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1 de Maio de 2024

STJ Abr23 - Aditamento de Denuncia Inépta por ordem do Judiciário - Nulidade - Ferimento ao Sistema Acusatório

ano passado

Decisão Monocrática

HABEAS CORPUS Nº 777395 - SC (2022/0326118-1)

RELATOR : MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK

DECISÃO

Cuida-se de habeas corpus substitutivo de recurso, com pedido liminar, impetrado em benefício de XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA no julgamento do HC n. 5036670- 40.2022.8.24.0000/SC.

Extrai-se dos autos que os pacientes tiveram a prisão preventiva decretada em 10/3/2022, em consonância com a representação da Autoridade Policial, tendo os mandados de prisão sido cumpridos em 23/3/2022 (Anderson) e 28/3/2022 (Leonardo).

Em 31/3/2022 os agentes foram denunciados pela suposta prática do art. 121, § 2º, II e IV, c/c o art. 29, caput , ambos do Código Penal, e no art. 244-B, § 2º, da Lei n. 8.069/1990 (homicídio qualificado em concurso de pessoas e corrupção de menor).

O Juízo de primeiro grau determinou que o Ministério Público emendasse a denúncia, nos termos do art. 321 do CPC (fls. 22/24). Assim, em 6/4/2022, o Parquet aditou a denúncia oferecida, mantendo as imputações anteriores. Em 10/4/2022 o Magistrado singular recebeu a exordial acusatória.

Irresignada, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de origem, o qual denegou a ordem nos termos do acórdão que restou assim ementado:

HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. PACIENTES DENUNCIADOS PELA POSSÍVEL PRÁTICA DOS CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO POR MOTIVO FÚTIL E MEDIANTE RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA (ARTIGO 121, § 2º, INCISOS II E IV, COMBINADO COM O ARTIGO 29, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL), E CORRUPÇÃO DE MENORES (ARTIGO 244-B, § 2º, DA LEI N. 8.069/1990).

- TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE PORQUE NOS AUTOS DE ORIGEM EXISTEM ELEMENTOS SUFICIENTES QUE REVELAM, EM TESE, A PARTICIPAÇÃO DOS PACIENTES NOS CRIMES DESCRITOS NA DENÚNCIA, RESULTANDO, DAÍ, A NECESSIDADE DE AGUARDAR-SE A INSTRUÇÃO CRIMINAL PARA VIABILIZAR A CONCLUSÃO SOBRE OS PORMENORES DA OCORRÊNCIA, OBSERVADO O DEVIDO PROCESSO LEGAL, O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA.

- NULIDADE PROCESSUAL DIANTE DA NÃO REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. NÃO OCORRÊNCIA. O ATO FOI REALIZADO E MESMO QUE NÃO TIVESSE OCORRIDO, A AUSÊNCIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NÃO JUSTIFICA, POR SI SÓ, A REVOGAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR UMA VEZ ATENDIDOS OS REQUISITOS AUTORIZADORES DO ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (STF, HC N. 196947/MG, REL. MIN. MARCO AURÉLIO, J. 24/02/2021).

- INÉPCIA DA DENÚNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS DO ARTIGO 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. A EXORDIAL APONTA A EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS ROBUSTOS E SUFICIENTES DE QUE OS PACIENTES, EM TESE, COM ADESÃO E COLABORAÇÃO MORAL E FÍSICA, PORQUE SE APROXIMARAM DA VÍTIMA PARA ACUÁ-LA E AGREDI-LA, CONTRIBUÍRAM DOLOSAMENTE PARA QUE O CODENUNCIADO MATEUS JEFFERSON PIVA SACASSE UMA ARMA DE FOGO E DISPARASSE CONTRA IRINEU MARTTINI JÚNIOR, QUE VEIO A ÓBITO, CARACTERIZANDO A PRÁTICA DO DELITO PREVISTO NO ARTIGO 121 DO CÓDIGO PENAL, E QUE, NA COMPANHIA DE TODOS, PARTICIPANDO DO ENTREVERO, ESTAVA O ADOLESCENTE TIAGO, DE 17 (DEZESSETE) ANOS, FAZENDO SUBSUMIR POSSIVELMENTE TAMBÉM O CRIME DE CORRUPÇÃO DE MENORES (ARTIGO 244-B DA LEI N. 8.069/1990). DESTA MANEIRA, VERIFICANDO QUE A DENÚNCIA DESCREVE OS FATOS E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS, E PERMITE QUE, NO ÂMBITO DA AÇÃO PENAL, OBSERVADO O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA, SEJAM ELUCIDADOS TODOS OS ASPECTOS ENVOLVIDOS NO EVENTO E ASCENDAM CLARAS AS TESES SUSTENTADAS PELA DEFESA TÉCNICA DOS PACIENTES E DOS OUTROS CODENUNCIADOS, NÃO HÁ SE FALAR EM INÉPCIA DA INICIAL.

- NULIDADE PROCESSUAL PELA DETERMINAÇÃO, DE OFÍCIO, DE EMENDA DA INICIAL. NÃO OCORRÊNCIA. AO INVÉS DE INDICAR PARCIALIDADE A MEDIDA VISOU JUSTAMENTE GARANTIR A EFETIVAÇÃO DO CONTRADITÓRIO, PERMITINDO QUE A DEFESA POSSA REBATER A NARRATIVA APRESENTADA PELO ÓRGÃO ACUSATÓRIO E TODOS SEUS MEANDROS. NÃO HÁ SE FALAR NA PRETENSA NULIDADE PORQUE NÃO FOI DEMONSTRADO O EFETIVO PREJUÍZO PARA A DEFESA. "COM EFEITO, É CEDIÇO QUE O RECONHECIMENTO DE NULIDADES NO CURSO DO PROCESSO PENAL, SEJA ABSOLUTA OU RELATIVA, RECLAMA UMA EFETIVA DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO À PARTE, SEM A QUAL PREVALECERÁ O PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS POSITIVADO PELO ART. 563 DO CPP (‘PAS DENULLITÉ SANS GRIEF’)" (STJ, AGRG NO RHC N. 162.609/BA,REL. MIN. RIBEIRO DANTAS, J. 09/08/2022).

- EXCESSO DE PRAZO PARA FORMAÇÃO DA CULPA. NÃO OCORRÊNCIA. A QUESTÃO DO EXCESSO DE PRAZO DEVE SER ANALISADA À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE, LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. O SUPOSTO HOMICÍDIO OCORREU NA MADRUGADA DO DIA 20 DE FEVEREIRO DE 2022. A AUTORIDADE POLICIAL REPRESENTOU PELA PRISÃO PREVENTIVA DOS PACIENTES E DOS CODENUNCIADOS EM 2 DE MARÇO DE 2022. A PRISÃO FOI DECRETADA NO DIA 10 DE MARÇO DE 2022 E OS PACIENTES FORAM CAPTURADOS EM 23 (ANDERSON) E 28 (LEONARDO) DE MARÇO DE 2022. A DENÚNCIA, COM SEU ADITAMENTO, FOI RECEBIDA NO DIA 10 DE ABRIL DE 2022. POR DEFENSORES CONSTITUÍDOS, OS PACIENTES OFERECERAM RESPOSTA À ACUSAÇÃO EM 28 DE ABRIL DE 2022. AFASTADAS AS PRELIMINARES, FOI DESIGNADA DATA PARA A AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO, QUE RESTOU TRANSFERIDA UMA VEZ EM RAZÃO DE READEQUAÇÃO NA PAUTA, ESTANDO APRAZADA PARA O DIA 22 DE SETEMBRO DE 2022. DESDE O CUMPRIMENTO DO MANDADO DE PRISÃO EXPEDIDO EM DESFAVOR DE ANDERSON SE PASSARAM 152 (CENTOE CINQUENTA E DOIS) DIAS (CONTADOS ATÉ A DATA DESTA SESSÃO), NÃO HAVENDO QUALQUER MOROSIDADE INJUSTIFICADA QUE POSSA SER ATRIBUÍDA AO JUÍZO.

- FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA DO DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA. NÃO VERIFICAÇÃO. AS INFORMAÇÕES CONCRETAS E OBJETIVAS DO PROCESSO EXPOSTAS NAS DECISÕES NA INSTÂNCIA PRIMEVA DEMONSTRAM COM CLAREZA A PRESENÇA DOS REQUISITOS FÁTICOS - COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL (ARTIGO 312DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL), E INSTRUMENTAIS - POSSÍVEL PRÁTICA DE CRIME DOLOSO COM PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE MÁXIMA SUPERIOR A QUATRO ANOS (ARTIGO 313, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL), APONTANDO A NECESSIDADE DE MANTER-SE A PRISÃO PREVENTIVA, DIANTE DA PROVA DA EXISTÊNCIA DOS CRIMES E DE INDÍCIOS DE AUTORIA (FUMUS COMMISSI ELICTI), E O RECEIO DE QUE A LIBERDADE DOS PACIENTES APRESENTA RISCOS AO MEIO SOCIAL E À APLICAÇÃO DA LEI PENAL (PERICULUM LIBERTATIS), PELO MODUS OPERANDI, COM GRAVIDADE CONCRETA - HÁ EVIDÊNCIAS DE QUE ELES (OS PACIENTES E MAIS 3 [TRÊS] INDIVÍDUOS, 1 [UM] DELES INIMPUTÁVEL), EM HARMONIA DE ATIVIDADES E PROPÓSITOS, COM ÂNIMO HOMICIDA, PARTICIPARAM DE DISCUSSÃO SUPOSTAMENTE PROVOCADA PELA RECUSA DA VÍTIMA EM SERVIR 1 (UMA) CERVEJA, ONDE FORAM DISPARADOS TIROS CONTRA XXXXXXXXXXXXXXXXXX, ATINGINDO-LHE NA CABEÇA E CAUSANDO- LHE A MORTE, E EM VIRTUDE DO COMPORTAMENTO DESABONADOR, COM OREGISTRO DE OUTROS CADERNOS PROCESSUAIS, O QUE CONSTITUI RAZÃO ESCORREITA E BASTANTE PARA EXISTIR O FUNDADO PRESSENTIMENTO DE RECIDIVA CRIMINAL. EMBORA INQUÉRITOS POLICIAIS E AÇÕES PENAIS EM ANDAMENTO NÃO POSSAM SER CONSIDERADOS PARA AGRAVAR A PENA-BASE (CONSOANTE SÚMULA N. 444 DO SUPERIOR TRIBUNAL DEJUSTIÇA), PODEM SER CONSIDERADOS COMO INDICADORES DA PROPENSÃO DO AGENTE AO COMETIMENTO DE NOVOS DELITOS.

- CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA"(fls. 37/40).

No presente writ, a impetrante sustenta a existência de nulidade evidenciada nos autos, diante da ilegalidade na decisão de primeiro grau que determinou, de ofício, o aditamento da denúncia pelo Ministério Público.

Aponta que, nos termos do art. 395, I, do CPP, ao identificar a inépcia da denúncia, diante da deficiência na descrição fática das condutas, apta a impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa, a única providência possível ao Juízo de primeiro grau é a rejeição da peça acusatória.

Assevera que" ao provocar o aditamento de denúncia para que fosse corrigida a ilegalidade, o d. Juízo de origem se envolveu na atividade acusatória, cooperando diretamente com o Ministério Público para possibilitar a apresentação de uma imputação viável contra os acusados ora recorrentes, o que implica na quebra do sistema acusatório "(fl. 7).

Aponta, assim, ofensa ao art. 384 do CPP, destacando que, somente após a instrução do feito, caberia ao Ministério Público, por sua própria iniciativa, promover o aditamento da denúncia.

Requer, em liminar, a suspensão da decisão proferida no processo. No mérito, pugna pela concessão da ordem com o trancamento da ação penal, e consequente expedição de alvará de soltura aos pacientes.

Liminar indeferida às fls. 62/66.

Informações prestadas às fls. 70/80 e 81/117.

O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem, conforme parecer de fls. 121/124.

É o relatório.

Decido.

Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do próprio Superior Tribunal de Justiça. Contudo, considerando as alegações expostas na inicial, razoável o processamento do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal.

O Tribunal de origem, ao afastar a aventada nulidade, consignou o seguinte:

"O juízo a quo, antes de receber a denúncia, determinou sua emenda (Evento n. 9 da ação penal):

Malgrado a ausência de previsão específica no Código de Processo Penal acerca da possibilidade de emenda da denúncia (no sentido estrito do termo, e não no sentido jurídico da Emendatio Libelli), nos termos do art. do Código de Processo Penal, mostra-se plenamente viável a aplicação subsidiária do art. 321 do Código de Processo Civil ao caso em apreço, com fim de evitar o retardamento da persecução criminal.

Segundo determina o art. 321 do CPC:

Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado. (grifei)

No caso em tela, a denúncia apresenta lacunas que pode não apenas prejudicar a ampla defesa dos denunciados, mas até mesmo o julgamento do feito. Explico.

Ao narrar o crime de porte de arma de fogo, imputado ao denunciado XXXXXXXXXXXXXXX, o Ministério Público consignou:

Em período anterior ao dia 20 de fevereiro de 2022 (domingo), neste Município e Comarca de Concórdia, o denunciado XXXXXXXXXXXXX, agindo em flagrante demonstração de ofensa à incolumidade pública e ao sistema nacional de armas, adquiriu, teve em depósito, transportou, manteve sob sua guarda ou ocultou, pelo menos uma arma de fogo, sem qualquer autorização da autoridade competente e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. (ev. 1, p. 3)

Ocorre que, ao não descrever as circunstâncias em que denunciado "adquiriu, teve em depósito, transportou, manteve sob sua guarda ou, ocultou, pelo menos uma arma de fogo", resta prejudicado o exercício do contraditório pela defesa, bem como o julgamento pelo juízo, uma vez que não é possível inferir as elementares dos núcleos do tipo penal imputado ao acusado.

Assim, se faz necessário que o Ministério Público complemente a denúncia para especificar qual a conduta específica do denunciado e quais as circunstâncias das imputações feitas, possibilitando um maior esclarecimento do fato.

De igual modo, com relação ao crime de homicídio, o Ministério

Público imputou aos denunciados XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX a prática do delito, narrando que "o denunciado XXXXXXXXXXXXXXXX, com a adesão e colaboração moral dos denunciados XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX e do adolescente [T. M. C.], sacou uma arma de fogo e disparou contra o ofendido, acertando-lhe o lado esquerdo da cabeça." (ev. 1, p. 3)

Não obstante, verifica-se que o órgão de acusação também não oferece elementos mínimos para identificar em que consistiu a aderência e a colaboração moral dos denunciados, impossibilitando não apenas a defesa dos acusados, mas o julgamento de mérito pelo Tribunal do Júri, caso os réus sejam pronunciados, vez que, ao formular o quesito da "autoria", deve-se indicar em que consistiu a conduta individualizada de cada acusado para o cometimento ou a concorrência no crime.

Ante o exposto, em homenagem aos princípios da celeridade e economia processual, intime-se o Ministério Público para, no prazo de 2 (dois) dias, emendar a exordial acusatória, nos termos da fundamentação acima [...].

[...]

Também não prospera a arguição de nulidade do processo pela determinação, de ofício, para emenda da inicial.

Ao invés de indicar parcialidade a medida visou justamente garantir a efetivação do contraditório, permitindo que a defesa possa rebater a narrativa apresentada pelo órgão acusatório e todos seus meandros.

Ademais, consoante o disposto no artigo 569 do CPP, as omissões da denúncia "poderão ser supridas a todo o tempo, antes da sentença final".

Além disso, não há se falar na pretensa nulidade porque não foi demonstrado o efetivo prejuízo para a defesa . "Com efeito, é cediço que o reconhecimento de nulidades no curso do processo penal, seja absoluta ou relativa, reclama uma efetiva demonstração do prejuízo à parte, sem a qual prevalecerá o princípio da instrumentalidade das formas positivado pelo art. 563 do CPP (‘pas de nullité sans grief’)" (STJ, AgRg no RHC n. 162.609/BA, rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 09/08/2022)"(fls. 43/50).

Nos expressos termos do art. 395, inciso I, do Código de Processo Penal, a denúncia será rejeitada quando for manifestamente inepta.

No caso concreto, o juízo de primeiro grau reconheceu que a denúncia apresentava lacunas que poderiam prejudicar a ampla defesa dos denunciados e o julgamento do feito. Todavia, em que pese ter identificado vício, não rejeitou a peça acusatória e determinou, de ofício, o aditamento pelo Parquet.

Como se sabe, constitui alicerce do processo penal brasileiro o sistema acusatório, no qual, em oposição à modalidade inquisitorial, impõe-se uma clara divisão de atribuições entre os sujeitos processuais responsáveis por acusação, defesa e julgamento na persecução criminal. Como anota o professor Aury LOPES JR:

" É importante destacar que a principal critica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as conseqüências de uma atividade incompleta das partes, tendo de decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado . Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (por meio da inquisição) um gravíssimo erro

[...]

O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranqüilidade psicológica do juiz que sentenciará, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.

Também conduz a uma maior tranqüilidade social, pois se evitam eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do juiz "apaixonado" pelo resultado de seu labor investigador e que, ao sentenciar, olvida-se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o início da investigação.

Em decorrência dos postulados do sistema, em proporção inversa à inatividade do juiz no processo está a atividade das partes . Frente à imposta inércia do julgador, produz-se um significativo aumento da responsabilidade das partes, já que têm o dever de investigar e proporcionar as provas necessárias para demonstrar os fetos. Isso exige uma maior responsabilidade e grau técnico dos profissionais do Direito que atuam no processo penal". (LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. pp. 146/147).

Como se depreende da lição doutrinária acima, o sistema acusatório traz como corolários os princípios da inércia e da imparcialidade do órgão jurisdicional - inclusive, e especialmente, no tocante à impossibilidade de que o julgador substitua iniciativa que seja de atribuição exclusiva da parte. Parece oportuno, nesse momento, o escólio de Renato Marcão:

" O princípio da imparcialidade do juiz impede que ele seja, ao mesmo tempo, autor e juiz da causa. Não há qualquer possibilidade jurídica de que tal superposição de funções ocorra validamente.

No dizer de PIMENTA BUENO, "o juiz não deve ser senão juiz, árbitro imparcial, e não parte, porque, do contrário, criará em seu espírito 'as primeiras suspeitas', e, por amor próprio de sua previdência, ele julgará antes de ser tempo de julgar" (apud JOSÉ FREDERICO MARQUES, Elementos de direito processual penal, Rio de Janeiro, Forense, 1961, v. I, p. 63).

A iniciativa da ação penal pertence, portanto, às

partes (em sentido técnico); aos respectivos titulares do direito de ação (Ministério Público ou particular ofendido, conforme o caso)". (MARCÃO, Renato. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 177)

Como consequência natural e lógica do sistema acusatório e dos princípios acima arrolados, o oferecimento da denúncia na ação penal incondicionada é atribuição exclusiva do Ministério Público, na sua condição de dominus litis.

De fato, o ordenamento jurídico autoriza, à luz do art. 384 do Código de Processo Penal, que o Parquet adite a denúncia quando"cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação"- mutatio libelli -, bem como, na forma do art. 569 do mesmo diploma processual, supra a qualquer tempo eventuais omissões da denúncia, desde que ainda não prolatada sentença.

Todavia, não há previsão, seja do ponto de vista legal, seja pela ótica principiológica, para que tal aditamento ou correção seja determinado de ofício pelo julgador, no momento em que identifica a inépcia da peça acusatória. Tal providência configura clara ofensa aos princípios acusatório, da inércia e da imparcialidade do julgador.

Mutatis mutandis , trago à colação o seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:

O princípio acusatório é vulnerado de forma reflexa nas hipóteses em que a decisão do magistrado, após a manifestação do Ministério Público Federal no sentido de remessa dos autos ao juízo competente, determina o aditamento da denúncia para incluir fatos constantes do relatório policial em função da conexão.

O sistema acusatório confere ao Ministério Público, exclusivamente, na ação penal pública, a formação do opinio delicti, separando a função de acusar daquela de julgar

( RHC 120379, Relator (a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 26/08/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-210 DIVULG 23-10-2014 PUBLIC 24- 10-2014)

Tampouco cabe, na presente circunstância, a alegação de que eventual nulidade deve ser superada pela ausência de comprovado prejuízo, porque o dano processual à defesa é indiscutível com o prosseguimento da ação penal.

Assim, forçoso concluir que a necessária consequência do reconhecimento da inépcia de denúncia, ante a ausência de individualização da conduta dos acusados, deve ser a rejeição da peça acusatória, impondo-se o trancamento da ação penal, ainda que possibilitando ao órgão acusatório a proposição de nova inicial.

Nesse sentido:

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA RECONHECIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. DETERMINAÇÃO, DE OFÍCIO PELO ÓRGÃO JURISDICIONAL, DE ADITAMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA. VIOLAÇÃO AO SISTEMA ACUSATÓRIO, AOS PRINCÍPIOS DA INÉRCIA DA JURISDIÇÃO E DA IMPARCIALIDADE DO JULGADOR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA.

1. Nos expressos termos do art. 395, inciso I, do Código de Processo Penal - CPP, a denúncia será rejeitada quando for manifestamente inepta.

No caso concreto, o Tribunal de origem efetivamente reconheceu a inépcia da denúncia, salientando que a peça acusatória não procedeu à devida individualização das condutas supostamente criminosas.

Todavia, deixou de promover o trancamento da ação, determinando, de ofício, o aditamento da peça acusatória pelo Parquet, sem mesmo indicar as razões por que entendia ser esse o procedimento mais adequado.

Como se sabe, constitui alicerce do processo penal brasileiro o sistema acusatório, no qual, em oposição à modalidade inquisitorial, impõe-se uma clara divisão de atribuições entre os sujeitos processuais responsáveis por acusação, defesa e julgamento na persecução criminal. Tal sistema traz como corolários os princípios da inércia e da imparcialidade do órgão jurisdicional - inclusive, e especialmente, no tocante à impossibilidade de que o julgador substitua iniciativa que seja de atribuição exclusiva da parte.

Doutrina.

Como consequência natural e lógica do sistema acusatório e dos princípios acima arrolados, o oferecimento da denúncia na ação penal incondicionada é atribuição exclusiva do Ministério Público, na sua condição de dominus litis.

Assim, resulta forçoso concluir que a necessária consequência do reconhecimento da inépcia de denúncia, ante a ausência de individualização da conduta do paciente, deve ser a rejeição da peça acusatória, impondo-se o trancamento da ação penal, ainda que possibilitando ao órgão acusatório, a proposição de nova inicial.

Ordem concedida, em consonância com o parecer ministerial, para, reconhecida a inépcia da denúncia, determinar o trancamento da Ação Penal n. 0009215- 17.2015.8.03.0001, em trâmite perante o Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, sem prejuízo de que o Ministério Público ofereça nova denúncia contra o paciente, se preenchidos os requisitos mínimos do art. 41 do CPP e observados os prazos prescricionais aplicáveis.

( HC n. 347.748/AP, relator Ministro Joel Ilan

Paciornik, Quinta Turma, julgado em 27/9/2016, DJe de 10/10/2016.)

HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. TRANCAMENTO DO PROCESSO. INÉPCIA DA INICIAL CONFIGURADA. DENÚNCIA QUE NÃO ATENDE AOS REQUISITOS LEGAIS. MANIFESTA ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA E EXTENSIVA AO CORRÉU.

1. Segundo entendimento reiterado desta Corte, quanto aos crimes societários, ainda que a denúncia possa ser genérica, sem a atribuição detalhada de cada ação ou omissão delituosa a cada agente, é imprescindível a demonstração do nexo causal entre a posição do agente na empresa e a prática delitiva por ele supostamente perpetrada, possibilitando, desse modo, o exercício amplo de sua defesa.

2. É ilegítima a persecução criminal quando, comparando-se os tipos penais apontados na denúncia com as condutas atribuídas aos denunciados, verifica-se ausente o preenchimento dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, necessário ao exercício do contraditório e da ampla defesa.

3. A denúncia não apontou, ainda que minimamente, o vínculo subjetivo entre o paciente e o corréu com crimes tributários, cingindo-se à indicação da condição de sócios-proprietários da empresa" GD Comercial Ltda. ".

4. O simples fato de os acusados serem sócios e proprietários de empresa não é suficiente para inferir sua participação nos fatos delituosos descritos, sob pena de responsabilidade criminal objetiva.

5. Em nenhum momento a denúncia apontou que os pacientes seriam detentores de poderes gerenciais, de mando ou de administração da referida empresa, ou mesmo investidos de poderes especiais, fosse para a concretização de movimentações financeiras, fosse para representá-la perante à autoridade tributária.

6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, ex officio, para declarar a inépcia da denúncia no que se refere ao paciente e, por extensão, ao corréu Marco Antônio Pacheco e, apenas em relação a estes, anular, ab initio, a Ação Penal n. 014070108163, em trâmite na 3a Vara Criminal da Comarca de Colatina-ES, sem prejuízo de que seja oferecida nova denúncia em desfavor do paciente e do corréu, com estrita observância dos ditames previstos no art. 41 do Código de Processo Penal.

( HC n. 121.035/ES, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 30/6/2016, DJe de 3/8/2016.)

" HABEAS CORPUS "SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO. CRIME CONTRA A PAZ PÚBLICA. QUADRILHA ARMADA. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PLEITO PELA REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA. MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA DELITIVA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. PEÇA GENÉRICA QUE NÃO NARRA SATISFATORIAMENTE A CONDUTA IMPUTADA AO PACIENTE. INADMISSIBILIDADE. NECESSIDADE DE DESCRIÇÃO MÍNIMA DA RELAÇÃO DO PACIENTE COM OS SUPOSTOS FATOS DELITUOSOS. OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.

1. A denúncia que descreve de forma genérica e que não narra satisfatoriamente quais seriam os atos praticados pelo paciente nos preparativos para as ações delitivas, implica a inobservância ao art. 41, do Código de Processo Penal, pois impossibilita o exercício da ampla defesa e do contraditório, impondo o trancamento do processo por inépcia da inicial.

2. Ordem concedida de ofício para pronunciar a deficiência formal da denúncia e determinar o trancamento da Ação Penal n.º 2013.01.1.080169-4, em trâmite na 4a Vara Criminal de Brasília, relativamente a Mario Lúcio Rodrigues Moreira, ressalvado, porém, o oferecimento de outra denúncia.

3. Expeça-se alvará de soltura ao clausurado.

( HC n. 278.101/DF, relator Ministro Moura Ribeiro, Quinta Turma, julgado em 17/12/2013, DJe de 12/2/2014.)

Ante o exposto, com fundamento no art. 34, inciso XX, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, não conheço do habeas corpus . Contudo, concedo a ordem, de ofício, para, reconhecida a inépcia da denúncia, determinar o trancamento da Ação Penal n. 03082-82.2022.8.24.0019/SC, sem prejuízo de que o Ministério Público ofereça nova denúncia contra os pacientes, se preenchidos os requisitos mínimos do art. 41 do Código de Processo Penal e observados os prazos prescricionais aplicáveis.

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(STJ - HC: 777395 SC 2022/0326118-1, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Publicação: DJ 01/03/2023)

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Modelo de resposta à acusação - Crime de Ameaça

Orlando Junio da Silva  Advogado, Advogado
Artigoshá 3 anos

Emendatio Libelli e Mutatio Libelli

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