavia, ante a inércia das partes quanto à regularização do polo passivo, foi determinada a devolução dos autos à origem (fl. 652).

Petição de M. B. F., mãe da criança (fls. 656/657): requereu, valendo-se de expediente avulso porque os autos encontravam-se na origem, sua habilitação para fins de substituição processual e devida regularização do polo passivo na condição de sucessora do menor falecido.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

I. Da delimitação da lide e de seus contornos fáticos

Cinge-se a lide a analisar se a ausência do vínculo biológico �- e a ciência dessa ausência �- em reconhecimento voluntário de filho é elemento capaz de revogar a livre manifestação da vontade, com a peculiaridade de já ter ocorrido o óbito daquele que reconheceu a paternidade da criança, com a qual estabeleceu relação socioafetiva, conforme descrito no acórdão recorrido, sob base fática infensa a reexame desta Corte.

A criança, contudo, com 11 (onze) anos de idade veio a falecer de maneira trágica no curso do processo, o qual foi suspenso, retornando conclusos os autos após a regular substituição processual no polo passivo, pela mãe do menor e ex-companheira do pai.

Sustentam os recorrentes, filhos do primeiro casamento de O. A. B., que este manteve relacionamento com a mãe de F. F. B., em cuja constância reconheceu o menor como filho, mesmo ciente da ausência do vínculo biológico. Pugnam pela anulação da escritura pública em que se lavrou o reconhecimento da paternidade, por não condizer com a verdade genética, bem como a retificação do assento de nascimento do menor, para dele extirpar o nome paterno.

Em suas razões recursais, alegam: (i) que o voto vencido em apelação não tratou da paternidade socioafetiva, o que importa em violação ao art. 530 do CPC; (ii) que o reconhecimento da socioafetividade viola as formas previstas de família substituta, em ofensa aos arts. 25 e 26, do ECA, os quais tratam da família natural; (iii) que apenas o filho biológico pode ser assim reconhecido, de modo que houve afronta ao art. 355 do CC/16 (correspondência: art. 1.607 do CC/02); (iv) que o reconhecimento da paternidade, na forma em que ocorreu, constitui crime contra o estado de filiação e de falsidade ideológica, violando, respectivamente, os arts. 242 e 299 do CP.

A fim de delimitar a lide, pinço do acórdão recorrido, as seguintes considerações dos votos proferidos pelos Desembargadores que compuseram o entendimento majoritário:

O DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (RELATOR):

Nestas condições, não vislumbro dúvida razoável de que o falecido O. nutria sentimento paternal pelo menino F., e que este desfrutava por inteiro da posse do estado de filho, o que é confirmado até mesmo pelas testemunhas trazidas aos autos pelos requerentes.

Como se constata na prova testemunhal antes colacionada (1) O. tratava F. como filho ('tractatus'), (2) essa condição era conhecida por terceiros ('fama ou reputatio') e, ademais, (3) F. usava o apelido do genitor ('nomen'). Portanto, com repetida vênia da douta maioria do v. acórdão embargado, tenho como inequívoca a caracterização da POSSE DO ESTADO DE FILHO, que legitima, no caso, o reconhecimento da paternidade socioafetiva (fls. 319/320 �- com adaptações).

O DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES:

(...) adiro integralmente à teoria da paternidade socioafetiva (fl. 321).

A Desª MARIA BERENICE DIAS:

A filiação está reconhecida, - reconhecida como sócio-afetivamente �- e, como tal, não pode ser desconstituída pelos outros.

Bem distinguiu o Relator a inadequação da terminologia usada pelos autores na demanda para a finalidade buscada. E, aqui, louvo o Relator, que, na apreciação deste processo, se socorreu da moderna doutrina que insere no Direito de Família, os vínculos afetivos como suficientes para gerarem seqüelas de ordem jurídica (fl. 322).

O DES. RUI PORTANOVA �- Estou acolhendo os embargos e considero interessante a questão.

Preciso revelar esse meu convencimento porque, na medida em que o pai negava �- foi o que trouxe o notório advogado, ao trazer uma apreciação completa do depoimento �- a paternidade biológica do filho, em mim, pode ser uma deficiência, reforçava a idéia de que realmente ele fez um reconhecimento por causa de uma filiação socioafetiva.

Então, se ele negava, como negava mesmo, a mim mais convence, porque, vejam, aqui o conhecimento funciona numa lógica um tanto inversa. Não estamos falando de uma forma positivista, legalista e mecanicista de ver o registro; estamos tentando trazer uma questão que não está no plano da razão e da matemática, que está no plano da afeição.

E, se eu digo que esse menino não é o meu filho e, mesmo assim, vou lá e digo que é meu filho para fins registrais, então, estou dizendo que ele, apesar de não ser biologicamente meu filho, ele é meu filho de criação. Ele tem a posse de estado de filho, e por isso o estou reconhecendo.

Vejam como a mim toca diferente �- certamente tenho uma deficiência por causa dessa situação �- mas, em mim, a tentativa de trazer uma prova contra a minha convicção me faz exatamente o contrário, reforça a idéia de que estamos diante de uma paternidade socioafetiva, a despeito do tempo, aqui não se conta tempo, conta-se afeto, e afeto é uma questão de intensidade e não uma questão temporal (fls. 331/332).

II. Do prequestionamento e do dissídio jurisprudencial

As matérias jurídicas versadas nos arts. 530 do CPC, 242 e 299 do CP, não foram apreciadas pelo TJ/RS no acórdão recorrido, o que impede a análise da temática inserta nos referidos dispositivos legais.

No tocante ao dissídio jurisprudencial, que se procurou demonstrar apenas acerca da alegada violação ao art. 530 do CPC, não foi comprovado nos moldes legais, o que obsta a análise do recurso especial pela alínea “c”.

Contudo, o prequestionamento dos arts. 355 do CC/16 (correspondência: art. 1.607 do CC/02), 25 e 26, do ECA, abre a via do debate nesta seara especial, do que passo, portanto, à análise do mérito recursal.

III. Do reconhecimento da paternidade socioafetiva e do fato superveniente (arts. 355 do CC/16, 25 e 26, do ECA)

Sob a ótica indeclinável de proteção à criança, do cenário fático descrito no acórdão impugnado subjaz a ausência de vício de consentimento na livre vontade manifestada pelo pai que, mesmo ciente de que o menor não era a ele ligado por vínculo de sangue, reconheceu-o como filho, em decorrência dos laços de afeto que os uniram.

Tudo isso, para fins de salvaguardar o regular desenvolvimento de uma criança, que foi inserida num contexto construído com base no cuidado e na afetividade, demonstrando-se, assim, inequivocamente, a existência de vínculo familiar.

Nessa ordem de ideias, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser amplamente reconhecida e amparada no âmbito jurídico.

Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e na definição da personalidade da criança.

E a identidade dessa criança, resgatada pelo afeto, não poderia ficar à deriva em face das incertezas, instabilidades ou até mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos familiares.

Ressalta-se, com base em diversos julgados desta Corte, que a garantia de busca da verdade biológica deve ser interpretada de forma a evitar que seja subvertida a ordem e a segurança que se quis conferir àquele que investiga sua identidade biológica, nos termos do art. 27 do ECA. O viés da norma deve ser atentamente observado pelo intérprete, notadamente porque o bem da vida que subjaz tutelado deve ser o mesmo que o legislador concebeu ao redigir o texto legal.

Sob essa perspectiva já foi estabelecido por este Órgão Colegiado, que

nas questões em que presente a dissociação entre vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões (REsp 833.712/RS, de minha relatoria, DJ 4.6.2007).

Destacam-se, ainda, dois julgados de minha lavra, nos quais a paternidade socioafetiva foi mantida, ante a ausência de vício de consentimento na manifestação da vontade de reconhecer a filiação, com as seguintes peculiaridades:

a) REsp 932.692/DF (DJe 12.2.2009): mesmo diante da inequívoca ciência acerca da ausência de vínculo biológico, o pai reconheceu voluntariamente a paternidade, ato que posteriormente pretendeu anular, mediante a realização, naquele processo, de dois exames de DNA que excluíam a paternidade biológica.

b) REsp 1.067.438/RS (DJe 20.5.2009): mera dúvida do pai “registral” motivou o ajuizamento da negatória de paternidade. Não houve exame de DNA.

Por fim, trago à colação o REsp 1.000.356/SP (DJe 7.6.2010), no qual foi reconhecida a maternidade socioafetiva, com base na irrevogabilidade de seu reconhecimento voluntário, por força da ausência de vício na manifestação da vontade, ainda que procedida em consciente descompasso com a verdade biológica. Prevaleceu, naquela hipótese, a ligação socioafetiva construída e consolidada entre mãe e filha, que tem proteção indelével conferida à personalidade humana, por meio da cláusula geral que a tutela e encontra respaldo na preservação da estabilidade familiar.

Todavia, na hipótese específica dos autos, a superveniência do fato jurídico representado pela morte da criança, ocorrido após a interposição do recurso especial, impõe o emprego da norma contida no art. 462 do CPC, porque faz fenecer o direito, que tão somente à criança pertencia, de ser abrigada pela filiação socioafetiva.

Em semelhança, cita-se julgado da lavra do i. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 22.3.2011, no qual foi considerado reconhecimento de união estável posterior à interposição de recurso especial, para fins de excluir parente colateral do inventário. Segue a ementa:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO SUPERVENIENTE. INCIDÊNCIA DO ART. 462 DO CPC. POSSIBILIDADE. ART. , INCISO III, DA LEI N.º 8.971/94. AUSÊNCIA DE ASCENDENTES E DESCENDENTES DO DE CUJUS. COMPANHEIRO. TOTALIDADE DA HERANÇA.

1. O art. 462 do CPC permite, tanto ao Juízo singular como ao Tribunal, a análise de circunstâncias outras que, devido a sua implementação tardia, não eram passíveis de resenha inicial.

2. Tal diretriz deve ser observada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, porquanto o art. 462 não possui aplicação restrita às instâncias ordinárias, conforme precedentes da Casa.

3. Havendo reconhecimento de união estável e inexistência de ascendentes ou descendentes do falecido, à sucessão aberta em 28.02.2000, antes do Código Civil de 2002, aplica-se o disposto no art. , inciso III, da Lei n.º 8.971/94, circunstância que garante ao companheiro a totalidade da herança e afasta a participação de colaterais do de cujus no inventário.

4. Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 704637/RJ).

Merece reforma, portanto, o acórdão recorrido, para que seja restabelecido o julgado proferido em sede de apelação, no sentido de “desconstituir a paternidade decorrente da falsa declaração, com o consequente cancelamento do registro do menor” (fl. 201).

Forte nessas razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para restabelecer o acórdão proferido em sede de apelação, nos termos acima declinados.

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