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25 de Maio de 2024

A indispensabilidade do exame de corpo de delito e suas exceções

Publicado por Fellipe Crivelaro
há 2 anos


1. INDISPENSABILIDADE DO EXAME DE CORPO DE DELITO

Corpo de delito é o nome dado a qualquer coisa, pessoa ou lugar que tenha deixado algum vestígio da prática de um crime. Um crime que deixa vestígios é classificado como crime não-transeunte, intranseunte ou delicta facti permanentis.

A lei processual penal determina para estes casos o exame de corpo de delito.

CPP, art. 158, caput. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito (...), não podendo supri-lo a confissão do acusado.

Quando o legislador utiliza a expressão “indispensável”, ele nos remonta à antiga prova tarifada, típica do sistema processual inquisitivo, em que as provas possuíam um valor pré-estabelecido, na qual a confissão era tida como “rainha das provas”.

Ocorre que, em nosso sistema acusatório, vigora o princípio do livre convencimento motivado do juiz (persuasão racional), e nele cabe ao magistrado analisar o valor de cada prova apresentada, não existindo, portanto, uma prova de caráter indisponível, previamente mais relevante que outras.

CPP, art. 155, caput. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial (...).
STJ, AgRg. no REsp 1.485.675/SC. HOMICÍDIO QUALIFICADO POR UTILIZAÇÃO DE MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA, EM CONCURSO DE AGENTES. ART. 155, CPP. OBSERVÂNCIA. PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL OU DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. No sistema da persuasão racional ou do livre convencimento motivado adotado pela Constituição Federal ( CF, art. 93, IX), não há se falar em hierarquia entre os elementos probatórios, não sendo possível afirmar que uma prova testemunhal ostente menor valor probante que a de outra espécie, já que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação de todos os elementos de convicção alheados no curso da persecução penal ( CPP, art. 155, caput).

Interessante notar que, com o objetivo de afastar a ideia de inquisitoriedade, o legislador fez questão de deixar expresso que a confissão não é mais a “rainha das provas” quando, na parte final do artigo 158, proibiu que a confissão do acusado tivesse o condão de substituir o exame de corpo de delito. Desta maneira, embora a terminologia “indispensável” dê ao exame de corpo de delito uma roupagem de prova tarifada, afastou-se, em compensação, o caráter de “superprova” da confissão do acusado.

De todo modo, ao inserir a palavra “indispensável” no art. 158 do CPP, o legislador manteve uma faceta inquisitiva no sistema de avaliação de provas, na medida em que não conferiu total liberdade ao juiz quando da apreciação de provas em relação a crimes intranseuntes. Isto porque o citado dispositivo empresta ao exame de corpo de delito uma importância probatória autônoma, previamente destacada de todas as outras que eventualmente forem apresentadas no processo, numa verdadeira exceção à regra do art. 155 do mesmo diploma. Ou seja, o art. 158 do CPP relativiza o princípio da persuasão racional estampado no art. 155 do mesmo Codex.

Reforçando a exceção, o art. 564, III, b, do CPP, dispõe que a ausência de exame de corpo de delito nos crimes não-transeuntes é causa de nulidade processual, resultando em absolvição pela ausência ou insuficiência probatória (CPP, art. 386, II ou VII)

CPP, art. 564, III, b. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: o exame do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios (...).
CPP, art. 386, II. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça não haver prova da existência do fato.
CPP, art. 386, VII. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça não existir prova suficiente para a condenação.

Se não bastasse, o art. 184 do CPP ainda prevê que o juiz e o delegado de polícia poderão negar perícias requeridas pelas partes, salvo quando a perícia requerida for de exame de corpo de delito. Este dispositivo deixa evidente o caráter indispensável dado ao meio de prova em questão.

CPP, art. 184. Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.

Por todo o exposto:

TRF-4, ACR 2009.72.00.009558-6. ROUBO. MATERIALIDADE. NÃO-COMPROVAÇÃO. EXAME DE CORPO DE DELITO. EXIGÊNCIA. PROVA TARIFADA. Em se tratando de delito de resultado material (delito de lesão ao bem jurídico) exige-se, para a comprovação da sua materialidade, a realização de exame de corpo de delito, nos termos do artigo 564, inciso III, alínea b, do Código de Processo Penal, sob pena de nulidade. Trata-se de uma prova tarifada, exceção ao modelo vigente naquela legislação, no qual impera o princípio do livre convencimento motivado do julgador.
TJ/RS, ACR 70077701654. SENTENÇA QUE ABSOLVE PELO CRIME DE LESÕES CORPORAIS CULPOSAS, EM RAZÃO DA FALTA DE EXAME DE CORPO DE DELITO, PROVA TARIFADA DA MATERIALIDADE EM CRIMES QUE DEIXAM NECESSARIAMENTE VESTÍGIOS, E CONDENA POR EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. PEDIDO DE CONDENAÇÃO PELO DELITO DE LESÕES CORPORAIS DESPROVIDA POR APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 158 DO CPP. Em se tratando de delicta facti permanentis, aplica-se o disposto no art. 158 do Código de Processo Penal, que institui o exame de corpo de delito, direto ou indireto, como prova tarifada da materialidade da infração, não podendo ser substituído sequer por confissão do acusado.

2. CRIMES SEMPRE INTRANSEUNTES

Como visto, nos chamados crimes intranseuntes, não-transeuntes ou, em latim, delicta facti permanentis, a conduta criminosa deixa vestígios, exigindo-se, assim, o exame de corpo de delito. Há, por outro lado, os chamados crimes transeuntes, que seriam aqueles que não deixam vestígios da sua prática.

Um vestígio é uma mudança física causada numa pessoa, coisa ou lugar, originada da prática de um ilícito penal. Esta alteração no mundo exterior deixada é chamada de corpo de delito.

Podemos afirmar que existem três classes de crimes:

  • Que sempre deixam vestígios;
  • Que nunca deixam vestígios; e
  • Que as vezes deixam vestígios.

Ao nosso ver, a obrigatoriedade do exame de corpo de delito ( CPP, art. 158 c/c art. 564, III, b) deve limitar-se aos crimes que sempre deixam vestígios, como é o caso, v.g., do homicídio, lesão corporal, dano, incêndio, etc. Para estas infrações penais, a ausência de exame pericial deverá gerar nulidade absoluta. Em outras palavras, a presença de vestígios associada a ausência de exame pericial, quando possível fazê-lo, implica em nulidade absoluta.

Nulo é o processo em que tendo a infração deixado vestígios e não havendo qualquer obstáculo à realização do exame de corpo de delito, este não é realizado. O art. 158 CPP encerra uma regra de observância compulsória, cuja preterição é fulminada com a pena de nulidade, não a suprindo a confissão do réu, nem a prova testemunhal (TJ de São Paulo. HC n. 38.267, relator Des. Thomaz Carvalhal, RT 208/71) [1].

Para os delitos que nem sempre deixam vestígios, a regra do art. 158 do CPP deve ser relativizada, de tal maneira que a ausência do exame pericial deverá resultar em mera nulidade relativa. Um clássico exemplo é o estupro, crime que não necessariamente deixa vestígios, de modo a retirar o caráter tarifário do exame pericial, possibilitando a demonstração da materialidade delitiva através de outros elementos. Nesse sentido:

STF, HC 69.591/SE. CRIME SEXUAL COMETIDO CONTRA VÍTIMA MENOR (CRIANÇA DE 7 ANOS). Nos crimes contra a liberdade sexual cometidos mediante grave ameaça ou com violência presumida, não se impõe, necessariamente, o exame de corpo de delito direto, porque tais infrações penais, quando praticadas nessas circunstâncias (com violência moral ou com violência ficta), nem sempre deixam vestígios materiais.
STJ, AgRg no AREsp 272.952/DF. HOMICÍDIO QUALIFICADO, ESTUPRO E FURTO. ART. 564, III, B, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. A ausência do exame de corpo de delito, no crime de estupro, não tem o condão de configurar nulidade absoluta do processo. Precedentes do STJ.

Em resumo, para a categoria de crimes que sempre deixam vestígios (ex: homicídio, lesão corporal, dano, etc.), o exame de corpo de delito é obrigatório, sob pena de nulidade absoluta. Por óbvio, o caráter indispensável somente será levado a efeito nos casos em que os vestígios não tenham desaparecidos, pois, em que pesem serem considerados crimes “sempre intranseuntes”, isto não significa que os vestígios não possam ser ocultados, como no caso do homicídio sem encontro de cadáver, ou das lesões corporais em vítima que esteja em lugar incerto.

Pois bem. A partir deste ponto, iremos nos ater somente aos crimes que sempre deixam vestígios, haja vista que, ao nosso sentir, somente eles se submetem ao princípio da indispensabilidade do exame de corpo de delito. A eles daremos a nomenclatura de crimes sempre intranseuntes.

3. EXCEÇÕES À EXCEÇÃO

Malgrada a tarifação do exame de corpo de delito nos crimes que sempre deixam vestígios, é possível elencarmos duas exceções legais nas quais admitir-se-á a substituição valorativa de prova, evitando-se a nulidade do processo.

3.1. DESAPARECIMENTO DOS VESTÍGIOS

O artigo 158 do Código de Processo Penal dispõe que a materialidade de crimes que sempre deixam vestígios somente poderá ser demonstrada através do exame de corpo de delito, direto ou indireto [2].

Por sua vez, o artigo 167 do mesmo Código, visando garantir a comprovação da materialidade delitiva, antecipa a hipótese em que os vestígios desaparecem, autorizando, neste caso, a substituição do exame de corpo de delito. O dispositivo elenca como substituição válida a prova testemunhal. No mesmo sentido, a parte final do art. 564, III, b, do CPP, excepciona a nulidade processual nestes casos.

CP, art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
CPP, art. 564, III, b. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: o exame do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no Art. 167.

Ocorre que, interpretando o art. 167 do CPP, a doutrina e jurisprudência concluíram que se o desaparecimento dos vestígios se der em razão da desídia dos próprios órgãos de investigação, então a prova testemunhal não poderá ser utilizada para substituir o exame de corpo de delito.

Deste modo, a desídia estatal que resulta no desaparecimento dos vestígios referente a crimes sempre intranseuntes é causa de nulidade absoluta, não podendo ser sanada pela prova testemunhal ( CPP, art. 167), ou por outras provas da materialidade.

Para que a substituição do exame de corpo de delito pela prova testemunhal possa ocorrer validamente, porém, é preciso que o desaparecimento dos vestígios seja decorrente de causas não imputáveis aos órgãos de persecução penal. [...] Se, porém, os vestígios desapareceram em virtude da inércia, inclusive a burocrática, dos órgãos policiais ou judiciais, a menor segurança da prova testemunha não pode ser carreada ao acusado (GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 4ª ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, pág. 222).
STJ, AgRg no AREsp 558.432/DF. FURTO. QUALIFICADORA DO ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. IMPRESCINDIBILIDADE DE PERÍCIA. PRECEDENTES. Diante da desídia estatal, não se mostra plausível a substituição do exame pericial por dados coletados nos depoimentos testemunhais, confissões ou fotos, não sendo este argumento idôneo para substituir a prova técnica.
TJ/RJ, APL 00039259020158190028. DELITO DO ART. 37 DA LEI Nº 11.343/06. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO, DIANTE DA FRAGILIDADE DO ACERVO PROBATÓRIO. Não se pode olvidar que a prova oral somente seria crível acaso tivesse ocorrido o desaparecimento dos vestígios do crime, consoante dispõe o art. 167 do Código de Processo Penal, o que não é a hipótese dos autos. Nada obstante, para que tal substituição ocorra, é preciso que o desaparecimento dos vestígios do crime não seja decorrente de causas imputáveis aos órgãos de persecução penal, o que é verdadeiramente a hipótese destes autos, uma vez que a falta de realização de perícia se deu por absoluta desídia dos órgãos estatais.
TJ/PE, APR 4718541. DANO QUALIFICADO. AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Quando possível realizar a perícia, a prova testemunhal ou a confissão do acusado - essa por expressa determinação legal - não se prestam a suprir o exame de corpo de delito. Precedentes.
TJ/MG, APR 10672170186007001. LESÃO CORPORAL. AUSÊNCIA DO EXAME DE CORPO DE DELITO. MATERIALIDADE NÃO COMPROVADA. ABSOLVIÇÃO NECESSÁRIA. A ausência do exame de corpo de delito, ainda que indireto, quando era possível a realização da perícia, enseja a absolvição do apelante em razão da ausência de prova da materialidade.
TJ/DF, APR 0700001-37.2021.8.07.0001. DANO QUALIFICADO. AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO. No caso, a absolvição pelo delito tipificado no artigo 163, parágrafo único, inciso I, do Código Penal é medida de rigor, pois a realização de perícia no local dos fatos seria viável, motivo pelo qual a sua falta não poderá ser substituída por outros meios de prova.

Nesta proa, a prova testemunhal ( CPP, art. 167) somente funcionará como exceção ao exame de corpo de delito ( CPP, art. 158) nos crimes sempre intranseuntes quando o desaparecimento dos vestígios se der por caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou culpa exclusiva do réu.

TJ/RO, APL 1003886-05.2017.822.0002. ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO. PERÍCIA NÃO REALIZADA. DESÍDIA DO ESTADO. SUPRIMENTO PELA PROVA ORAL (ART. 167 DO CPP). IMPOSSIBILIDADE. O suprimento da prova pericial pela oral, prevista no art. 167 do CPP, somente tem lugar nas hipóteses de impossibilidade do fazimento da perícia decorrente de caso fortuito ou força maior, jamais em razão da desídia do aparato estatal.
TJ/SC, RCL 8000398-06.2016.8.24.0000. PRÁTICA, EM TESE, DE CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA QUE SE NEGA A REALIZAR EXAME DE CONJUNÇÃO CARNAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 167 DO CPP. No Código de Processo Penal prevê-se o suprimento do exame de corpo de delito por prova testemunhal quando desaparecidos os vestígios ( CPP, art. 167) e, por analogia, poder-se-ia também aplicar esse dispositivo à situação aqui retratada, equiparando a falta de exame direto por recusa da vítima à falta por desaparecimento dos vestígios (O papel da vítima no processo criminal, de Antonio Scarance Fernandes).
TJ/RS, ACR 70014558977. TRÁFICO DE DROGAS. MATERIALIDADE. Diante do desaparecimento dos vestígios do delito do 5º fato, por culpa exclusiva do acusado, pode o restante da prova dos autos atestar a materialidade delitiva, nos termos do artigo 158 e 565 do CPP. Precedentes jurisprudenciais.

Em conclusão, nos crimes sempre intranseuntes, havendo o desaparecimento dos vestígios, a prova testemunhal somente poderá substituir o exame de corpo de delito quando a culpa pela ausência de vestígios for atribuída a fator externo ao Estado-persecução, como aqueles derivados de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva das partes.

3.2. CRIMES CONTRA A MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ART. 12, § 3º DA LMP

Trata-se da segunda exceção legal em que o exame de corpo de delito de crime sempre intranseunte poderá ser valorativamente substituído sem que haja nulidade processual.

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), em seu art. 12, § 3º, em caráter especial, traz um regramento diverso para os crimes de lesão corporal praticados em sede de violência doméstica contra a mulher, na medida em que autoriza que prontuários médicos sirvam como meio de prova suficiente, dispensando o próprio exame de corpo de delito.

Art. 12, § 3º, da Lei nº 11.340/06. Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.

Trata-se, portanto, de uma verdadeira exceção à regra do art. 158 do CPP (que já é uma exceção à regra do art. 155), não havendo falar em nulidade absoluta pela ausência de exame de corpo de delito, mesmo quando o desaparecimento dos vestígios se der em razão de desídia estatal, vez que o prontuário médico já seria o suficiente para demonstrar a materialidade do crime.

STJ, HC 462.971/RS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL. COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DELITIVA. AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO. EXISTÊNCIA DE LAUDO MÉDICO NOS AUTOS. DESCRIÇÃO DAS LESÕES SOFRIDAS PELA VÍTIMA. POSSIBILIDADE. ART. 12, § 3º, DA LEI 11.340/2006. O exame de corpo de delito direto, por expressa determinação legal, é indispensável nas infrações que deixam vestígios (art. 158 do CPP). Por outro lado, nos crimes de violência doméstica, dispõe o art. 12, § 3º, da Lei n. 11.340 /2006 que "serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde" (precedentes do STJ e do STF).
STJ, HC 295.979/RS. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DELITIVA. AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO. ATESTADO MÉDICO. POSSIBILIDADE. ART. 12, § 3º, DA LEI 11.340/2006. Nos crimes de violência doméstica, mitiga-se a indispensabilidade do exame de corpo de delito direto, prevista no art. 158 do CPP, a teor do art. 12, § 3º, da Lei n. 11.340 /2006, que admite como meio de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.

4. ESPÉCIES DE EXAMES

Numa leitura sistemática dos artigos 158, 159 e 167 do Codex de Processo Penal, podemos inferir o seguinte:

  1. O exame de corpo de delito não é um meio de prova como outro qualquer (ex: prova documental, prova oral, confissão, reconhecimento, etc), haja vista que o art. 158 lhe confere caráter de indispensabilidade para os delitos que sempre deixam vestígios, de modo que a sua ausência tem o condão de anular o processo;
  2. O exame de corpo de delito será realizado por perito oficial, ou, na falta deste, por duas pessoas idôneas portadoras de diploma de curso superior, nomeados como peritos ad hoc pela autoridade competente;
  3. Quando há presença de vestígios, a lei processual penal prevê duas espécies de exames de corpo de delito: o exame pericial direto e o exame pericial indireto; e
  4. Na ausência de vestígios (por culpa não estatal), o exame pericial (direto ou indireto) poderá ser substituído pela prova testemunhal.

4.1. EXAME PERICIAL DIRETO E INDIRETO

O exame pericial direto, como próprio nome diz, é aquele realizado diretamente pelo perito, isto é, na presença do próprio corpo de delito, seja ele uma coisa, um lugar ou uma pessoa. Ex: laudo de exame pericial de lesões corporais feito em vítima que é apresentada perante o médico-legista; laudo de exame pericial necroscópico feito em cadáver recolhido no local do crime.

Já o exame pericial indireto será aquele executado também pelo perito, porém, diante de dados ou documentos produzidos por outras pessoas, com base nos vestígios do crime. Ou seja, no exame pericial indireto o perito não tem contato pessoal com o corpo de delito. Ex: exame pericial feito com base em prontuário médico, cujas lesões foram constatadas pelo médico do hospital em que a vítima foi atendida.

TJ/RS, ACR 70072408271. LESÕES CORPORAIS. No caso das lesões corporais, é comum a elaboração do auto de exame de corpo de delito indireto com base em atestados médicos de pronto-atendimento. Nesses casos, os peritos, tendo em consideração o diagnóstico feito pelos médicos que examinaram a vítima diretamente, atestam a ocorrência das lesões.
STJ, AgRg no HC 545.671/SC. FURTO QUALIFICADO. EXAME PERICIAL INDIRETO. PROVA IDÔNEA. A realização de exame pericial indireto, como no caso dos autos, que foi realizado por meio de Auto de Verificação e Descrição do Local do Delito, assinado pelo Delegado de Polícia Civil e pelo Agente de Polícia responsável, no qual foram juntadas fotografias da porta de vidro do estabelecimento, em que é possível verificar que a parte inferior havia sido quebrada, constitui meio de prova idôneo para configurar a qualificadora do rompimento de obstáculo.

Para que o documento dos vestígios seja submetido a exame de corpo de delito indireto pelo perito, é preciso que ele seja crível, idôneo, verossímil, apto a ser confrontado com a realidade. Neste viés, v.g., meras fotografias de lesões apresentadas pela vítima, sem data e sem mostrar seu rosto, mostram-se como documentos duvidosos, inaptos para produção de exame de corpo de delito indireto.

STJ, APn 821/DF. LESÃO CORPORAL. EXAME DE CORPO DELITO REALIZADO SEIS MESES APÓS OS FATOS DENUNCIADOS AFASTOU A CAUSALIDADE ENTRE AS LESÕES ALEGADAMENTE SOFRIDAS E OS FATOS DENUNCIADOS. AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO MÍNIMO A AUTORIZAR O RECEBIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA. DENÚNCIA REJEITADA. As fotografias juntadas aos autos pela vítima não são hábeis a demonstrar o pretendido nexo de causalidade tendo em vista que não são datadas, não se podendo precisar se são referentes aos fatos denunciados. Assim, não é possível afirmar se dizem respeito efetivamente aos fatos ora denunciados.

A inidoneidade dos dados ou documentos apresentados para exame pericial indireto resultará na ausência de vestígios, e, não sendo esta atribuída ao Estado, o exame pericial poderá ser substituído pela prova testemunhal, conforme já mencionado, nos termos do art. 167 do CPP.

4.2. SUBSTITUIÇÃO AUTOMÁTICA DO EXAME PERICIAL DIRETO PELO INDIRETO

O exame de corpo de delito indireto pode sempre substituir o exame de corpo de delito direto, já que a lei utilizou a conjunção “ou” no art. 158 do Código de Processo Penal? Ou será que o exame pericial direto deve sempre prevalecer sobre o indireto? O tema é divergente no próprio STJ.

Uma primeira corrente entende que o exame pericial indireto somente poderá substituir o direto quando demonstrada a impossibilidade de se fazê-lo. Caso contrário, será hipótese de nulidade absoluta nos termos do art. 564, III, b, do CPP.

STJ, 5ª Turma, HC 180.533/DF. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. PROVAS DA MATERIALIDADE DO CRIME. LAUDO DE EXAME DE CORPO DE DELITO INDIRETO. Dessa forma, não assiste razão à Corte de origem quando afirma que o exame de corpo de delito pode ser realizado a qualquer tempo e a sua falta pode ser suprida pelo exame de corpo de delito indireto e pela prova testemunhal (fls. 412/413), porquanto verificado que era plenamente possível a realização de exame de corpo de delito, de forma direta, na espécie dos autos. Também sem razão quando considera que o laudo de corpo de delito da vítima, nesta tentativa de homicídio, seria apenas mais uma prova que se poderia acrescentar ao processo (fl. 415). (...). Ressalte-se, mais uma vez, que, no caso concreto, em momento algum há notícias quanto à impossibilidade de realização do exame de corpo de delito direto. Há, na verdade, informações de que, em determinado momento, a vítima estaria se negando a comparecer à Delegacia de Polícia para a realização da diligência em questão, mas, frise-se, não há relato algum da existência de motivo concreto – desaparecimento do corpo da vítima, por exemplo – que justificasse a não realização do exame de corpo de delito direto.
TJ/RS, APR 71009154196. LESÕES CORPORAIS LEVES. REALIZAÇÃO DE EXAME DE CORPO DE DELITO INDIRETO. O exame indireto é aquele realizado com base em informações verossímeis fornecidas aos peritos quando não dispuserem estes do vestígio deixado pelo delito, inviabilizando-se, assim, a perícia direta. Em crimes que deixam vestígios materiais deve haver, sempre, exame de corpo de delito. Preferencialmente, os peritos devem analisar o rastro deixado pessoalmente. Em caráter excepcional, no entanto, admite-se que o façam por outros meios de prova em direito admitidos, tais como o exame da ficha clínica do hospital que atendeu a vítima, fotografias, filmes, atestados de outros médicos, entre outros. Dessa forma, para os crimes de lesão corporal, não basta o exame de corpo de delito indireto, quando era possível, pelas circunstâncias do caso, realizar o exame direto, pois, em que pese não se desconhecer os princípios que regem o procedimento sumaríssimo, estes não podem se sobrepor às garantias constitucionais intrínsecas ao processo penal, dentre elas a existência inequívoca da materialidade do fato, sobretudo em infrações que deixam vestígios, devendo o ofendido ser examinado por expert, o qual possui fé pública para atestar as lesões eventualmente sofridas, assegurando, dessa forma, em sua amplitude os princípios norteadores do processo penal - contraditório e ampla defesa -, bem como a obediência ao devido processo legal. No caso em apreço, não tendo sido produzida prova pericial direta, porque o laudo produzido se valeu de prontuário médico, inexiste prova da materialidade do delito, sendo impositiva a absolvição do acusado.

Noutro vértice, uma segunda corrente defende que o caráter indisponível do exame de corpo de delito é atendido de ambas as formas – direta ou indireta –, não havendo um critério de substituição ou importância entre elas. Para esta vertente, o exame pericial direto (presencial) pode ser substituído pelo exame pericial indireto (feito com base em dados ou documentos). O que importa, pelo visto, é que haja um laudo pericial.

STJ, 6ª Turma, AgRg no AREsp 1.251.660/RS. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. NULIDADE. EXAME DE CORPO DE DELITO INDIRETO. POSSIBILIDADE. In casu, foi realizado o exame de corpo de delito indireto, baseado em ficha médica confeccionada no dia dos fatos, em razão do ofendido haver efetivamente recebido atendimento hospitalar, circunstância que evidencia ter sido atendido o requisito referente à indisponibilidade da produção do exame de corpo de delito. Ausência de violação do art. 158 do CPP.
TJ/MG, APR 100000034621080001. LESÕES CORPORAIS SEGUIDAS DE MORTE. LAUDO PERICIAL INDIRETO. VALIDADE. Não cabe contestar a materialidade do delito por ausência do exame pericial direto, desde que plenamente caracterizado o indireto, elaborado com base em outras provas do processo, atendendo ao disposto no art. 158 do CPP.

Em nosso sentir, a segunda corrente encontra melhor respaldo no importante princípio do livre convencimento motivado/racional do juiz ( CPP, art. 155). Entretanto, tratando-se de vestígio perene, aquele que não desaparece com o simples passar do tempo (ex: cicatrizes, perda de membros, deformidades, danos em objetos, etc.), o exame de corpo de delito direto nos parece impositivo, não havendo justificativa para a não realização do exame presencial pelo perito, salvo quando, por exemplo, a vítima já não for mais encontrada para exame presencial.

STJ, REsp 1.798.906/ES. LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE. LAUDO PERICIAL. Em se tratando de crime de lesão corporal de natureza grave, cujos vestígios não desapareceram, impõe-se a realização de perícia, a fim de comprovar a materialidade delitiva.
TJ/CE, APR 0137071-72.2018.8.06.0001. CRIME DE FURTO. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DO ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. AUSÊNCIA DE PERÍCIA. É cediço que no crime de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo, a incidência da qualificadora depende da elaboração de laudo pericial, que somente pode ser suprido por prova testemunhal no caso de desaparecimento dos vestígios, conforme preceitua o art. 167 do Código de Processo Penal. A dinâmica dos fatos revela que os vestígios (quebra/corte do cadeado) estavam latentes, ou seja, não haviam desaparecido e, portanto, havia plenas condições de realizar o exame pericial legalmente exigido, todavia, não o fizeram. Assim, como os vestígios ainda perduravam compunha obrigação da autoridade policial realizar o exame de corpo de delito (rompimento de obstáculo), a fim de comprovar a qualificadora, inexistindo nos autos qualquer justificativa idônea pela não realização de tal prova. Precedentes.

Ademais, a extemporaneidade do exame presencial, nestas hipóteses, não resulta em prejuízo na materialidade da prova, vez que o prazo para sua juntada nos autos é até a data da sentença.

STJ, HC 52.123/RJ. HOMICÍDIO QUALIFICADO. AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. A falta do exame de corpo de delito não é suficiente para invalidar a sentença de pronúncia, seja porque a materialidade pode se comprovada por outros meios de prova, seja porque essa diligência, até o julgamento, pode ser realizada a qualquer tempo.

4.3. PROVA TESTEMUNHAL SUBSTITUTIVA DE EXAME PERICIAL: O EXAME INDIRETO

Prevendo a possibilidade de desaparecimento dos vestígios, o art. 167 do CPP autoriza o chamado exame indireto de vestígios, materializado pela prova testemunhal.

CP, art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

Reitera-se que o entendimento dominante sobre este comando legal é no sentido de que a prova testemunhal somente será um substitutivo válido do exame de corpo de delito quando o desaparecimento dos vestígios não for de culpa atribuída aos órgãos da persecução penal. Logo, se, por exemplo, demonstrado pela defesa técnica que a vítima de lesões corporais apresentava lesões aparentes e, por negligência da autoridade policial, ela não foi submetida a exame de corpo de delito quando os vestígios ainda eram presentes, o processo poderá ser anulado.

A prova testemunhal substitutiva, etiquetada como “exame indireto” neste caso, não se confunde com o exame de corpo de delito indireto mencionado no art. 158 do mesmo diploma. São coisas distintas: o exame pericial indireto é feito pelo perito com base em dados ou documentos dos vestígios do crime; o exame indireto é feito através de prova oral de testemunha que presenciou os vestígios do crime, como no exemplo do vizinho que presencia as lesões no corpo de uma vítima do crime tipificado no art. 129 do CP, cujos vestígios sumiram devido ao medo que a levou a não registrar a ocorrência.

STJ, AgRg no REsp 1.838.301/RS. FURTO QUALIFICADO PELO ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. LAUDO PERICIAL INDIRETO REALIZADO POR DOIS PERITOS NOMEADOS, COMPROMISSADOS, COM FORMAÇÃO EM CURSO SUPERIOR. Não há nenhum óbice legal ao exame de corpo de delito indireto, mormente por estar expressamente disciplinado no art. 158 do Código de Processo Penal, o qual não se confunde com o chamado exame indireto. No primeiro, realiza-se um laudo firmado por perito, porém a partir da análise de documentos ou depoimentos de testemunhas. O segundo consiste na prova testemunhal prestada em juízo, a respeito do vestígio do crime, em razão do seu desaparecimento, ex vi do art. 167 do CPP ( AgRg no REsp n. 1544900/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, Quinta Turma, julgado em 27/10/2015, DJe 16/11/2015).
STJ, AgRg no REsp 1.726.667/RS. FURTO QUALIFICADO. COMPROVAÇÃO. EXAME DE CORPO DE DELITO INDIRETO. VALIDADE. O exame de corpo de delito indireto (prova pericial) não se confunde com o exame indireto do art. 167 do CP, que é prova testemunhal.

É relevante salientar que para que a prova testemunhal tenha validade substitutiva de exame pericial de corpo de delito, é preciso que a testemunha tenha presenciado pessoalmente os vestígios do crime, não havendo validade probatórias os chamados “depoimentos derivados da vítima”, que são aqueles em que as pessoas apenas reproduzem em juízo o que a vítima teria lhe contado.

TJ/RR, ACR 0060110000142. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PALAVRA DA VÍTIMA. PROVA ISOLADA. DEMAIS DEPOIMENTOS MERAMENTE DERIVADOS. IN DUBIO PRO REO. ABSOLVIÇÃO. A palavra da vítima em crimes de natureza sexual deve, para ensejar uma condenação, encontrar-se alicerçada e em consonância com outros elementos que convicção que a corroborem, sendo insuficientes depoimentos meramente derivados da versão da suposta ofendida

Por fim, embora a norma do art. 167 do CPP se refira à prova testemunhal como meio de prova para substituir o exame pericial nos casos de desaparecimento de vestígios por culpa não estatal, é bem verdade que ela não é a única capaz de suplementar o processo, notadamente naqueles em que não há uma testemunha do crime – ex: homicídio sem encontro do cadáver e sem testemunhas, cuja prova suplementar foi a juntada de vídeos extraídos de câmeras de vigilância que flagraram o suspeito assassinando a vítima e levando o corpo para local desconhecido [3]. Deste modo, à luz do art. 155 do CPP, não havendo vestígios de crime sempre intranseunte por culpa não estatal, qualquer outro meio de prova poderá ser utilizado para substituí-lo, sendo certo que, se for a prova testemunhal, a esta dar-se-á o nome de exame indireto.

4.4. PALAVRA DA VÍTIMA ISOLADA NOS AUTOS DE CRIME SEMPRE INTRANSEUNTE

No caso em que os vestígios tiverem desaparecidos por desídia não estatal, não houver testemunhas e não houver nenhuma outra prova que não seja a palavra da vítima, mesmo assim poderá haver condenação?

Nos parece forçoso entender que a palavra da vítima, como único meio de prova, possa ser suficiente para uma condenação criminal, mesmo nos casos de crimes praticados na clandestinidade, como, v.g., os delitos patrimoniais e sexuais, e aqueles envolvendo violência doméstica. É necessário que haja, ao menos, um outro elemento probatório que dê guarida à palavra do ofendido, mesmo que seja algo circunstancial.

Sendo assim, nos crimes sempre intranseuntes, ausentes os vestígios por desídia não estatal e ausente também prova testemunhal substitutiva, a palavra da vítima isolada nos autos não tem o condão de sustentar uma sentença, devendo o acusado ser absolvido.

TJ/MG, APR 10702084557959001. LESÕES CORPORAIS. PALAVRA DA VÍTIMA. PROVA ISOLADA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Caracterizado que a imputação ao acusado da prática de lesões corporais arrima-se apenas na palavra da vítima, a qual não encontra respaldo no arcabouço probatório laborado no feito, resulta ser imperiosa a absolvição do acusado, em face do princípio contido no brocardo: 'in dubio pro reo'.
TJ/RJ, APR 00 192563020148190002. LESÕES CORPORAIS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. PALAVRA DA VÍTIMA ISOLADA. INEXISTÊNCIA DE OUTRAS PROVAS. IN DUBIO PRO REO. palavra da vítima tem especial relevância nos crimes praticados no âmbito doméstico, todavia, não pode, por si só, ensejar uma condenação quando não presentes outras provas que lhe dêem suporte, eis que suas declarações não possuem presunção absoluta.
TJ/DF, APR 20141010031707. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. INSUFICÊNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. PALAVRA DA VÍTIMA. PROVA ISOLADA. ABSOLVIÇÃO. Em que pese a indiscutível relevância da palavra da vítima em crimes de natureza patrimonial, esta deve ser corroborada por alguma outra prova, o que não ocorreu no presente caso.

5. RECUSA DA VÍTIMA EM SE SUBMETER AO EXAME PERICIAL DIRETO

É muito comum que, após um crime violento intranseunte, a vítima decida não se submeter a exame de corpo de delito direto. Nestes casos, poderia o Estado-investigação obriga-la a comparecer perante o perito oficial?

Para Guilherme de Souza Nucci, não sendo o exame invasivo, a vítima é obrigada a submeter-se a exame de corpo de delito direto, sob pena de condução coercitiva e responder por crime de desobediência:

A vítima que se recusa a fazer exame de corpo de delito pode ser processada por crime de desobediência e, persistindo sua recusa, ser conduzida coercitivamente para a realização de perícias externas de fácil visualização, embora não possa ser obrigada a proceder a exames invasivos, consistentes na ofensa a sua integridade corporal ou a sua intimidade ( Código de Processo Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 451).

Antonio Scarance Fernandes trilha o mesmo caminho, defendendo a condução coercitiva de vítimas recusantes para perícias externas de fácil realização [4].

Citando antigo julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

A vítima que se recusa ao exame deve ser compelida sob pena de desobediência. T.J. Distrito Federal, relator Des. JOSÉ DUARTE, Revista Forense, 90/816 (FRAGOSO, Heleno Cláudio; BATISTA, Nilo. Revista de Direito Penal. N.º 3. Jul-Set/1971. Rio de Janeiro: GB. Pag. 72).

Trata-se de um verdadeiro conflito de interesses constitucionais: de um lado o interesse privado da vítima de ter preservada sua intimidade e seu direito de ir e vir, de modo a evitar a vitimização secundária; de outro o interesse público de segurança e apuração de crimes, desaguando numa inevitável e necessária cooperação processual probatória.

Utilizemos o delito de lesões corporais para prosseguir com as explicações.

Nas lesões corporais submetidas ao regramento da Lei nº 9.099/95, por serem crime de ação penal pública condicionada a representação, seria no mínimo arbitrário, por parte do Estado-investigação, submeter forçadamente a vítima ao exame de corpo de delito. Por isso, nestes casos, o exame deverá ser facultativo.

Noutro giro, tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, como é a lesão corporal qualificada, crime sempre intranseunte, e considerando que os vestígios são de fácil constatação por simples avaliação médica externa, o direito privado da vítima em preservar sua intimidade não pode sobrepor o interesse público do Estado-investigação de apurar o ilícito penal. Sendo assim, entendemos que o exame de corpo de delito, nesta conjuntura, deverá ser obrigatório, devendo a vítima, no caso de recusa, ser conduzida coercitivamente até a presença do perito oficial.

Vale destacar que o crime de violência institucional, tipificado no art. 15-A da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19), somente prevê como fato típico a conduta do agente público que submete a vítima a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos. Na hipótese de exame pericial de lesões externas, não haveria, no nosso sentir, adequação típica, vez tratar-se de meio de prova cogente, imposto pela própria lei, portanto, necessária.

De todo modo, mesmo que não haja condução coercitiva da vítima nos delitos de lesão corporal qualificada – incluindo aqueles cuja lesão corporal é crime consunto (ex: CP, art. 157, § 3º, I; art. 158, § 3º, segunda parte; art. 159, § 2º; art. 213, § 1º, 1ª parte; etc.) – a jurisprudência entende possível, nestes casos de recusa, a substituição do exame pericial direto pelo exame pericial indireto, feito também pelo perito oficial, quando houver prontuário médico que tenha atestado as lesões.

TJ/SC, RCL 8000398-06.2016.8.24.0000. PRÁTICA, EM TESE, DE CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA QUE SE NEGA A REALIZAR EXAME DE CONJUNÇÃO CARNAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 167 DO CPP. No Código de Processo Penal prevê-se o suprimento do exame de corpo de delito por prova testemunhal quando desaparecidos os vestígios ( CPP, art. 167) e, por analogia, poder-se-ia também aplicar esse dispositivo à situação aqui retratada, equiparando a falta de exame direto por recusa da vítima à falta por desaparecimento dos vestígios (O papel da vítima no processo criminal, de Antonio Scarance Fernandes).

[1] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Jurisprudência Criminal. 1º Volume, Ed. Forense, 4ª edição, 1982, p. 275-277.

[2] A diferença entre o exame direto e indireto será objeto de análise posterior.

[3] É bem verdade que, mesmo neste caso, a defesa técnica ainda poderá requisitar exame pericial no vídeo que flagrou a ação criminosa. Entretanto, se observada a cadeia de custódia, o juiz poderá sentenciar mesmo sem a referida perícia. Para mais sobre o tema, vide o caso do “Goleiro Bruno”.

[4] FERNANDES, Antonio Scarance. O papel da vítima no Processo Criminal. São Paulo: Malheiros Editores, 1995. p. 76.

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Sensacional artigo, fico aguardando os próximos.
Parabéns!! continuar lendo

Excelente! continuar lendo

Muito bom! Meu filho é seu fã, e eu também! continuar lendo

Excelente!!!! continuar lendo