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21 de Setembro de 2024

STJ Abr23 - Incompetência Notória do Juízo Anula todos Atos Decisórios Processuais Penais

ano passado

Inteiro Teor

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2263517 - PR (2022/0386846-6)

RELATOR : MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK

Trata-se de agravo de XXXXXXXXXXXXXX contra decisão proferida no TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ que inadmitiu o recurso especial interposto com fundamento no art. 105, III, alínea a, da Constituição Federal - CF, contra acórdão proferido no julgamento de apelação criminal n. 0002974-84.2018.8.16.0025.

Consta dos autos que o agravante ARNALDO foi condenado pela prática do delito tipificado no art. 333, caput c.c. parágrafo único, do Código Penal - CP (corrupção ativa), às penas de 3 anos e 8 meses de reclusão, em regime inicial aberto, e 140 dias- multa, à razão mínima (fl. 2785). O agravante GILBERTO foi condenado pela prática do mesmo delito, às penas de 3 anos de reclusão, em regime inicial aberto, e 100 dias- multa, à razão mínima, substituída a pena corporal por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de cinco salários-mínimos (fl. 2789).

Em sede de recurso de apelação, o Tribunal de origem declarou, de ofício, a incompetência da Justiça Estadual para julgar o feito, anulando a sentença e julgando prejudicados os apelos defensivos (fl. 3938) . O acórdão ficou assim ementado:

"APELAÇÕES CRIMINAIS."OPERAÇÃO FIM DE FEIRA"CRIMES DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, CORRUPÇÃO PASSIVA E ATIVA. CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. ORIGEM FEDERAL DAS VERBAS. CONTRATOS DE REPASSE FIRMADOS PELA

PREFEITURA MUNICIPAL DE ARAUCÁRIA E A CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, REPRESENTANDO A UNIÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL PARA JULGAR A PRESENTE AÇÃO PENAL. FISCALIZAÇÃO A SER REALIZADA PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. SÚMULA 208, DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DECLARAÇÃO" EX OFFICIO "DE NULIDADE DA SENTENÇA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL, REMESSA DOS AUTOS PARA A JUSTIÇA COMPETENTE. RECURSOS DE APELAÇÃO PREJUDICADOS". (fl. 3922).

Em sede de recurso especial (fls. 3946/3965), a defesa apontou violação aos arts. 564, inciso I, e 567, ambos do Código de Processo Penal - CPP, porquanto o Tribunal de origem, embora tenha declarado a incompetência da Justiça Estadual para processar e julgar o feito, tão somente reconheceu a nulidade da sentença. Afirma que não se aplica a teoria do juízo aparente na presente hipótese, pois, desde a época do oferecimento da denúncia, já se revelava evidente a incompetência absoluta da Justiça Estadual, em razão da natureza federal das verbas desviadas. Dessa forma, os recorrentes defendem a necessidade de se anular todos os atos instrutórios e decisórios praticados pelo juízo absolutamente incompetente.

Requer o reconhecimento da nulidade de todos os atos instrutórios e decisórios praticados pela Justiça Estadual.

Contrarrazões do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ (fls. 3968/3970).

O recurso especial foi inadmitido no TJ em razão do óbice da Súmula n. 83 do Superior Tribunal de Justiça - STJ (fls. 3972/3978).

Em agravo em recurso especial, a defesa impugnou o referido óbice (fls. 3984/3997).

Contraminuta do Ministério Público (fls. 4296/4299).

Os autos vieram a esta Corte, sendo protocolados e distribuídos. Aberta vista ao Ministério Público Federal - MPF, este opinou pelo conhecimento do agravo para não conhecer do recurso especial (fls. 4318/4321).

É o relatório.

Decido.

Atendidos os pressupostos de admissibilidade do agravo em recurso especial, passa-se à análise do recurso especial.

Sobre a violação aos arts. 564, inciso I, e 567, ambos do CPP, o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ declarou a incompetência da Justiça Estadual para julgar o feito, determinando-se a anulação apenas da sentença, nos seguintes termos do voto do relator:

"O pedido de não conhecimento do"termo aditivo"ao recurso de apelação interposto por (mov. 40), formulado pelo Ministério XXXXXXXXXXXXXX Público, resta prejudicado, assim como os recursos de apelação interpostos, diante da incompetência da Justiça Estadual para processar e julgar a presente lide, questão que se analisa"ex officio".

Denota-se que, na 5a fase da" Operação Fim de Feira ", constatou-se a prática dos crimes noticiados na denúncia e que são objeto desta Ação Penal, ressaltando- se a existência de 17 ações penais vinculadas aos crimes praticados na municipalidade da Prefeitura de Araucária.

Contudo, no caso específico dos autos, passou despercebido pelo órgão acusador que as verbas que possibilitaram o pagamento dos Contratos de Prestação de Serviços nº 79/2015 e nº 77/2016, firmados pela Prefeitura Municipal de Araucária comXXXXXXXXXXXXXX tinham origem em" Contratos de Repasse "firmados pela Prefeitura Municipal de Araucária e a Caixa Econômica Federal representando a União Federal.

Na verdade, analisando as provas produzidas durante a instrução processual, especialmente os documentos juntados com a denúncia e o quanto dito pelos réus, em seus interrogatórios, e as informações trazidas pelas testemunhas, constatou-se que a origem federal da verba utilizada nos 2 contratos de prestação de serviços objeto desta Ação Penal é matéria incontroversa e foi amplamente comprovada durante a instrução criminal (prova oral).

Cite-se, por exemplo, o interrogatório judicial do réu XXXXXXXXXXXX, que havia contratos da HD com a União regulados pela CAIXA; que o qual afirmou"(...) Guilherme pediu para ele verificar o cronograma da liberação dos valores; que na CAIXA lhe passaram o telefone de um engenheiro fiscal; que informou que o dinheiro já seria liberado; que na época o banco estava em greve; que isso demoraria em torno de 30 dias; que Guilherme o pressionava a ligar para a CAIXA para agilizar o pagamento (...)", conforme constou na sentença (mov. 866.1 - fls. 32/33). Durante a interceptação telefônica, também, restou comprovada a origem dos recursos: (...).

Em outro áudio, interceptado pelo órgão acusador, o réu XXXXXXXXXXXX (14/10/2016) afirmou que"essa verba depende de liberação pela caixa econômica. (...) A empresa apresenta nota com a medição. A caixa confere a medição e após libera o recurso. Essa é a regra".

No pedido de decretação de prisão preventiva, em cota anexa à denúncia, o Ministério Público afirmou que" os recursos destinados ao pagamento da empresa HD eram provenientes da Caixa Econômica Federal, o que exigiu maior complexidade no "modus operandi" da organização Criminosa, uma vez que a liberação dos valores não dependia apenas de seus integrantes, que ocupavam cargos estratégicos na Prefeitura Municipal de Araucária justamente para facilitar a liberação/suspensão de pagamento aos fornecedores.

Nesse caso, era imprescindível uma autorização externa do gerente da Caixa Econômica Federal, razão pela qual GUILHERME pressionava FÁBIO a entrar em contato com o mesmo, pois, somente assim, conseguiria efetivar a negociação de propina com a empresa HD construções e Empreendimentos LTDA". Na própria denúncia, constou a informação de que os criminosos estavam cobrando maior agilidade da Caixa Econômica Federal para a liberação das verbas públicas que tinham destinação específica: pavimentação de algumas áreas do Município. Juntamente com a denúncia, foram anexados o" Termo de Retomada de Obra Pública "e o" Termo de Paralisação de Obra Pública ", os quais foram publicados no Diário Oficial do Município de Araucária e comprovaram a origem federal da verba que serviu de pagamento para o Contrato de Prestação de Serviços nº 79/2015 (mov. 1.11 - fl. 6 e fl. 10): (...).

Não bastasse, é certo que as verbas de ambos os Contratos de Prestação de Serviços advieram de" Contratos de Repasse ", termo definido como o" instrumento administrativo por meio do qual a transferência dos recursos financeiros se processa por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União ". E as verbas tinham destinação específica, que era a realização das obras necessárias à liberação do dinheiro público, descabendo a alegação de que os recursos se incorporaram ao patrimônio municipal. Ademais, em contratos de repasse, firmados pela Caixa representando a União, há sempre a obrigação de prestação de contas ao Tribunal de Contas da União, o que torna obrigatória a aplicação da Súmula 208, do Superior Tribunal de Justiça, a qual prescreve que" compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal ".

Portanto, sendo a verba de origem federal, compete ao Tribunal de Contas da União fiscalizar a correta administração dos recursos repassados ao município, consoante dispõe o art. 71, inciso VI, da Constituição Federal: (...).

Também, no mesmo sentido é a Lei Federal nº 8.443/92, que fixou a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, a qual prevê ser da competência do TCU"fiscalizar, na forma estabelecida no regimento interno, a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município".

Veja-se que, além da origem federal das verbas, as obras eram fiscalizadas pela União, cláusula obrigatória em contratos de repasse firmados pela Caixa Econômica Federal, o que demonstra a competência da Justiça Federal.

Nos procedimentos de interceptação telefônica, os criminosos confirmaram que a Caixa Econômica precisava fiscalizar as obras de pavimentação e recate de asfalto para que as verbas, de ambos os contratos objetos desta Ação Penal, fossem liberadas.

Com isso, resta evidenciado o interesse da União com relação à possível malversação de verbas provenientes de suas finanças.

É competente, portanto, a Justiça Federal para o julgamento do presente feito, consoante do disposto no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal: (...).

Importante registrar que o equívoco, ora verificado, em relação à competência é compreensível, porque a" Operação Fim de Feira ", que originou a presente Ação Penal, contou com 17 ações penais no total e os contratos administrativos analisados eram os mais variados.

Portanto, diante da complexidade das operações que originaram a presente Ação Penal e pelo fato de existirem diversas outras Ações que não tiveram vinculação com recursos federais, entende-se que, para o caso concreto, é necessário declarar a nulidade, apenas, da sentença, sem prejuízo de nova análise que deverá ser feita pela Justiça Federal, órgão competente para julgamento da presente Ação Penal.

Há muito, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a declaração de incompetência absoluta não torna nulo os atos decisórios já praticados, senão, veja-se: (...).

Prevalece o entendimento de que"as provas colhidas ou autorizadas por juízo aparentemente competente à época da autorização ou produção podem ser ratificadas a posteriori, mesmo que venha aquele a ser considerado incompetente, ante a aplicação no processo investigativo da teoria do juízo aparente"( HC 137.438-AgR, Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 20/6/2017).

Veja-se que a grande maioria das provas produzidas foram aproveitadas para todas as Ações Penais em curso, sendo absurda a tese de que as interceptações telefônicas e as buscas e apreensões seriam nulas, apenas, nesta Ação Penal, em específico, a competência seria da Justiça Federal, questão que só pode ser, efetivamente, confirmada durante a instrução processual. E, nem se alegue que as provas produzidas perante a Justiça Estadual seriam nulas, porque a modificação da competência, por si só, não torna a prova ilícita, uma vez que prova ilícita é aquela que afronta em especial direitos constitucionais do cidadão, oque não se verifica no caso. O Supremo Tribunal Federal admite a ratificação, pelo juízo competente, de todos os atos processuais praticados anteriormente à declinação de competência, mesmo na hipótese de incompetência absoluta, e inclusive para os atos decisórios.

Do exposto, declara-se, de ofício, a competência da Justiça Federal em 1º Grau de jurisdição - para julgar a presente Ação Penal, determinando-se a remessa dos autos ao Juízo competente, com a declaração de nulidade, apenas, da sentença, sem prejuízo de nova análise a ser feita pelo Juízo competente, revogando-se as medidas cautelares diversas da prisão que foram decretadas na própria sentença, sem prejuízo de outras medidas decretadas em outras ações penais, julgando-se prejudicados os recursos de apelação interpostos" (fls. 3931/3938).

Dessume-se, dos trechos transcritos, que o Tribunal de origem declarou a incompetência da Justiça Estadual para julgar o feito, uma vez que restou incontroverso que as verbas desviadas pelos agentes eram de origem federal, repassadas pela União ao Município, por intermédio da Caixa Econômica Federal.

Com efeito, verifica-se que o art. 567 do CPP estabelece que "a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente".

A jurisprudência pátria admite a convalidação dos atos processuais praticados por juízo incompetente - inclusive dos decisórios - nas hipóteses em que recaia uma dúvida razoável sobre qual é o juízo competente para processar e julgar determinado caso.

Tal técnica de julgamento é denominada na doutrina e jurisprudência como teoria do juízo aparente, segundo a qual "não há nulidade na medida investigativa deferida por magistrado que, posteriormente, vem a declinar da competência por motivo superveniente e desconhecido à época da autorização judicial" ( HC n. 120027, relator Ministro Marco Aurélio, relator p/ acórdão Ministro Edson Fachin, Primeira Turma, julgado em 24/11/2015, DJe de 18/2/2016).

Da atenta leitura do acórdão impugnado, verifica-se que a aplicação da teoria do juízo aparente foi admitida pelo Tribunal de origem, sob o fundamento de que "o equívoco, ora verificado, em relação à competência é compreensível, porque a 'Operação Fim de Feira', que originou a presente Ação Penal, contou com 17 ações penais no total e os contratos administrativos analisados eram os mais variados".

No entanto, tal conclusão não é a que se deduz do teor do próprio decisum . Senão, vejamos.

Verifica-se que o acórdão recorrido aduz que não só as provas produzidas na

instrução criminal, tais quais os depoimentos testemunhais, mas os próprios documentos juntados com a denúncia já demonstravam, de forma incontroversa, a competência federal para processar e julgar o feito, haja vista a existência de verbas federais repassadas pela União ao Município para a execução de obras específicas.

O Tribunal de origem consignou que "na própria denúncia, constou a informação de que os criminosos estavam cobrando maior agilidade da Caixa Econômica Federal para a liberação das verbas públicas que tinham destinação específica: pavimentação de algumas áreas do Município. Juntamente com a denúncia, foram anexados o 'Termo de Retomada de Obra Pública' e o 'Termo de Paralisação de Obra Pública', os quais foram publicados no Diário Oficial do Município de Araucária e comprovaram a origem federal da verba que serviu de pagamento para o Contrato de Prestação de Serviços nº 79/2015" (fl. 3933).

Com efeito, confira-se, nos trechos da denúncia transcritos no acórdão, a seguinte descrição: "em relação à empresaXXXXXXXXXXXX, coube ao denunciado intermediar junto à Caixa Econômica Federal a liberação das verbas vinculadas que seriam destinadas ao pagamento da empresa, resultado da negociação de"propina"entre seu irmão, XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX. Ainda, em 16.12.2016 ESTÁCIO assinou o Termo Aditivo nº 109/2016, renovando por mais 180 (cento e oitenta) dias o prazo de vigência e execução do contrato de prestação de serviços nº 77/2016, firmado entre a Prefeitura de Araucária/PR e a empresa HD Construções e Empreendimentos Ltda" (fls. 3926/3927).

Em outro trecho da denúncia, extrai-se que "Estácio passou a não só intermediar a relação entre a Organização Criminosa e os representantes da empresa, como também favorecê-la dentro da administração pública municipal, utilizando-se das atribuições inerentes ao cargo para efetivar a renovação contratual e, inclusive, agilizar a liberação de verbas públicas federais vinculadas à sua pasta, pois seriam destinadas ao pagamento da empresa (...)" (fls. 3926/3927).

Assim, cabe razão à defesa quanto à alegação de que, desde a denúncia, já era notória a competência da Justiça Federal, pois as verbas pagas a título de propina decorriam de repasses vinculados, efetuados pela União ao Município, por intermédio da Caixa Econômica Federal.

Ainda, não havia dúvidas, desde a denúncia, de que as verbas eram destinadas à despesa específica - pavimentação -, ou seja, tinham destinação vinculada. Nessa hipótese, conforme é cediço, os valores não passam a integrar o patrimônio do

Município, porquanto o gestor não tem discricionariedade para gastá-los, mantendo-se a natureza federal das verbas, bem como o dever de prestar contas de sua utilização perante o órgão federal, nos termos do Decreto n. 6.170/07.

Com efeito, nesse sentido, reconheceu o acórdão que "as verbas de ambos os Contratos de Prestação de Serviços advieram de 'Contratos de Repasse', termo definido como o 'instrumento administrativo por meio do qual a transferência dos recursos financeiros se processa por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União'. E as verbas tinham destinação específica, que era a realização das obras necessárias à liberação do dinheiro público, descabendo a alegação de que os recursos se incorporaram ao patrimônio municipal" (fl. 3934).

Dessa feita, incide claramente, na hipótese, a Súmula n. 208 desta Corte, que aduz que "[c] ompete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal".

Nesse sentido (grifos nossos):

RECURSO EM HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO. FRAUDE EM PROCESSO LICITATÓRIO. CALAMIDADE PÚBLICA. RECONSTRUÇÃO. DESTINAÇÃO DE BENS PELA UNIÃO AOS ESTADOS. REPASSE OBRIGATÓRIO. MALVERSAÇÃO DE VERBA PÚBLICA. FISCALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. SÚMULA 208/STJ. INCIDÊNCIA. INTERESSE DA UNIÃO.

1. Não havendo dúvidas de que os delitos supostamente cometidos estão relacionados com verbas sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas da União, conforme admitido pelo próprio recorrente, é competente a Justiça Federal para o processamento e julgamento da causa. Precedentes.

2. O sistema de repasse previsto no programa de resposta aos desastres e reconstrução, tem por finalidade específica o atendimento da população desabrigada por situações de calamidade pública e resulta em termo de compromisso assinado pelos entes federados com o Ministério da Integração Nacional. Estando o ato sujeito à verificação e fiscalização do Governo Federal, é de se ter como presente o interesse da União e, portanto, a competência da Justiça Federal, nos termos da aplicação analógica do Enunciado n. 208 desta Corte ( CC n. 114.566/RS, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJe 1º/2/2011).

3. Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal (Súmula 208/STJ).

4. Recurso em habeas corpus improvido.

( RHC n. 66.133/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 13/6/2017, DJe de 21/6/2017).

Logo, não há falar em dúvida razoável sobre qual seria o órgão judiciário competente e, menos ainda, que a descoberta de algum fato posterior tenha demonstrado a competência de outro órgão.

Portanto, a consequência legal do reconhecimento da incompetência do juízo, nos termos do art. 564, inciso I, do CPP, é a nulidade das decisões por ele proferidas, bem como os atos instrutórios por ele presididos, e, não sendo possível excepcionar a regra por aplicação da teoria do juízo aparente, torna-se inviável o aproveitamento de tais atos após a remessa dos autos ao juízo competente.

Nesse sentido, esta Corte Superior já se manifestou (grifos nossos):

HABEAS CORPUS. NULIDADE. INJÚRIA. CRIME MILITAR DE DESRESPEITO A COMANDANTE (ART. 160, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPM). INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. JUSTIÇA COMUM. POSTERIOR DECLÍNIO PARA JUSTIÇA MILITAR. TEORIA DO JUÍZO APARENTE. NÃO APLICAÇÃO. MOMENTO DA DECRETAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CONCLUSÃO DE SE TRATAR DE CRIME MILITAR. PRECEDENTES. DELITOS PUNIDOS COM DETENÇÃO. VEDAÇÃO DE QUEBRA DE SIGILOS. ART. , III, DA LEI N. 9.296/1996. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCECIDA.

1. É pacífica a aplicabilidade da Teoria do Juízo Aparente para ratificar medidas cautelares no curso do inquérito policial quando autorizadas por Juízo aparentemente competente ( RHC n. 122.565/PR, Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 31/8/2020).

2. No caso dos autos, tem-se que, no momento da decretação da quebra de sigilo pela 31a Vara Criminal da Comarca da Capital, já se poderia atrair a competência da Justiça Militar, pois a ação delituosa descrita, além de aparentar se tratar de infração militar, foi objeto de denúncia na Auditoria da Justiça Militar estadual do Rio de Janeiro, O que afasta a aplicação da teoria do juízo aparente. Precedentes.

3. Ademais, verifica-se que tanto o delito objeto do inquérito originário (injúria) quanto o delito militar de desrespeito a comandante (art. 160, parágrafo único, do CPM) são punidos com detenção, atraindo, assim, a vedação de quebra de sigilo, se o fato investigado constituir infração penal punida com pena de detenção (art. , III, da Lei n. 9.296/1996).

4. Ordem concedida para reconhecer a nulidade das medidas cautelares impugnadas, autorizadas na Ação Penal n. 0433795-65.2016.8.19.0001, da Auditoria da Justiça Militar estadual do Rio de Janeiro, devendo o Juízo competente identificar as provas delas derivadas, as quais deverão ser invalidadas.

( HC n. 532.838/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 23/2/2021, DJe de 26/2/2021).

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. "OPERAÇÃO GRABATO". INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA FEDERAL. NULIDADE DOS ATOS PRATICADOS. NÃO RECONHECIMENTO. 2. TEORIA DO JUÍZO APARENTE. NÃO APLICAÇÃO. 3. VERBAS DA UNIÃO. COMBATE À PANDEMIA DE COVID-19. HOSPITAL DE CAMPANHA. SUPERVISÃO DIRETA E EXPLÍCITA DA CGU. COMPETÊNCIA FEDERAL MANIFESTA. 4. PREJUÍZO DEMONSTRADO. PRIVACIDADE DEVASSADA. JUÍZO SABIDAMENTE INCOMPETENTE DESDE O INÍCIO. PROVA ILÍCITA. ART. 157 DO CPP. PRECEDENTES. 5. RECURSO EM HABEAS CORPUS A QUE SE DÁ PROVIMENTO.

1. O recorrente pretende anular as investigações relativas à "Operação Grabato", em especial a busca e apreensão, bem como as provas derivadas, em virtude de ter sido deferida por Juízo incompetente, situação já reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Não se discute, portanto, a incompetência, mas apenas suas consequências.

2. A situação dos autos não autoriza a aplicação da teoria do juízo aparente. Como é de conhecimento, referida teoria autoriza o aproveitamento de atos decisórios emanados por autoridade judicial incompetente que, à época, era tida por aparentemente competente. De fato, nesses casos, a declinação de competência não possui o condão de invalidar as diligências autorizadas por Juízo que até então era competente para o processamento do feito. Contudo, na presente hipótese, não há se falar em competência aparente nem em descoberta superveniente de elementos que atraem a competência da Justiça Federal.

3. A própria decisão que deferiu a busca e apreensão destaca que a investigação se refere a quantias repassadas pela União para combate à pandemia de Covid-19, relativa ao hospital de campanha, tendo, inclusive, autorizado que o cumprimento da medida fosse acompanhado pela Controladoria-Geral da União, com compartilhamento de provas.

Ademais, é assente na doutrina e na jurisprudência a competência da Justiça Federal para processar e julgar os feitos e procedimentos relativos ao desvio de verbas da saúde repassadas pela União, haja vista o dever do governo federal de supervisionar essas verbas (Fundo de Saúde do Distrito Federal, oriundo de repasses da União e fiscalizado pela Controladoria Geral da União e pelo Tribunal de Contas da União).

Precedentes: AgRg no CC 169.033/MG, Rel.

Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/05/2020, DJe 18/05/2020; RHC 111.715/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 10/10/2019: HC 52.205/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 14/08/2017; RHC 59.287/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 17/11/2015, DJe 25/11/2015.

4. A nulidade indicada se refere ao reconhecimento da incompetência do Juízo que determinou a medida de busca e apreensão. Tem-se, portanto, manifesto o prejuízo suportado pelo recorrente, que teve sua privacidade, a qual é protegida constitucionalmente, devassada por Juízo sabidamente incompetente desde o início. Dessarte, quem produz prova sem ter competência provoca prova ilícita, nos termos do art. 157 do Código de Processo Penal, sem possibilidade de ter, no ponto, visão utilitária. Precedente do STJ.

5. Recurso em habeas corpus a que se dá provimento, para reconhecer a nulidade da busca e apreensão, bem como das provas derivadas, com o consequente desentranhamento do caderno investigatório.

( RHC n. 130.197/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/10/2020, REPDJe de 12/11/2020, DJe de 03/11/2020).

Como visto, o aproveitamento dos atos processuais depende da existência de dúvida ou erro justificável na atribuição do feito a juízo que posteriormente se verificou incompetente, atraindo a aplicação da teoria do juízo aparente, o que não ocorre no caso em tela.

Evidenciadas a incompetência do juízo e a não aplicação do juízo aparente, de rigor a anulação de todos os atos processuais instrutórios e decisórios praticados perante o juízo incompetente, desde o recebimento da denúncia.

Ante o exposto, conheço do agravo para conhecer do recurso especial e, com fundamento na Súmula n. 568 do STJ, dar-lhe provimento para declarar a nulidade dos atos processuais praticados perante a Justiça Estadual, desde o recebimento da denúncia, ante a inaplicabilidade, na hipótese, da teoria do juízo aparente.

Publique-se. Intimem-se.

Brasília, 26 de abril de 2023.

JOEL ILAN PACIORNIK

Relator

(STJ - AREsp: 2263517, Relator: JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Publicação: 27/04/2023)

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