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1 de Maio de 2024

STF Out22 - Dosimetria Irregular - Roubo

ano passado

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 220.640 MA RANHÃO

RELATOR : MIN. EDSON FACHIN

PACTE.(S) : JOSÉ WELLYSSON DA SILVA VERDE

IMPTE.(S) : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO

MARANHÃO

ADV.(A/S) : DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO ESTADO DO

MARANHÃO

COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão:

Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão, proferido no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, assim ementado (AgRg no AREsp 2.113.850/MA - eDOC 10, p. 1):

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. ROUBO MAJORADO. DOSIMETRIA. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. REFORMATIO IN PEJUS. NÃO OCORRÊNCIA. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. 1. O efeito devolutivo pleno do recurso de apelação possibilita à Corte de origem, mesmo que em recurso exclusivo da defesa, revisar as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, bem como alterar os fundamentos para justificar a manutenção ou redução das reprimendas ou do regime inicial, não sendo o caso de reformatio in pejus se a situação do acusado não foi agravada, como no caso em análise, em que a pena definitiva imposta na sentença foi mantida. 2. Este Sodalício possui o entendimento de que, em razão do efeito amplamente devolutivo da apelação, pode o tribunal, ao julgar recurso exclusivo da defesa, apresentar nova fundamentação, desde que não seja agravada a situação do recorrente ( AgRg no HC n. 499.041/SP,

Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 1º/7/2019). 3. Agravo regimental improvido

O impetrante alega que: a) o paciente foi condenado pela prática do delito previsto no art. 157, § 2º, incisos I e II, do Código Penal, às penas de 6 (seis) anos, 10 (dez) meses e 15 (quinze) dias de reclusão e 27 (vinte e sete) dias-multa; b) a defesa interpôs apelação requerendo o afastamento das circunstâncias judiciais referente à conduta social e à personalidade, bem como o afastamento da majorante relativa ao uso de arma branca; c) o Tribunal local deu parcial provimento ao recurso defensivo para neutralizar as circunstâncias judiciais acima destacadas e retirar a majorante relativa ao uso de arma branca, contudo "negativou duas outras circunstâncias judiciais com as quais exasperou a pena base em 1/4 (um quarto) para cada circunstância judicial considerada, e com isso chegou à pena base mais gravosa, que não aplicada, ao fim, por conta da vedação da reformatio in pejus, porém, permanecendo a pena aplicada pelo magistrado de base, apesar da correção acima indicada"; d) o acórdão recorrido agravou a situação do paciente em recurso exclusivo da defesa, violando assim os princípios da ne reformatio in pejus e do contraditório, bem como o sistema acusatório.

À vista do exposto, busca a concessão da ordem do habeas corpus para proceder a redução da pena.

É o relatório. Decido.

1. No caso dos autos, a apontada ilegalidade pode ser aferida de pronto.

O Juízo sentenciante realizou a dosimetria da pena nos seguintes termos (eDOC 8, p. 6/7 - grifei):

- JOSÉ WELLYSON DA SILVA VERDE

Verifica-se no caso em apreço que a culpabilidade se encontra devidamente comprovada, muito embora a conduta delitiva, isoladamente não consiga ultrapassar os limites estabelecidos pela norma penal, o que torna sua conduta inserida no próprio tipo; O réu não é primário, pois possui uma sentença condenatória transitada em julgado por crime anterior ao caso em tela, de modo que não pode ser aplicada na fase em comento, possuindo ainda uma sentença condenatória transitado em julgado por crime da mesma espécie que ocorreu posterior ao caso em tela, de forma que não pode a mesma ter boa conduta social; evidencia ter a personalidade voltada para a prática de delitos ; os motivos do crime se limitam a própria objetividade jurídica tutelada pela norma incriminadora; quanto às circunstâncias do crime estas evidenciam que o mesmo foi praticado com ameaça à vítima limitando-lhe os movimentos a fim de impedir qualquer reação desta para facilitar a subtração da coisa, porém ''nada que ultrapasse os limites da tipificação penal; não existiram consequências extrapenais a serem observadas tendo em vista que os objetos foram recuperados; Por fim, vislumbra-se que o comportamento da vítima não contribuiu de qualquer forma para que o crime viesse a ocorrer.

Assim, considerando que as circunstâncias judiciais não são amplamente favoráveis ao réu, fixo a pena-base em 05 (cinco) anos de reclusão e 20 (vinte) dias-multa.

Verifico a presença de uma circunstância atenuante relativa à confissão do réu, prevista no art. 65, III, d, do CPB e uma agravante genérica, relativa à reincidência, prevista no art. 61, I, do CPB, motivo pelo qual faço a compensação) e mantenho a pena-provisória em 05 (cinco) anos de reclusão e 20 (vinte) dias-multa.

No caso em tela, inexistem causas gerais ou especiais

de diminuição de pena a serem consideradas, todavia, reconheço a incidência de duas causas especiais de aumento de pena decorrente do emprego de arm a (art. 157, § 2º, I do CPB) e concurso de agentes (art. 157, § 2º, 11 do CPB) razão pela qual aumento a pena em 3/8 (três oitavos), encontrando a pena de 06 (seis) anos, 10 (dez) meses e 15 (quinze) dias de reclusão e 27 (vinte e sete) dias-multa, esta na base de 1/30 (um e trinta avos) do salário mínimo legal, que deverá ser recolhida no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado, nos termos do art. 688 do CPP.

Reputo as penas aplicadas como necessárias e suficientes para a prevenção e reprovação do crime, sendo que a privativa de liberdade deverá ser cumprida em regime semiaberto. com base no art. 33, § 2º, alínea "b'" do CPB.

O impetrante, inconformado com decisão de primeiro grau, interpôs apelação junto ao TJMA buscando a reforma da dosimetria para afastar as circunstâncias judiciais da conduta social e da personalidade, bem como afastar a majorante relativa ao uso de arma branca.

O Tribunal, em decisão que desbordou do pedido contido na inicial (embora tenha atendido o pleito do paciente quanto ao afastamento da personalidade do agente, da conduta social e da causa de aumento de pena), reconheceu, de ofício, matéria não devolvida a sua apreciação, relativa às vetoriais "antecedentes" e "circunstâncias do crime", consideradas neutras pelo Juízo de origem (eDOC 2, p. 7/12 - grifei):

Com efeito, a irresignação do réu relaciona-se à dosimetria da pena realizada pelo juízo de primeiro grau. especificamente quanto à valoração negativa das circunstâncias judiciais da conduta social e da personalidade, almejando a sua valorarão de forma neutra. Ademais, insurge-se contra a causa de aumento pelo uso de arma branca, requerendo, ante a revogação do inc. I do § 2º do art. 157 do Código Penal, que a lei posterior retroaja para beneficiar o réu com o decote da respectiva majorante.

Adianto que merece prosperar a irresignação recursal. Reproduzo, por ser pertinente, excerto da sentença condenatória (grifei):

(...)

Tenho que o magistrado sentenciante valorou negativamente 2 (duas) das circunstâncias judiciais, relativas à conduta social e à personalidade, afirmando que "possuindo ainda uma sentença condenatória transitada em julgado por crime da mesma espécie que ocorreu posterior ao caso em teia, de forma que não pode a mesma ter boa conduta social: evidencia ter personalidade voltada para a prática de delitos", justificativas que entendo como insubsistentes para a desvaloração das referidas circunstâncias judiciais, visto que o juízo evidenciou ter se baseado equivocadamente nas ações penais com trânsito em julgado em desfavor do ora apelante.

Ocorre, todavia, que a jurisprudência majoritária dos Tribunais Superiores "orienta-se no sentido de repelir a possibilidade Jurídica de o magistrado sentenciante valorar negativamente, na primeira fase da operação de dosimetria penal, as circunstâncias judiciais da personalidade e da conduta social, quando se utiliza para esse efeito, de condenações criminais anteriores, ainda que transitadas em julgado, pois esse específico aspecto (prévias condenações penais) há de caracterizar, unicamente, maus antecedentes" (STF, RHC 144.337-AgR, Rel. Ministro Celso de Mello. Segunda Turma, julgado em 05/11/2019. DJe 22/11/2019).

A guisa de exemplo, colaciono ementas de julgados

(grifei);

(...)

Por outro lado, ao realizar consulta aos sistemas de informação processual, bem como considerando o teor das razões recursais (11. 186v), noto que o réu possui duas condenações com trânsito em julgado oriundas dos processos n. 64.144/2014 (4a Vara Criminal desta capital), do qual se abstrai a reincidência do apelante, e n. 34.581/2008 (7a Vara Criminal desta urbe), acerca do qual o juízo a quo silenciou.

Concernente à segunda tese defensiva de exclusão da majorante do uso de arma branca, igualmente guarda razão ao recorrente.

Chego a essa conclusão porque, de fato, a incidência da referida majorante, anteriormente prevista no art. 157, § 2º, I, do Código Penal, foi revogada pela Lei n. 13.654/2018 e, considerando que a prática delituosa ocorreu em 4/11/2012, a circunstância caracteriza a cogente aplicação da novatio legis in mellius prevista no art. , XL, da Constituição Federal, devendo ser aplicada ao caso em testilha (STJ. 5a Turma. REsp 1.519.860/R.l. Rei. Min. Jorge Mussi. julgado em 17/05/2018. c STJ. 6a Turma. AgRg no AREsp 1.249.427/SP. Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/06/2018).

Sobreleva realçar que, por conseguinte, o advento da Lei

n. 13.964/2019 - que retornou, ao ordenamento jurídico, a majorante do emprego da arma, especificamente no inc. VII do mesmo dispositivo - não modifica a presente análise, haja vista não se poder aplicar a retroação da lei penal em prejuízo do réu.

Demais disso, apesar de ao magistrado ser vedada a utilização da citada majorante no período de aplicação da

Lei n. 13.654/2018 como causa de aumento de pena, nada impede que a considere como circunstância judicial negativa (art. 59 do CP) na primeira fase da dosimetria da pena . Nesse sentido, os julgados proferidos pela Corte da Cidadania no AgRg no HC 594.714/SP. Rei. Ministro Anionio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado cm 13/10/2020. DJe 16/10/2020 e no IIC 556629-RJ. Rei. Min. Ribeiro Dantas, julgado cm 03/03/2020 (Info 668).

(...)

Outrossim, consigno que "o julgador possui discricionariedade vinculada para fixar a pena-base, em decisão concretamente motivada e atrelada às particularidades fáticas do caso concreto e subjetiva do agente" (S TJ, HC 425504/RJ, 5"T.. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 12/12/2017. D.le 18/12/2017), destacando que, segundo entendimento do mesmo STJ', considerarei a fração de 1/6 (um sexto) para as circunstâncias judiciais negativadas.

Diante dessa conjuntura, a pena deve ser redimensionada, conforme passo a deliberar.

Em que pese entender que as únicas duas circunstâncias judiciais valoradas negativamente pelo juízo primevo, isto é. da conduta social e da personalidade, constituíram um equivoco daquele magistrado, pois merecem ser consideradas neutras, pondero: a) os antecedentes, em virtude do trânsito em Julgado ocorrido no processo n. 34.581/2008 da 7a Vara Criminal desta urbe, devem ser valorados negativamente, visto que exposta a contumácia delitiva do apelante, sem levar em consideração o trânsito em julgado da condenação exarada no feito de n. 64.144/2014, já utilizado pelo juízo a quo como reincidência e: b) as circunstâncias do crime são incontestes no sentido de que a conduta criminosa foi praticada com ameaça mediante o uso de arma branca, subjugando a vítima e impedindo qualquer reação desta, de modo a facilitar a subtração do bem, pelo que também valoro negativamente este item . Quanto às outras 6 (seis) circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, considero-as neutras.

Porquanto existentes duas circunstâncias judiciais valoradas negativamente, dos antecedentes e das circunstâncias do crime, e pelo exposto acima, aplico, na I" fase da dosimetria, o aumento na fração de 1/6 (um sexto) para cada uma delas, totalizando 2/6 (dois sextos) de majoração, de modo que estabeleço a pena-base no patamar de 6 (seis) anos de reclusão e 21 (vinte) dias-multa.

Na 2a fase, uma vez que presentes a circunstância atenuante relativa à confissão do réu (art. 65. III. d. do CP) e a agravante genérica referente à reincidência (art. 61, I, do CP)- esta em decorrência do feito de n. 64.144/2014 - compenso- as, consoante orientação pacífica do STJ, mantendo a pena intermediária em 6 (seis) anos de reclusão e 20 (vinte) dias- multa.

Por fim, na 3a e derradeira fase da dosimetria, ressalto inexistirem causas gerais ou especiais de diminuição de pena aplicáveis ao caso, entretanto há uma causa especial de aumento de pena decorrente do concurso de agentes (art. 157 § 2º, II do CP), motivo pelo qual, utilizando o aumento minimo correspondente à fração de 1/3 (um terço) , chega-se à pena de 8 (oito) anos de reclusão e 27 (vinte e sete) dias- multa. Contudo, em observância ao princípio da vedação da reformatio in pejus, visto se tratar de recurso exclusivo da defesa, fixo a pena definitiva, porque mais benéfica ao réu, no mesmo quantum final definido pelo juízo primevo, ou seja, no patamar de 6 (seis) anos, 10 (dez) meses e 15 (quinze) dias de reclusão e 27 (vinte e sete) dias-multa, esta na base de 1/30 (um e trinta avos) do salário minimo legal, que deverá ser recolhida no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado, nos termos do art. 688 do CPP. Mantenho, outrossim, o regime inicialmente semiaberto para cumprimento da pena, ex vi do art. 33. § 2º, b, do CP.

Nesse contexto, ao analisar matéria não suscitada no recurso defensivo, a Corte incorreu em clara violação ao efeito devolutivo recursal , segundo o qual o poder de reexame do órgão ad quem fica adstrito à parte da decisão impugnada. Essa linha de intelecção, aliás, guarda relação com o sistema acusatório, que, diversamente do sistema inquisitivo, não confere ao órgão ad quem a mesma liberdade de julgar do juízo de primeiro grau, nem a possibilidade de atuação de ofício, sem pedido do órgão acusador .

Sobre o tema, colho lição de Fernando da Costa Tourinho Filho:

No processo de tipo inquisitivo , em que se admitia recurso, o órgão ad quem ficava com inteira liberdade de apreciar o thema decidendum. Essa a razão por que se dizia que o órgão de segundo grau era, verdadeiramente, um segunda primeira instância. No sistema acusatório, não . Mesmo no sistema misto, a liberdade de reexame subordina-se àqueles princípios que disciplinam o sistema acusatório, e, por isso, tanto num quanto noutro, está ela angustiada pelas regras que decorrem do princípio do nemo judex sine actore, uma delas cristalizada na fórmula latina tantum devolutum quantum appellatum , segundo o qual o poder de reexame do juízo ad quem fica restringido à parte da sentença que se impugna [...]

Se apelação é só do acusado, deve o Juiz ad quem, no

julgamento, ater-se ao que lhe foi pedido. Caso contrário, estaria proferindo uma decisão ultra ou extra petitum, ultrajando, assim, o sistema acusatório.

[...]

A pedra de toque do sistema acusatório está, unicamente, na separação das funções acusatórias e julgadoras. O Juiz não pode proceder de ofício. O órgão jurisdicional não pode exercer sua atividade sem ser provocado (nemo judex sine actore). (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Vol. 2, 13a edição. São Paulo: Saraiva. 2009, p. 429) (grifei)

E, nessa linha, Fernando da Costa Tourinho Filho conclui acerca do efeito devolutivo da apelação no âmbito do sistema acusatório:

O efeito devolutivo da apelação, em face mesmo daquela parêmia consubstanciada na fórmula latina nemo judex sine actore (não há juiz sem autor), não permite órgão ad quem apreciar o thema decidenum com a mesma liberdade de que dispõe o Juiz a quo. A regra do tantum devolutum quantum appellatum, consectário lógico do princípio do nemo judex sine actore, cria no juízo ad quem obstáculo intransponível à sua pretensa liberdade de reexaminar a causa como se fosse um órgão de primeiro grau. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 13a edição. São Paulo: Saraiva. 2009, p. 430) (grifei).

Dessa forma, o Tribunal de 2º Grau deveria analisar a dosimetria da pena no ponto em que foi objeto do recurso pela defesa, respeitando os seus limites, não lhe sendo dado conhecer da matéria "de ofício", conforme se verificou na hipótese em que valorou condenação criminal transitada em julgado, a título de maus antecedentes, não mencionada pelo magistrado, bem como "realocou" argumentos em fase diversa da utilizada pelo Juiz sentenciante - causa de aumento de pena transmutada em circunstância judicial negativa.

Se, em recurso exclusivo da defesa o órgão ad quem infere a existência de argumentos inidôneos quanto à negativação da "personalidade" e "conduta social", cumpre-lhe tão somente atender o vindicado em grau recursal, atendendo ao pleito do recorrente que buscava o seu afastamento. Igualmente, o Tribunal deveria se ater ao pedido de afastamento da causa de aumento de pena ( 157, § 2º, I, do CP) ao reconhecer que a Lei n. 13.654/2018 a revogou, aplicando novatio legis in mellius .

Noutro passo, a providência de buscar manter, sob via transversa, hígidos os argumentos externados em sentença, mas em outra vetorial, sem que tenha havido provocação de qualquer das partes para tanto não se coaduna com o princípio acusatório.

Presente, também, a violação ao princípio da proibição da reformatio in pejus . Ressalto que a vedação da reformatio in pejus, corolária do contraditório e da ampla defesa, decorre de expressa previsão legal, constante do artigo 617 do Código de Processo Penal, que prescreve que, no âmbito dos órgãos recursais, "não poderá ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença." .

Sobre a vedação da reformatio in pejus como decorrência da ampla defesa, cito doutrina de Eugênio Pacelli de Oliveira, que ainda aponta para o risco de se tolher o exercício do direito de questionar os julgados em um sistema recursal em que não haja a proibição da reformatio in pejus:

O que vem expresso no art. 617 do CPP,

relativamente ao recurso de apelação é também aplicável a todas as modalidades de impugnações recursais, constituindo o relevante princípio da proibição da reformatio in pejus.

Pelo princípio, é vedada a revisão do julgado da qual resulte alteração prejudicial à situação do recorrente . [...]

Há várias maneiras de se pretender justificar a adoção do princípio. A nosso juízo, todas elas podem ser resumidas em um única: a vedação da reformatio in pejus outra coisa não seria que uma das manifestações da ampla defesa.

Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição, como conteúdo da ampla defesa, deve abranger também a garantia da vedação da reformatio in pejus. O risco inerente a todas as decisões judiciais poderia ter efeitos extremamente graves em relação ao acusado, no ponto em que atuaria como fator de inibição do exercício do direito de questionamento dos julgados .(Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 9a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 669) (grifei).

Ademais, esse postulado, ao materializar a personalidade dos recursos, impede que a parte recorrente sofra prejuízos de qualquer natureza, seja quantitativo, seja qualitativo. A esse respeito:

"O princípio da personalidade dos recursos significa que: a) o recurso só pode beneficiar à parte que o interpôs, não aproveitando a parte que não recorre ; e, como via de consequência, que b) quem recorreu não pode ter sua situação agravada, se não houve recurso da outra parte." (GRINOVER. Ada Pellegrini e outros. Recursos no processo penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie, ações de impugnação, reclamação aos tribunais. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. p. 43, grifei)

É nesse contexto que a pena fixada não é único balizador do título condenatório, de modo que outras circunstâncias devem ser consideradas para a verificação da reformatio in pejus . Confiram-se precedentes desta Corte nessa linha:

Penal e processual Penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Proibição de reformatio in pejus na dosimetria. Ocorre reformatio in pejus quando o Tribunal, em julgamento de recurso exclusivo da defesa, reconhece elemento desfavorável não considerado na sentença de primeiro grau ou amplia o aumento de pena então fixado, ainda que tenha reduzido o quantum total da sanção imposta ao paciente. Trata-se, portanto, de um exame qualitativo e não somente quantitativo. Interpretação sistemática do art. 617 do CPP. Caso concreto em que, sem impugnação do Ministério Público, o Tribunal, embora tenha afastado todas as circunstâncias negativas da primeira fase da dosimetria, aumentou o agravamento ocasionado pelo reconhecimento da reincidência. Recurso provido. ( RHC 189695 AgR, Redator p/ acórdão Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 03.11.2021)

"Habeas corpus. 2. Estelionato contra entidade pública (art. 171, caput e § 3º, c/c art. 71, ambos do Código Penal). 3. Apelação exclusiva da defesa. Dosimetria da pena. Configuração de reformatio in pejus, nos termos do art. 617, CPP. A pena fixada não é o único efeito que baliza a condenação, devendo ser consideradas outras circunstâncias, além da quantidade final de pena imposta, para verificação de existência de reformatio in pejus . Exame qualitativo. 4. O reconhecimento de circunstâncias desfavoráveis não previstas na sentença monocrática gera reformatio in pejus, ainda que a pena definitiva seja igual ou inferior à anteriormente fixada. Interpretação sistemática do art. 617 do CPP. 5. Constrangimento ilegal reconhecido, ordem concedida para que seja refeita a dosimetria da pena em segunda instância."( HC 129333, Relator (a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 27/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-250 DIVULG 11-12-2015 PUBLIC 14- 12-2015)

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA. RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. CIRCUNSTÂNCIA DESFAVORÁVEL NÃO RECONHECIDA NA SENTENÇA. REFORMATIO IN PEJUS CONFIGURADA. ORDEM CONCEDIDA. I - Resta configurada a reformatio in pejus, quando o Tribunal, em julgamento de recurso de apelação exclusivo da defesa, reconhece circunstância judicial desfavorável não considerada na sentença de primeiro grau , ainda que tenha reduzido o quantum total da pena imposta ao paciente. II - Não há mero redimensionamento de circunstância judicial desfavorável para o reconhecimento de outra, quando, na apelação, o Tribunal inova, levando em consideração fato não reconhecido na sentença proferida em primeira instância. III - Ordem concedida." ( HC 98307, Relator (a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 24.03.2010).

"Processual penal e constitucional. Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional. Competência do Supremo Tribunal para julgar habeas corpus: CF, art. 102, I, ‘d’ e ‘i’. Rol taxativo.[...] 3. Deveras, a consideração, no acórdão do recurso de apelação da defesa, de circunstâncias não consideradas na sentença para agravar a situação do réu consubstancia inequívoca reformatio in pejus, na linha da jurisprudência desta Corte: HC 105768, Relatora Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, DJe de 01/06/2011; HC 103213, Relatora Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, DJe de 01-02-2011; HC 98307, Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, DJe de 23/04/2010; e HC 93778, Relator Min. EROS GRAU, Segunda Turma, DJe de 15/08/2008. [...]" ( HC 108183, Relator (a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 11/09/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 17- 10-2012 PUBLIC 18-10-2012)

Assim, no caso concreto, embora a Corte local tenha acolhido o pedido de afastamento das circunstâncias judiciais e da causa de aumento relativa ao uso de arma branca, promoveu agravamento substancial da situação do paciente em ponto não impugnado pela Defesa em grau recursal (quanto à valoração negativa dos antecedentes e das circunstâncias do crime na primeira etapa da dosimetria da pena). Esse atuar resultou em prejuízo ao réu - e em benefício à parte que não recorreu, qual seja, o Ministério Público -, o que consubstancia indubitável reformatio in pejus.

Assinalo ainda que o proceder da Corte de origem também afronta o princípio da não surpresa, decorrência do devido processo legal previsto no art. , LIV, CF. Isso porque uma das partes processuais, no caso, a defesa, viu-se surpreendida em relação a uma qualificação jurídica de fato considerada somente em Segundo Grau de Jurisdição e sobre a qual ela não teve oportunidade de exercer o contraditório prévio e a defesa plena.

Assim, há que ser reconhecida a ilegalidade na decisão emanada pela Corte de origem e mantida pelo STJ, no que tange à desvaloração dos vetoriais antecedentes e circunstâncias do crime, julgando procedente o pedido deduzido pelo paciente.

À vista dos argumentos aduzidos, refaço a dosimetria da pena nos seguintes termos:

Na primeira fase, fixo a pena-base no mínimo legal (quatro anos).

Presentes a atenuante da confissão espontânea e a agravante da reincidência, mantenho a compensação integral.

Por fim, na terceira fase, remanesce uma causa especial de aumento de pena decorrente do concurso de agentes (art. 157 § 2º, II do CP), motivo pelo qual, utilizo o aumento mínimo correspondente à fração de 1/3 (um terço), tornando definitiva a pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão.

Mantenho, outrossim, o regime inicial semiaberto para cumprimento da pena.

2. Posto isso, com fulcro no art. 192 do RISTF, concedo a ordem, a fim de fixar a pena privativa de liberdade final em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, nos termos do art. 33, §§ 2º, b, e 3º, do CP.

Comunique-se, com urgência, ao Juiz da causa, a quem incumbirá

a cientificação ao Juiz da Execução Penal.

Oficie-se ao TJMA e ao STJ com o inteiro teor desta decisão, para ciência.

Publique-se. Intime-se.

Brasília, 14 de outubro de 2022.

Ministro EDSON FACHIN

Relator

Documento assinado digitalmente

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(STF - HC: 220640 MA, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 14/10/2022, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 17/10/2022 PUBLIC 18/10/2022)

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