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5 de Maio de 2024

STJ Ago 22 - Liminar - Arquivamento do Inquérito Por Atipicidade não pode compartilhar provas para seguir com a mesma investigação

há 2 anos


HABEAS CORPUS Nº 760129 - GO (2022/0236292-7)

DECISÃO Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado contra acórdão assim ementado (fls. 101):

RECLAMAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DECISÃO PROFERIDA EM HABEAS CORPUS. COMPARTILHAMENTO DE PROVA EM INVESTIGAÇÃO CÍVEL. INOCORRÊNCIA. AGRAVO INTERNO. REVOGAÇÃO DA CONCESSÃO DA LIMINAR. PREJUDICADO. I. Inviável a procedência da Reclamação quando não se constata violação de competência desta Corte, a garantir a autoridade de sua decisão, porquanto, no mandamus não houve declaração de incompetência do Ministério Público para investigar, em qualquer âmbito, a associação privada, nem tampouco reconheceu-se a ilicitude da prova mas, tão somente, a atipicidade do fato, o que não impede eventual apuração da conduta em âmbito civil, dada a independência de instância e autonomia entre elas. II. Revogada a decisão liminar, prejudicado o julgamento do Agravo Interno. RECLAMAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA.

Neste writ, a defesa sustenta que a reclamação ajuizada pelo paciente foi julgada improcedente por órgão fracionário da Câmara Criminal do TJGO, a qual não tem competência para tanto.

Assevera que, com a improcedência da reclamação, permitiu-se que o Ministério Público do Estado de Goiás continue investigando o ora paciente pelos mesmos fatos objeto da persecução penal trancada pelo TJGO no Habeas Corpus n. 5448153-87.2020.8.09.0000, ou seja, com base em provas ilícitas, porque colhidas na investigação trancada por atipicidade, cujo acórdão foi integralmente confirmado por esse colendo Superior Tribunal de Justiça no Aresp 1844340/GO.

Afirma que, apesar do arquivamento do inquérito policial, procedeu-se ao prosseguimento por via transversa, com a instauração de inquérito civil público, o que configura bis in idem. Requer, liminarmente, a concessão da ordem para suspender os efeitos do acórdão do julgamento da Reclamação n. 5615387-94.2020.8.09.0000 e determinar novo julgamento da reclamação perante o órgão competente (1ª Câmara Criminal do TJGO), repristinando a liminar que havia sido deferida ao início pelo Desembargador Relator no TJGO; e, ainda, para suspender o curso da investigação levada a efeito pelo MPGO no ICP 2019.0084.8808 até o julgamento final do presente writ.

No mérito, requer a confirmação da liminar, determinando-se o arquivamento do referido ICP 2019.0084.8808, e reconhecendo-se a impossibilidade de utilização das provas colhidas na investigação trancada por atipicidade da conduta, porque arquivadas/anuladas as cautelares em que produzidas essas provas.

Residualmente, requer seja anulado o Acórdão do julgamento da Reclamação 5615387-94.2020.8.09.0000 e determinado novo julgamento da Reclamação perante o Órgão competente (1ª Câmara Criminal do TJGO), restaurando-se a liminar concedida ao início pelo Desembargador Relator. A concessão de liminar em habeas corpus é medida excepcional, somente cabível quando, em juízo perfunctório, observa-se, de plano, evidente constrangimento ilegal. Consta dos autos que o paciente estava sendo investigado nos PIC n. 02/2018 e n. 03/2018, instaurados para apurar crimes de apropriação indébita e lavagem de capitais, praticados por organização criminosa, composta por pessoas de sua confiança, que teriam atuado para desviar os recursos doados por professantes da fé católica de todo o Brasil para a Associação Filhos do Pai Eterno (AFIPE).

A defesa impetrou, na origem, o HC n. 5448153-87.2020.8.09.0000/GO, que foi concedido, reconhecendo-se a atipicidade das condutas apontadas em face do paciente, determinando-se o arquivamento dos PIC n. 02/2018 e n. 03/2018 e das medidas cautelares deferidas pelo Juízo de 1º Grau (fls. 57-59), por acórdão que transitou em julgado após o não conhecimento do Aresp n. 1.844.340/GO.

O Ministério Público então instaurou inquérito civil público no qual requereu a juntada de cópia integral do PIC n. 02/2018, motivo pelo qual a defesa apresentou reclamação, que foi improvida pelo Tribunal de origem, por não ter ocorrido o alegado descumprimento do acórdão proferido no writ, nos seguintes termos (fls. 86-101):

[...].In casu, asseveram os reclamantes que o decidido no Habeas Corpus nº 5448153-87.2020.8.09.0000, não está sendo cumprido em face da "recalcitrância dos reclamados", apontando que no acórdão ficou estabelecido que: a) o Ministério Público não tem legitimidade para escrutinar em qualquer âmbito a gestão da AFIPE; b) deve o Parquet devolver integralmente ao Juízo da 1ª Instância todo o material obtido com as cautelares já arquivadas por esta Corte e do material obtido com a instrução do PIC nº 02/2018, agora utilizados no ICP 2019.0084.8808; c) que o material produzido nas cautelares não é válido e, d) que o writ tem efeito vinculante e erga omnes. Ao revés do aduzido pelos reclamantes não ficou decidido no acórdão que o Ministério Público não tem legitimidade para escrutinar em qualquer âmbito a gestão da AFIPE, nem tampouco que o material obtido nas cautelares não fosse válido. Insta transcrever parte do decisum: "Quanto à propalada ilicitude dos elementos de prova, ao argumento de que a autoridade impetrada teria admitido a utilização de provas ilícitas da Apelação Criminal nº 235200- 09.2017.8.09.0149 para subsidiar investigação criminal em comento, faço as seguintes considerações. A medida cautelar nº 113127-83.2019.8.09.0175 trata a prorrogação e atualização da quebra de sigilo bancário e fiscal, e compartilhamento de provas, com última decisão proferida recentemente. A medida nº 158091-64.2019.8.09.0175 versa sobre requerimento para prisão preventiva, aplicação de medidas cautelares e natureza pessoal, busca e apreensão e bloqueio de bens, tendo a magistrada acostada todo o seu conteúdo. E a medida nº 160064-88.2018.8.09.0175 envolve a primeira quebra de sigilo bancário e fiscal em face dos investigados, iniciada em 17/10/2018, na 4ª Vara Criminal desta Capital. Portanto, da vasta documentação acostada, tanto pelos impetrantes, bem como pela magistrada a quo, extrai-se que as investigações em curso no PIC nº 02/2018 se iniciaram a partir do recebimento pelo Ministério Público de cópia do IP nº 84/2017- DEIC/GAS, em que se apurou a suposta prática do crime de extorsão em face da vítima Robson de Oliveira Pereira, praticado por Welton Ferreira Nunes Júnior e outros acusados. O próprio paciente Robson de Oliveira Pereira foi quem apresentou seu aparelho de celular e computadores invadidos por Welton, aos policiais, onde constam e-mails e prints de diálogos supostamente mantidos entre a vítima naquele momento, o Padre Robson de Oliveira e os criminosos, com vistas a comprovar a chantagem que o pároco estava sofrendo, dando início às investigações decorrentes da revelada extorsão. Tais fatos acarretaram no pagamento, pelo ora paciente, da chantagem, buscando evitar a divulgação do suposto material hackeado, tendo sido efetuadas várias movimentações, que totalizaram, aproximadamente, 03 (três) milhões de reais, utilizando-se de recurso da AFIPE, o que gerou as suspeitas pelo Ministério Público, do uso indevido de dinheiro recolhido mediante doação de milhares de fiéis para fins diversos do proposto pela associação. Em virtude destas informações constantes do referido Inquérito Policial, em 20 de março de 2018, o GAECO instaurou o Procedimento de Investigação Criminal PIC nº. 02/2018 (Atena nº. 2017.0053.1347), para apurar a possível prática dos crimes de apropriação indébita, lavagem de dinheiro e organização criminosa, em tese, por integrantes das várias Associações relativas aos Filhos do Pai Eterno (AFIPEs), seus funcionários e terceiros, fatos que motivaram as medidas cautelares ora questionadas, que derivaram, pelos informes do COAF, noticiando movimentações atípicas entre os ora investigados, em espécie, ou transferências de valores que, pela forma, valor ou natureza das operações, em especial 813 (oitocentos e treze) operações imobiliárias, 59 (cinquenta e nove) operações, da mesma natureza, por outra associação coligada, além de 10 (dez) comunicações de operações em espécie de grandes valores, que chamaram a atenção do Ministério Público. Consta dos documentos apresentados, que foram compartilhados somente os elementos informativos coletados no referido Inquérito nº 84/2017-DEIC/GAS, e não elementos de prova produzidos no curso da ação penal nº 235200-09.2017.8.09.0149, atualmente em grau de apelo, respectiva. Nenhuma prova sigilosa, ou que tenha sido judicializada nas citadas ações penais, em especial o mencionado material hackeado, foi apresentado ou revelado naquele feito. ... O conteúdo extraído dos supracitados equipamentos eletrônicos, em tese, invadidos, apontados como ilegalmente obtidos, que teria motivado a ação dos extorsionários, não foi trazido aos autos dos PIC s nº 02/2018 e 03/2018, bem como às medidas cautelares, em especial porque, dentre as várias versões apresentadas pelo hacker /extorsionário Welton Ferreira Nunes Júnior, há a alegação de que o pendrive, onde esse material estava armazenado, foi apreendido no Rio de Janeiro pela Polícia Civil Goiana e destruído, mediante o pagamento de propina, aos agentes policias e à autoridade policial que investigou o crime de extorsão. Portanto, do acostado, o referido material obtido ilicitamente, não foi apresentado nos PIC s nº 02/2018 e 03/2018, porque foi destruído, havendo a seu respeito grandes especulações do que ele envolveria, não podendo prosperar a alegação dos impetrantes de que as investigações se basearam em prova ilícita, resultante do ilegal acesso aos dados contidos nos equipamentos eletrônicos do paciente Robson de Oliveira Pereira, sendo a vítima naquele Inquérito nº 84/2017- DEIC/GAS. Assim, o compartilhamento de informações do Inquérito nº 84/2017-DEIC/GAS se trata de fonte de prova independente, sem nenhuma vinculação com a prova ilícita obtida a partir do alegado hackeamento dos e-mails e telefones do paciente, que sequer foram revelados, exceto aqueles apresentados espontaneamente aos policiais pelo paciente Robson de Oliveira Pereira, sendo que a comprovação do pagamento de chantagem aos extorsionários, com recursos da AFIPE, foram os fatos que iniciaram as investigações. Ademais disso, a análise do pedido acarretou, inevitavelmente, uma incursão no conjunto fático-probatório, a fim de averiguar a legalidade do compartilhamento das provas geradas por meio das informações prestadas pelo ora paciente, produzidas no Inquérito nº 84/2017-DEIC/GAS, sendo que tais pleitos poderão ser mais profundamente analisados e dirimidos durante a suposta persecução penal em momento processual oportuno, pelas vias ordinárias, conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores e desta Colenda Câmara. ... Narra a decisão que haveria indícios de que o paciente teria se associado aos demais investigados, para, supostamente, desviar grandes valores financeiros, oriundos de verbas recolhidas de fiéis do"Divino Pai Eterno", para atividades diversas do que entabulado em seu ato constitutivo, qual seja, o custeio das atividades da Igreja Católica, o pagamento de obras, em especial a da Basílica em Trindade/GO, e outros projetos de cunho social, como o pagamento de despesas pessoais dos investigados e aquisição de imóveis que, em princípio, não se destinariam ao usufruto e finalidades da referida associação. E que, em relação ao paciente Robson de Oliveira Pereira, este, na condição de administrador/presidente das associações religiosas citadas (AFIPEs), seria, supostamente, o beneficiário de parte das movimentações, em tese, se utilizando do nome de terceiras pessoas para o desvio de finalidade da propriedade dos bens que teria adquirido com o dinheiro auferido pelas movimentações suspeitas, além do pagamento da extorsão sofrida. Sabe-se que a legislação pátria permite a fiscalização de associações privadas pelo Ministério Público, de forma pontual e específica, quando chegar ao conhecimento de que existem possíveis irregularidades que atinjam direitos sociais e individuais indisponíveis, quando for necessária para garantia da ordem pública, em especial no caso de entidades criadas com fins filantrópicos, que recebam subvenção do Poder Público, haja vista o dever ministerial de zelar pelos interesses sociais ( CF, art. 127), bem como pela vedação constitucional de associação para fins de práticas ilícitas ( CF, art. , XVII). O Código Civil de 2002, em seu artigo 66, atribuiu ao Ministério Público a tarefa de velar pelas fundações privadas, incumbência de caráter efetivo, amplo e permanente, bem como outras espécies de pessoas jurídicas, também são objeto de atenção ministerial, por força elementar dos mesmos comandos constitucionais citados anteriormente, em especial, das hodiernas associações de interesse social, assistencial e educacional. Porém, as sociedades civis, assim como as sociedades religiosas, pias, morais, como a AFIPE, científicas ou literárias, e as associações de utilidade pública e as fundações eram, na regra do artigo 16 do Código Civil de 1916, entendidas como pessoas jurídicas de direito privado. O atual Código Civil, promulgado em 2002, nada dispôs sobre a figura de"sociedade civil", pois listou como pessoas jurídicas de direito privado, no artigo 44, as associações, sociedades e fundações, às quais, por força da Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, foram agregadas as organizações religiosas e os partidos políticos. Embora o Enunciado 144 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal tenha apontado que"a relação de pessoas jurídicas de Direito Privado, constantes do artigo 44, incisos I a V, do Código Civil, não é exaustiva", assumindo a possibilidade legal de continuidade de existência da forma de jurídica de sociedade civil, é fato incontroverso que a forma jurídica de sociedade civil não mais existe no Brasil desde 11 de janeiro de 2007, pois o Código Civil atual determinou, no artigo 2.031, que as pessoas jurídicas então existentes adaptassem seus estatutos às regras do novo Código. O princípio da legalidade, um dos princípios mais importantes no Estado Democrático de Direito e consagrado no artigo , inciso II de nossa Constituição, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Desse princípio basilar decorre outro, o princípio da reserva legal, pelo qual se busca preservar as garantias individuais dos cidadãos pela limitação do poder do Estado, que, em determinadas matérias, só pode atuar dentro do que foi definido em lei, em sentido estrito. Este princípio tem significação distinta na esfera pública e privada. Para os cidadãos, prevalece a autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo aquilo o que a lei não proíbe. Essa autonomia de vontade deriva da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada em 1791 na França, cujo artigo 4º, prevê:"A liberdade consiste em fazer tudo aquilo o que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram os membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei."Ao agente público, a significação é oposta, pois não prevalece a autonomia da vontade, mas a subordinação aos limites da Lei. Não há autonomia; pelo contrário, só se pode fazer o que a lei determinou, dentro dos limites determinados pela lei. Fora da lei, toda atuação administrativa é ilegítima. Portanto, tal poder de fiscalização pelo Parquet não alcança as entidades privadas mantidas por contribuições doadas de forma voluntária, a entidades religiosas, pois a própria voluntariedade do ato de doação evidencia que o interesse é disponível. Como bem ponderou o Ministro Celso de Mello em seu voto na ADI 3045/DF,"sob a égide da vigente Carta Política, intensificouse o grau de proteção jurídica em torno da liberdade de associação, na medida em que, ao contrário do que dispunha a Carta anterior (...) as normas inscritas no art. , XVII a XXI, da atual CF, protegem as associações, inclusive as sociedades, da atuação eventualmente arbitrária do legislador e do Poder Público..."(STF, Pleno, ADI 3.045, DJ de 01/06/2007). Afinal, se a doação é definida no artigo 538 do Código Civil como"o contrato que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra", resta incontroverso que o patrimônio doado é disponível e, portanto, alheio à competência protetora do Ministério Público, sobre os procedimentos que a entidade realiza com a captação de recursos junto à sociedade e recebido recursos, não podendo inferir a existência de tais procedimentos do simples fato da entidade ter finalidade assistencial. No presente caso, temos a presença do princípio da liberdade associativa (art. , XVII, CF), pois como asseverado pelos impetrantes,"a AFIPE é uma entidade privada, composta por apenas 10 membros, como reconhecido pelo próprio Ministério Público Federal quando recebeu a denúncia anônima e a encaminhou ao Ministério Público Estadual. Não há que se falar, portanto, em 'prejuízo da própria Associação ', se todos os seus 10 membros anuem e concordam com o tudo o que se fez e faz na própria entidade (...) há absoluta concordância com as destinações dos recursos (...) não havendo se falar em qualquer irregularidade cometida no âmbito da entidade, especialmente pelo Paciente ", porque a única fonte de receita primária são as doações não-onerosas, voluntárias e espontâneas feitas por fiéis. Estas doações privadas, espontâneas, voluntárias e nãoonerosas feitas por fiéis, foram e são a única fonte de renda da AFIPE, são destinadas exclusivamente para que esta gere ativos conforme expressa previsão estatutária, assim, aufira lucros, que são integralmente aplicados na própria Associação para execução de sua finalidade evangelizadora, tal qual a aquisição de grande emissora de TV, emissoras de rádios, construção da nova Basílica em Trindade-GO, reforma de Igrejas, manutenção de asilos etc. O delito de apropriação indébita é de natureza patrimonial, exigindo para sua consumação, prejuízo efetivo da vítima. Em comentário aos elementos do tipo referente ao crime de apropriação indébita ( CP, art. 168) que gerou o início das investigações em face do paciente. ... Como se sabe, qualquer ato investigativo do Parquet, bem como a aplicação de medidas cautelares para produção de provas, deve vir acompanhada com o mínimo embasamento probatório, ou seja, com lastro probatório mínimo (STF, 2ª Turma, HC 88.601/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 22/06/2007), apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização de um ilícito penal por parte do investigado. Em outros termos, é imperiosa existência de um suporte legitimador que revele de modo satisfatório e consistente, a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de autoria do crime, a respaldar uma possível acusação, de modo a tornar esta plausível. Não se revela admissível a imputação penal destituída de base empírica idônea (STF, Tribunal Pleno, INQ 1.978/PR, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 17/08/2007) o que implica na ausência de justa causa a autorizar a instauração da persecutio criminis in iudicio. . .. Como consta do Estatuto Social da AFIPE (Evento 1, Arquivo 2), que se trata de uma associação civil, de caráter evangelizador, beneficente, e para atender as suas necessidades, poderá criar atividades-meio, como instrumento captador de recursos e suporte financeiro, inclusive a possibilidade de práticas comerciais, não subsiste a alegação de que tenha indícios da pártica de apropriação indevida de valores de fiéis por parte do paciente, pois as quantias doadas são exclusivamente da AFIPE, que dá a destinação cabível, conforme previsto estatutariamente. Ressalte-se que a destinação, tal qual explicado aos fiéis doadores, é realizada por obrigação moral e ética, sempre tendo como intuito exclusivo concretizar a evangelização, não havendo, portanto, qualquer imposição legal sobre a aplicação dos recursos, o que, inviabiliza a tipificação penal da suposta prática de apropriação indébita, e consequentemente, esvaziando a incursão nos crimes de lavagem de direito e organização criminosa, consequentemente, ausente justa causa para continuidade das investigações em curso nos PIC nº 02/2018 e PIC nº 03/2018, bem como das medidas cautelares nº 113127- 83.2019.8.09.0175, nº 158091-64.2019.8.09.0175, nº 160064- 88.2018.8.09.0175, diante da atipicidade das condutas narradas pelo Parquet. Portanto, pelo princípio da liberdade associativa e livre doação por populares à AFIPE, que se tratar de uma entidade privada, com seus membros não tendo questionado qualquer ato praticado pela gestão, ou alegado lesão aos seus interesses, não há que se falar em qualquer fato típico a ser investigado, pois seus membros anuem e concordam com todos os atos negociais praticados, em especial ante a absoluta concordância com as destinações dos recursos conforme previsão estatutária, não existe desvio de valores ou desvio de sua finalidade estatutária, não havendo se falar em qualquer irregularidade cometida no âmbito da entidade, especialmente pelo paciente na condição de seu administrador/presidente. Diante disso, evidenciada a atipicidade das condutas atribuídas ao paciente, mister se faz determinar a interrupção do constrangimento a que se encontra submetido por faltar elementos que poderiam autorizar o prosseguimento das investigações, que acarretariam na proposta de uma ação penal. ... Por fim, importante frisar que o trancamento dos PICs nº 02/2018 e nº 03/2018, bem como das medidas cautelares nº 113127-83.2019.8.09.0175, nº 158091- 64.2019.8.09.0175, nº 160064-88.2018.8.09.0175, deve ser feito agora, não só para evitar a injustiça de um processo inviável em prejuízo ao paciente, como também a inutilidade de iniciar uma persecução penal em juízo em que, já no nascedouro, podese antever o resultado absolutório. ... Ao teor do exposto, acolhendo em parte o parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça, conheço da ordem impetrada e a concedo, para reconhecer a atipicidade das condutas apontadas pelo órgão ministerial em face do paciente nos PICs nº 02/2018 e nº 03/2018, bem como das medidas cautelares nº 113127- 83.2019.8.09.0175, nº 158091-64.2019.8.09.0175, nº 160064- 88.2018.8.09.0175, em trâmite perante o juízo da Vara dos Feitos Relativos a Delitos Praticados por Organizações Criminosas e de Lavagem de Dinheiro ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores da comarca de Goiânia, arquivando-se os feitos." (Sem negrito no original). Da decisão, verifica-se que: a) foi afastada a ilicitude da prova compartilhada; b) discorreu acerca da possibilidade das associações privadas poderem ser fiscalizadas pelo Ministério Público, mas de forma pontual e específica e que qualquer ato investigativo deve ser acompanhado de um lastro probatório mínimo e c), concluindo-se, ao final, dada a natureza jurídica da AFIPE, pela atipicidade da conduta, culminando com a concessão da ordem e a determinação do arquivamento dos feitos (PICs nºs 02/2018 e 03/2018, bem como das medidas cautelares nºs 113127- 83.2019.8.09.0175, 158091-64.2019.8.09.0175 e 160064-88.2018.8.09.0175). Logo, não encontra respaldo a assertiva dos reclamantes de que o acórdão tenha decidido que o Ministério Público não tem legitimidade para apurar em qualquer âmbito a gestão da AFIPE (o que, inclusive, extravasaria o âmbito do mandamus), que o material produzido nas cautelares não é válido (ao revés, foi decidido por sua licitude) e nem tampouco há que se dar ao Habeas Corpus eficácia erga omnes e efeito vinculante. Todavia, também foi determinado no Habeas Corpus o arquivamento dos PICs nºs 02/2018 e 03/2018, bem como das medidas cautelares nºs 113127-83.2019.8.09.0175, 158091-64.2019.8.09.0175 e 160064-88.2018.8.09.0175. Então o questionamento cinge-se à possibilidade ou não de haver compartilhamento destes em investigação cível. Ora, como visto, esta Corte de Justiça, nos estreitos limites do Habeas Corpus, manifestou-se pela licitude da prova produzida, mencionou a competência do Ministério Público em relação às associações privadas e finalmente, concluiu pela atipicidade da conduta atribuída ao paciente daquele mandamus, entendendo que os recursos, pertencentes à AFIPE, oriundos de doações de fiéis, foram empregados por seus associados, sem insurgência de nenhum deles, dentro de sua autonomia de vontade, uma vez que não há imposição legal sobre a aplicação de tais recursos, o que não configuraria o delito previsto no art. 168, do Código Penal. Verifica-se que o pedido dos reclamantes não encontra nenhum amparo legal, porquanto, o pleito se fundamenta em assertivas errôneas. Ademais, se no acórdão não foi decidido pela incompetência do Ministério Público (o que, por óbvio, seria inadmissível) e houve pronunciamento acerca da legalidade da prova produzida, não se constata impedimento ao compartilhamento da prova, em investigação cível, na tutela de interesses difusos e coletivos. É sabido que uma conduta pode ser classificada ao mesmo tempo como ilícito civil, penal e administrativo e que há independência de instâncias e autonomia entre elas (art. 935, do CPC), salvo algumas exceções, quais sejam: a) inexistência do fato e b) negativa de autoria, quando já decididas no Juízo Criminal. Logo, repito, no acórdão citado reconheceu-se, tão somente, a atipicidade do fato. Portanto, o compartilhamento da prova, ainda que determinado seu arquivamento, não caracteriza descumprimento do que foi decidido por esta Corte de Justiça, hábil a ensejar o deferimento da Reclamação. Insta citar: [...] Por fim, também não houve a determinação, no acórdão/voto, da devolução integral ao Juízo da 1ª Instância de todo o material obtido com as cautelares. Diante do exposto, revogo a liminar concedida (mov. 69) e, consequentemente, julgo prejudicado o Agravo Interno. Ante o exposto, acolho o parecer ministerial, conheço da Reclamação e nego-lhe provimento, nos termos acima explicitados.[...].

Pelo que ora se divisa, no acórdão proferido no HC n. 5448153-87.2020.8.09.0000, transcrito no aresto ora impugnado, decidiu-se que o poder de fiscalização do Ministério Público não alcança as entidades privadas mantidas por contribuições doadas a entidades religiosas de forma voluntária, pois a própria voluntariedade do ato de doação evidencia que o interesse é disponível, bem como que o delito de apropriação indébita é de natureza patrimonial, exigindo para sua consumação, prejuízo efetivo da vítima, não havendo, no caso, suporte probatório mínimo de autoria e de materialidade delitiva, reconhecendo-se, assim, a atipicidade da conduta.

Destacou-se a que, "pelo princípio da liberdade associativa e livre doação por populares à AFIPE, que se tratar de uma entidade privada, com seus membros não tendo questionado qualquer ato praticado pela gestão, ou alegado lesão aos seus interesses, não há que se falar em qualquer fato típico a ser investigado, pois seus membros anuem e concordam com todos os atos negociais praticados, em especial ante a absoluta concordância com as destinações dos recursos conforme previsão estatutária, não existe desvio de valores ou desvio de sua finalidade estatutária, não havendo se falar em qualquer irregularidade cometida no âmbito da entidade, especialmente pelo paciente na condição de seu administrador/presidente".

Conforme a jurisprudência desta Corte Superior, "A utilização da prova emprestada é admitida por esta Corte Superior e pelo Supremo Tribunal Federal, desde que seja possibilitado o exercício do contraditório e da ampla defesa, com a mesma amplitude das garantias existentes nos autos em que foram produzidas." ( REsp 1.898.968/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 2/3/2021, DJe 11/3/2021).

No caso, todavia, verifica-se, em um juízo inicial, que foi reconhecida a atipicidade da conduta, com a determinação de arquivamento dos feitos, motivo pelo qual, mesmo sob o manto de investigação cível por compartilhamento de provas, o que se busca é contornar o julgado já confirmado do STJ, com a investigação de fatos já considerados atípicos, o que não se enquadra na previsão do art. 18 do CPP, com riscos próximos e remotos à liberdade de locomoção do paciente, o que evidencia a pertinência do HC.

Para mais, não se atina para o porquê da pretensa investigação civel - a leitura penal ja foi afastada em definitivo, e não consta que a direção da AFIPI, entidade privada, haja endereçado pedido ao MP para a investigação por suposta apropriação indébita ou outro tipo penal -, até mesmo porque uma possivel improbidade administrativa não de aplica a entidades particulares.

Não se está a dizer que o MP não possa investigar, dispondo de razões objetivas e concretas, a vida institucional das associações, pessoas jurídicas de direito privado constitudas pela união de pessoas qúe se organizem para fins não econômicos - altruisticos, cienfificos, artisticos, religiosos, educativos, esportivos, recreativos etc -, senão que, na espécie, o seu pedido, avalizado pelo acórdão, trai, com a devida e necessária vênia, a intenção de contornar o que já decidido no Habeas Corpus n. 5448153-87.2020.8.09.0000.

O que avulta nessa hora processual, portanto, nos dizeres da defesa, é que, "apesar do arquivamento do inquérito policial, procedeu-se ao prosseguimento por via transversa, com a instauração de inquérito civil público, o que configura bis in idem".

Quanto à alegação de incompetência do órgão fracionário para o julgamento da reclamação, a pretensão se confunde com o próprio mérito do writ, sendo necessário o exame circunstancial dos autos, melhor cabendo, portanto, seu exame no julgamento de mérito, após as informações prestadas pelo Tribunal a quo, assim inclusive garantindo-se a necessária segurança jurídica.

Ante o exposto, defiro o pedido liminar para suspender os efeitos do acórdão proferido na Reclamação n. 5615387-94.2020.8.09.0000/GO e a utilização de qualquer elemento colhido no PIC 02/2018 e respectivas cautelares no Inquérito Civil Público n. 2019.0084.8808, até o julgamento do presente writ Comunique-se.

Solicitem-se informações, a ser prestadas, preferencialmente, pela Central do Processo Eletrônico - CPE do STJ. Após, dê-se vista ao Ministério Público Federal. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 23 de agosto de 2022. OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO) Relator

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(STJ - HC: 760129 GO 2022/0236292-7, Relator: Ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), Data de Publicação: DJ 29/08/2022)

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