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19 de Maio de 2024

Lei 13.869: Breve Análise Sobre a Lei de Abuso a Autoridade

Subjetividade e Eficácia da lei 13.869/19

Publicado por Aggeu Felipe
há 3 meses

lei 13.869: breve analise sobre a lei de abuso a autoridade:

subjetividade e eficacia da lei 13.869/19

Aggeu Felipe Ribeiro Cavalcanti da Silva [1]

RESUMO

o presente artigo visa analisar a cerca da eficácia da lei de abuso de autoridade, publicada no ano de 2019, a qual revogou o antigo código e trouxe mudanças consideráveis, também debruça-se em analisar as condições de aplicabilidade subjetiva trazidas em seu artigo 1º e como tais condições podem se tonar um óbice para a aplicabilidade pragmática da lei na prática forense. Abordando o tema de um ponto de vista qualitativo, com o objetivo explicativo e utilizando-se do procedimento da revisão bibliográfica, o artigo aborda a evolução histórica do abuso de autoridade na legislação pátria, assim como demonstra a proteção ao abuso do estado de um ponto de vista fundamentalista, evidenciando a origem fundamental da lei de abuso a autoridade, por fim o artigo analisa como tem trabalhado os tribunais com a lei 13.869/19 e sua real eficiência no cotidiano forense.

Palavras-chave: Abuso de autoridade; eficácia; subjetividade; analise.

ABSTRACT

This article aims to analyze the effectiveness of the abuse of authority law, published in 2019, which revoked the old code and brought considerable changes, it also focuses on analyzing the conditions of subjective applicability brought in its article 1 and how such conditions can become an obstacle to the pragmatic applicability of the law in forensic practice. Approaching the topic from a qualitative point of view, with explanatory objectives and using the bibliographical review procedure, the article addresses the historical evolution of the abuse of authority in Brazilian legislation, as well as demonstrating the protection against abuse by the state from a point of view. From a fundamentalist point of view, highlighting the fundamental origin of the law of abuse of authority, finally the article analyzes how the courts have worked with law 13.869/19 and its real efficiency in everyday forensics.

Keywords: Abuse of authority; efficiency; subjectivity; analysis.

  1. INTRODUÇÃO

A Lei 13.869, nova lei de abuso de autoridade, entrou em vigor em 5 de setembro de 2019, a qual revogou a antiga lei e pioneira nº 4.898 de 1965. A nova lei de abuso de autoridade visa punir, criminalmente, as violações cometidas com abuso do poder daquelas autoridades e servidores públicos que extrapolarem as atribuições de seus cargos, reconhece como criminoso quem atua de forma equivocada, abusiva ou arbitrária, em desacordo com os limites imposto na lei. Refere-se, portanto, a um ordenamento que visa equilibrar a balança entre o poder público e o indivíduo particular, o qual nessa configuração ocupa o lado mais fraco da daquela.

Com efeito, a nova legislação inovou em vários aspectos no que diz respeito a lei anterior, ampliando o conceito de abuso a autoridade e responsabilizando uma gama maior de servidores públicos responsáveis pela as aplicações das leis, indo de policiais militares até juízes. Porém, por outro lado, muito se questionou as motivações a que levaram a sua elaboração, assim com a visão prática dessa nova legislação.

Antes mesmo de entrar em vigor, a lei nº 13.869/19 foi alvo de várias ações diretas de inconstitucionalidade, com alegações de ser usada como fator de repressão às autoridades investigativas da operação “Lava Jato” e das operações subsequentes a essa que deram origem a maior investigação de corrupção na história do país.

Não bastasse isso, também foi um alvo de constantes criticas por parte da doutrina nacional, visto que logo em seu artigo 1º e demais parágrafos, trás condições de aplicação específicas para os tipos penais nelas embarcados, ou seja, prevê um dolo muito específico a ser observado o qual acaba dificultar sua interpretação e aplicação prática, levando por sua ineficiência.

O presente artigo objetiva analisar o caminho histórico do abuso de autoridade no país, a nova lei tem efetividade prática? Houve uma evolução da antiga para a nova lei? para concretizar isso, o trabalho visa analisar brevemente a antiga lei 4.898 de 1965 e seus artigos, logo após adentrar na nova legislação e observar como o legislador abordou as condições de aplicação dos seus conceitos e destinação de seus tipos penais objetivos e por fim verificar como tem se comportado a jurisprudência em relação a nova lei.

O desenvolvimento terá como base a legislação vigente referente ao abuso de autoridade, assim como a antiga lei e também as leis contidas nos antigos códigos penais que faziam referência ao abuso de autoridade, bem como a revisão bibliográfica a respeito do tema, objetivando analisar de forma crítica a praticidade do tema em território nacional.

  1. CONCEITO DE ABUSO DE AUTORIDADE

Ao agente público é atribuídas funções pelo estado com o intuito de sempre servir a finalidade pública de forma isonomia e imparcial, não pertencendo ao agente que exerce a função o poder atribuído, mas sim ao cargo por ele exercido, dessa forma não pode o agente público dispor ao seu mero prazer das suas prerrogativas, pois essas continuam a pertencer ao estado, quando há um rompimento da ordem jurídica ou uma exceção indevida de tais poderes ai será configurada o abuso de poder.

Todo abuso de autoridade é também um abuso de poder, ensina Caio Tácito que “o abuso de poder surge com a violação da legalidade, pela qual se rompe o equilíbrio da ordem jurídica” [2], dessa forma, doutrina também Luiz Regis Prado:

“o abuso de autoridade ocorre quando o agente excede ou faz uso ilegítimo do poder de fiscalização, assistência, instrução, educação ou custódia derivado de relações familiares, de tutela, de curatela ou mesmo de hierarquia eclesiástica” (PRADO, 2005, p. 531).

Segundo a nova lei 13.869/19 define os crimes de abuso de autoridade como os cometidos por agente público, que podem ser servidores ou não, que durante ou por causa de suas funções, abuse da autoridade que lhe foi atribuída. A referida lei é composta por pressupostos subjetivos e objetivos, os subjetivos são: a finalidade específica de prejudicar outrem, ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal. Já os objetivos dizem respeito ao tipo penal formal trazidos em seu capítulo VI – dos crimes e das penas. Vale lembrar que tal dispositivo legal não trouxe incidência da forma culposa, isto é, não foram responsabilizados os abusos por imperícia, imprudência ou negligência, nem tão pouco prevê o crime de hermenêutica.

O intuito do legislador com a criação da lei foi punir o excesso e o desvio de poder, mantendo-se o desempenho correto das funções de natureza pública. Visto que, ao desviar ou extrapolar o exercício de sua função, o sujeito não apenas peca contra direito positivado e com sua função de obediência ao código, como também traí a confiança nele depositada pela sociedade e viola o poder que lhe foi investido pelo povo, uma vez que os servidores possuem o interesse de bem servir à sociedade. (CAPEZ, 2020)

Apesar de ter sido criada em um período conturbado na política brasileira, onde se afirma ter sido uma forma de repressão pelas investigações de corrupções, principalmente durante a investigação da “lava jato” e também não observar pela boa conduta legislativa e científica do direito, a lei 13.869 de 2019 continua sendo de importante relevância no ordenamento jurídico nacional, uma vez que inovou em diversos tipos penais referente ao tema e também está muito à frente do que a antiga e quase esquecida lei 4.898 de 1965.

    1. Relação entre direitos fundamentais e abuso de autoridade.

Os estados modernos, desde as revoluções burguesas, passaram a reconhecer o status de cidadania ao indivíduo, conferindo-lhe direitos em face do estado e limitando a atuação estatual na vida desses. Aquelas revoluções e em especial a Inglesa, Americana e Francesa são marcos para a concepção da cidadania e instituição dos direitos fundamentais (LIMA, 2016, p.96).

Com as concepções das teorias contratualistas colocando o indivíduo antes do estado, concretiza-se a ideia de que o estado deveria servir ao indivíduo e não o contrário. Tais ideais influenciaram em grande escala as declarações americanas e francesas de 1776 e 1789, respectivamente. Essa ideia de cidadania e proteção aos direitos fundamentais é concretizada pelos movimentos de internacionalização dos direitos fundamentais, principalmente após as grandes guerras mundiais, das quais foram reconhecidas como momento histórico para a validação desses direitos.

Toma – se como exemplo a segunda guerra mundial, a qual houve um desprezo do ser humano pelo aparato estatal, com a morte de mais de 6 milhões de judeus e mais de 70 milhões de vidas perdidas, fomentando um debate ainda mais ativo sobre a atuação estatal, ocasionando em um projeto de paz e segurança internacional duradouro entre as nações.

Desse ponto, obtêm-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) proclamada pela Assembleia Geral das nações unidas em Paris, no dia 10 de Dezembro de 1948, passando a ser uma referência objetiva dos demais países a ser alcançada para que os direitos fundamentais sejam preservados.

Já quando se fala no plano das américas, nasce a Organização dos estados americanos (OEA), no ano de 1948, ano esse o qual foi também editado a Declaração americana de direitos e deveres do home, aprovada na nona conferência internacional americana em Bogotá, realizando vários direitos fundamentais do cidadão.

Nos anos seguintes houve uma escala crescente de conquistas referentes aos direitos do cidadão, como o sistema regional de proteção aos direitos humanos, assinada na conferência especializada interamericana sobre Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica, em Novembro de 1969 e várias outras conquistas envolvendo os direitos humanos e do cidadão.

Todas essas conquistas passadas, acabaram por culminar em um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, previstos na constituição federal de 1988 e o tratamento penal do abuso de autoridade se insere nesse caminho evolutivo.

Na constituição de 1988, observa-se em seu preambulo a preocupação com os direitos fundamentais, dos quais trazem: "o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. Já em seu artigo 5º prevê o rol dos direitos e garantias fundamentais, que requerem uma atuação negativa do estado sobre o indivíduo, ou seja um situação de não fazer ou de não intervir, dos quais não são taxativos, contendo, em diversas partes da carta magna de 88, outros inúmeros direitos e garantias fundamentais.

Dessa forma, “o poder delegado pelo povo a seus representantes não é absoluto, conhecendo várias limitações, inclusive com a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas do cidadão relativamente aos demais cidadãos e ao próprio Estado” (MORAES, 2007, p.25 apud MARCHINI NETO, 2012, p. 82)

Sendo assim, a abordagem da lei penal brasileiro sobre o tema acompanha a ideia internacional de proteção as prerrogativas fundamentais, especialmente no que diz a respeito aos direitos referentes à cidadania, do indivíduo, da liberdade, à intimidade, à dignidade, ao domicílio e sigilo profissional, entre outros. Porém no brasil já se mostrava a importância com o tema o código de 1830, logo após, passando pelo código de 1890, e com previsão, também, mais apurada pelo código de 1940, chegando na primeira legislação específica sobre o tema em 1965 com a lei 4.898, que apesar de muito vaga e esquecida pelos os operadores do direitos e a sociedade, foi considerada um marco legal, para enfim chegar a lei 13.869 de 2019.

A novíssima lei 13.869/19, apesar das polêmicas sobre sua formação e de termos vagos sobre os incidentes subjetivos dos tipos penais também pode ser vista como uma oportunidade valiosa para a responsabilização e a melhora do aparelho estatal, visto que é um campo fértil para futuras melhoras por parte dos poderes que compõe o estado.

    1. Evolução histórica da lei de abuso a autoridade.

A lei vigente de abuso de autoridade é a lei 13.869/19, a qual tomou muita notoriedade dos cidadãos e da doutrina nos últimos anos tanto pelo assunto a qual se trata, como também pelo seu processo histórico que o país vinha passando. Entretanto esse não é um assunto recente no direito penal, possuindo como pioneiro a lei 4.895 em 1965, porém a figura do abuso de poder tem origens ainda mais antigas, através do código de 1830, no império [3] e, antes disso, naconstituiçãoo de 1824.

Antes da independência, o príncipe regente D. Pedro I decretou, em 23 de maio de 1821, uma medida visando proteger a liberdade dos súditos [4]. Na constituição de 1824, seu artigo 179, inciso XXIX, estava previsto que: “empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticadas no exercício de suas funções”, já no código de 1830, em seu artigo 275, havia uma agravante para os crimes cometidos com abuso de poder por empregado público e a lgumas figuras penais próprias para quem praticasse com esse abuso. Alguns desses crimes eram: carta destinada a particular com abuso de poder pelo empregado público (artigo 129, 9º), Expedir ordem ou fazer requisição ilegal (artigo 142). Vale salientar que o referido código, apontava a figura do abuso de poder com o “uso do poder (atribuído pela lei) contra os interesses públicos ou em prejuízo de particulares, sem que a utilidade pública o exija” (Código Criminal, 1830).

O código Penal de 1890 praticamente repetiu o que já trazia seu código anterior, os quais foram expedir ordem ou fazer requisição ilegal (artigo 228), Exceder a prudente faculdade de repreender, corrigir ou castigar, ofendendo, ultrajando, ou maltratando por obra, palavra, ou escrito algum subalterno ou dependente ou qualquer outra pessoa, com quem se trate em razão de ofício (artigo 230) e Cometer qualquer violência no exercício das funções do emprego ou a pretexto de exercê-las (artigo 231).

Já no código Penal de 1940, e ainda vigente, há três passagem que podem ser destacadas das quais versam sobre o crime de abuso de autoridade, a primeira é como uma circunstância agravante, prevista no artigo 61, II, f, para quem comete o crime com abuso de autoridade, a segunda também um agravante, no artigo 61, II, g, para quem comete qualquer crime com abuso de poder e a terceira, um figura típica específica a qual foi revogada pela atual lei de abuso de autoridade, que era contida no artigo 350, no capítulo dos crimes contra a administração pública, prevendo-se o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder.

O artigo 350, revogado pela lei 13.869 de 2019, previa em seus artigos a criminalização dos atos que ordenasse ou executasse prisão sem as formalidades legais, prolongasse execução de pena ou de medida de segurança de além do tempo regular, submetesse pessoa presa a vexame ou a constrangimento ilegal e quem efetuasse diligência com abuso de poder.

Perceba que o código diferenciou as duas agravantes antes cidades, do artigo 61, inciso II, também trouxe um tipo penal próprio para o abuso de poder, demonstrando um cuidado a mais com tal prática funesta. É preciso, portanto, compreender as duas figuras agravantes, previstas no código penal.

A primeira circunstância agravante é a prevista no artigo 61, inciso II alínea f prática do crime com o abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica, aqui a doutrina considera essa prática ligada ao âmbito das relações privadas. Doutrina Heleno fragoso que “a autoridade que aqui se considera é a que decorre de relações privadas que estabelecem dependência da vítima em relação ao agente” (FRAGOSO, 2004, p. 423), com a alteração trazida pela lei 11.340 de 2006, reforça-se a ideia doutrinária ligada ao âmbito privado e de coabitação.

A segunda circunstância, prevista no artigo 61, inciso II, alínea g consiste no ato com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão, dessa forma, considera-se que o cargo e oficio como atividades públicas, enquanto que o ministério se liga a atividade religiosa e profissão define atividade que requer habilitação especial (SANTOS, 2007, p. 576).

Para Edmundo Oliveira a doutrina não define bem o que é abuso de poder, apenas menciona o uso ilegal do poder atribuído a determinada autoridade (OLIVEIRA, 1998, p.419), claro que tal agravante não recairá nos crimes praticados por agente público quando o abuso de autoridade seja inerente ao crime, por for do princípio do no bis in idem.

Por fim, após toda essa trajetória legislativa referente ao abuso de poder, tem-se, em 1965, a lei nº 4.898 , a legislação pioneira por tratar especificamente sobre o abuso de autoridade em lei autônoma, apesar de que tenha sido promulgada em um período conturbado da história, em plena ditadura militar, e trazido consigo imprecisões e penas muito brandas o que gerou muita crítica por parte da doutrina.

    1. Sobre a Lei nº 4.898 de 1965.

Em 9 de dezembro de 1965, foi sancionada a primeira lei que tratava especificamente sobre o tema de abuso de autoridade no Brasil, derivada do projeto de lei nº 952 de 1956, de autoria do deputado Bilac Pinto. O tema foi debatido por 10 anos antes de ser sancionado e aplicado. Apesar dos termos indeterminado e de suas sanções brandas, a lei foi um marco legal contra os abusos do estado contra o indivíduo.

Para Alessandra Alves Bueno Rosa, inegavelmente, esse diploma surge para impedir as investidas abusivas de agentes do estrato com o cidadão (ROSA et ali, 2020, p. 31), já segundo Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passo de Freitas:

“Essa lei tem como finalidade prevenir os abusos de autoridade, dando, a quem quer que seja, o meio necessário para fazer valer os direitos e garantias previstos na Constituição, sendo um instrumento da mais alta importância na defesa dos direitos do homem” (2001, p. 20).

Porém, seria válido questionar sobre a eficiência dessa lei, pontualmente, no começo de um regime militar no país, que entrou em vigor em 1964. Do que adiantaria uma lei que trata sobre o abuso de autoridade em um governo no qual seriam violados vários direitos e garantias fundamentais? através de atos institucionais que levariam para a cassação de legisladores e de Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Contudo, é necessário analisar o contexto histórico anterior a sua criação, a razão deriva do ressentimento do país com os efeitos políticos do final da década de 50, decorrentes do Estado Novo, implementado por Getúlio Vargas e das terríveis restrições a garantias fundamentais causadas pela sua ditadura. Dessa forma, é correto afirma que a lei de nº 4.898 de 1965, foi elaborada olhando “para trás”, por decorrência de um trauma passado não distante da sua formação.

Já em seu 1º e 2º artigos [5] a lei reforça o direito de petição aos órgãos públicos tratado na constituição de 1946, em seu artigo 141, § 4º. Tal reforço vem na forma do direito de representação dirigida à autoridade superior que tiver competência legal para aplicar a sanção necessária, assim como poderia dirigir ao Ministério Público para que esse desse a iniciativa ao processo contra a autoridade culpada.

No seu artigo 3º a lei trata sobre as atitudes considerada como abuso de autoridade, entretanto o código especial não trouxe especificamente condutas concretas e de fácil entendimento, em vez disso, previu apenas como abuso de autoridade a inviolabilidade de alguns direitos, como por exemplo à inviolabilidade ao domicílio; ao sigilo de correspondência; a liberdade de expressão; a locomoção; ao livre exercício religioso, entre outros, previstos nas alíneas do artigo 3º da lei.

Em seu artigo 4º a lei conjeturou mais alguns crimes, como ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidade legais (alínea a), previu, também, medidas como deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa (alínea c). Ademais previu crimes contra o patrimônio da pessoa presa em suas alíneas f e g, assim como inovou com o tipo penal que protegia a própria dignidade do preso, em sua alínea b.

Por fim, previu, ainda, um tipo penal genérico, quando praticados por agentes públicos, tratando-se do ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal (alínea h).

Seria correto dizer que a lei 4.898/65 foi um avanço na conquista de direitos e da democracia, pois ela teve o mérito de simbolizar o combate ao abuso de autoridade como uma lei específica do tema, definiu condutas penais típicas e ampliou direitos aos cidadãos, assim como previu um procedimento penal próprio, aproximando, em tese, o cidadão aos órgãos públicos responsáveis por combater essas condutas abusivas.

Porém é verdade também afirmar que essa lei teve pouca (ou nenhuma) eficiência prática, pois seus termos, além de muito indeterminados e genéricos, suas penas também eram brandas, prevendo sanção penal de Multa (artigo 6º, § 3º, alínea a), detenção por dez dias a seis meses (artigo 6º, § 3º, alínea b), e que se consideraria mais grave, a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer serviço público por até três anos (artigo 6º, § 3º, alínea c).

A Antiga Lei de abuso de autoridade apenas foi revogada recentemente pela lei 13.869 de 2019, possuindo poucas atualizações em seus textos legais, com pouquíssimos casos de aplicações práticas e, menos ainda, de condenações por algum de seus tipos penais, isso levou o doutrinador Renee de Souza, assim como vários outros, a considerar a lei tímida em decorrência das penas quase insignificantes e que facilmente prescreviam (SOUZA, 2020, p. 13).

Por isso, devido a inexpressividade da lei 4.898 de 1965 e pela ignorância da população frente a essa, carecia-se de um novo diploma que tomasse o lugar da antiga lei, diante disso surgiu a nova lei de abuso de autoridade, de número 13.869 de 2019, que revogou a antiga lei, trouxe algumas atualizações no código penal, atualizou as penas e ampliou a gama dos crimes cometidos com abuso de autoridades no Brasil.

  1. A LEI 13.869.

O processo legislativo que levou a atual lei de abuso de autoridade começou efetivamente em 2016, com o projeto de lei nº 280 [6], de autoria do Senador Renan Calheiro, porém antes disso, no ano de 2007, o, na época, Senador Demóstenes Torres propôs o projeto de lei no Senado de nº 171/07, com o intuito de atualizar a antiga lei 4.898/65, sendo aprovada pelo senado apenas em 2009, o qual foi enviado a câmara dos deputados, mas não foi deliberado, sendo posteriormente apensado ao projeto de lei nº 6.361 de 2009 e logo após, ao projeto de lei nº 7.596 de 2017.

Entretanto o projeto de lei 280 do Senador Renan Calheiro foi posteriormente prejudicado, depois da aprovação de um projeto substituto. O projeto de lei do Senado nº 85 [7] de 2017 o qual foi aprovado e convertido na atual lei nº 13.869 de 2019. Para que se possa entender melhor o motivo que levou a criação e atualização da legislação referente ao abuso de autoridade é necessário, primeiro, entender o contexto juspolítico à época de sua concepção.

No dia 17 de Março de 2014, foi deflagrada a primeira operação, do que, segundo o Ministério Público Federal, seria “a maior iniciativa de combate a corrupção e lavagem de dinheiro da história do Brasil” que posteriormente levaria o nome de “operação Lava Jato”, onde apontou a atuação de quatro doleiros [8], e através de uma delação premiada, advinda do doleiro Alberto Youssef, foi desencadeada uma série de prisões e investigações associadas a operação Lava Jato.

Inúmeras prisões foram realizadas, as denúncias envolviam políticos e empresas estatais, como a Petrobrás. Na 8º Fase da operação, no dia 12 de Março de 2015 o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) determinou a investigação de Governadores citados na Lava Jato a pedido da Procuradoria – Geral da República.

Apesar de que o intuito aqui não ser de exaurir todo conteúdo histórico relacionado a criação da lei, mas apenas fazer uma breve avaliação do que levou a sua criação, é possível observar que grandes figuras políticas e empresariais foram atingidas pelas investigações da operação lava jato.

E em meio a esse contexto político conturbado, foi apresentado o projeto de lei 280, que cominou na atual lei nº 13.869, como já mencionado no seu processo legislativo supracitado. Tudo isso, motivou várias críticas da doutrina devido a origem espúria da aprovação desse projeto (GRECO, et al, 2020, p.13.), um deles foi o doutrinador Renato Brasileiro de Lima asseverando que

Contaminado por centenas de casos de corrupção e sob constante alvo da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário na operação “Lava Jato”, o Congresso Nacional deliberou pela aprovação ‘a toque de caixa’ do novo diploma normativo com a nítida intenção de buscar uma forma de retaliação a esses agentes públicos, visando ao engessamento da atividadefim de instituições de Estado responsáveis pelo combate à corrupção. Prova disso, alias, e não parece ser mera coincidência, é que a sessão conjunta do Congresso na qual foram derrubados 18 itens dos 33 vetados pelo Presidente da República ocorreu menos de uma semana depois que o Min. Roberto Barroso determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão no Congresso Nacional contra o então líder do governo, Senador F.B.C. (LIMA, 2020, p. 24).

Antes de entrar em vigor a lei de abuso a autoridade foi alvo de sete ações diretas de inconstitucionalidade, sendo a ADI 6301, proposta pelo partido PODEMOS, ADI 6238, proposta pelo pela CONAMP, ANPT e ANPR, ADI 6239, proposta pela AJUFE, ADI 6240, proposta pela ANFIP, ADI 6234, proposta pela ANAFISCO, ADI 6236, proposta pela AMB e ADI 6266, proposta pela ADF.

Com tantas ações assim percebe-se o âmbito de questionamento que se formou entre vários partidos e organizações contra a nova lei de abuso a autoridade, revelando uma preocupação com sua efetividade, a motivação por trás de sua proposição e a rapidez com a sua aprovação.

Apesar da natureza espúria, e vingativa da norma, a Lei é, inegavelmente, bem-vinda e oportuna, além de necessária, em decorrência do enorme desrespeito do estado com as prerrogativas e garantias constitucionais. E embora possua muitas lacunas e termos vagos, não se pode negar sua legitimidade para com a população, pois apesar de tudo, ela cumpriu formalmente todos os requisitos legislativos que são ordenados em nossa constituição.

Se de um lado a lei parece oportunista e vingativa, de outro ela pode ser vista como uma importante base contra o abuso do estado e dos agentes estatais contra o indivíduo, vale lembrar que abusos de autoridades são praticas que violam os direitos fundamentais do cidadão que certamente encontra-se em situação de vulnerabilidade perante o estado, sendo assim doutrina Luiza Gorga que

Perceba-se que, desde sempre, há claro conflito entre os direitos dos cidadãos e os arbítrios e excessos de agentes estatais, de tal modo a justificar a edição de norma que pune tais agentesem todos os âmbitos cabíveis, trazendo inclusive a seara criminal, em demonstração de que, em tais casos, sua gravidade é tal que suplanta o princípio da subsidiariedade que rege as normas penais (GORGA, 2018, p.134).

Portanto, é necessário entender que a nova lei abarcou como vítima qualquer cidadão, desde aqueles que segue a moral irrestritas das leis, até aqueles que estão a beira do direito penal, como detentos e retidos. É importante entender também que os agentes públicos abarcados nos tipos penais não são aqueles que cumprem com seu dever legalmente, ou justificam suas ações com a interpretação da norma, mas sim os agentes que ultrapassem ou desviem das suas funções.

Por fim, a lei 13.869 de 2019 pode também ser vista como um “tiro no pé” para aqueles agentes que tramaram ou pretendiam algum tipo de vingança referente as investigações da lava-jata. Uma vez que por todo seu contexto conturbado e a pressa para sua aprovação e sanção, os mesmos textos vagos e indefinidos já comentados nesse artigo inviabilizam sua aplicação pois dificulta a interpretação da norma para os operadores do direito.

No fim quem sai perdendo, novamente, é a população, pois com a dificuldade de interpretação da norma, agentes inocentes acabam por ser condenados e os culpados não encontram sua punição.

Sendo assim, é preciso analisar os bens jurídicos tutelados pela nova lei de abuso a autoridade, assim como seus tipos penais e agentes responsáveis, para que por fim, se possa analisar se ela realmente trouxe algum benefício ou não para a sociedade.

    1. Os sujeitos da lei nº 13.869.

Primordialmente é necessário entender quem pode ser responsabilizado pela lei de abuso a autoridade. O artigo 1º da lei prevê, que cometerá abuso de autoridade, os agentes públicos, servidores ou não, que no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

O artigo 2º trás a definição de agente público, estabelecendo-o como tal, todo servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, estendendo a compreensão para servidores militares ou equiparados, e para os membros de todos os poderes do estado.

Observa-se uma clara preocupação do legislador na definição do que seria agente público, para que não restassem dúvidas aos operadores do direito de quem poderia ser responsabilizado. Em seu parágrafo único, a lei se dispôs a definir como agentes públicos aqueles que exerçam, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput do artigo 2º.

A doutrina se complementa quando se propõem a definir o conceito de agentes públicos, Celso Antônio Bandeira de Mello enfatiza que todos os agentes públicos:

“(...) estão sob um denominador comum que os radicaliza: são, ainda que alguns deles apenas episodicamente, agentes que exprimem manifestação estatal, munidos de uma qualidade que só possuem porque o Estado lhes emprestou sua força jurídica e os habilitou a assim agirem ou, quando menos, tem que reconhecer como estatal o uso que hajam feito de certos poderes” (MELLO, 2020, 15).

Já Hely Lopes Meirelles compreende que agentes públicos são todas pessoas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal. Consoante o autor, os agentes públicos integram cinco espécies: a) agentes políticos; b) agentes administrativos; c) agentes honoríficos; d) agentes delegados; e e) agentes credenciados. (MEIRELLES, D. administrativo, p.13.).

Outros doutrinadores como Celso Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, usam as alterações trazidas pela constituição de 1988 para formarem suas definições. Segundo Celso Bandeira, adotando a sistematização de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, com alterações impostas pela Constituição da Republica de 1988, classifica os agentes públicos em: a) agentes políticos; b) agentes honoríficos; c) servidores estatais; e d) particulares em colaboração com o Poder Público (BANDEIRA DE MELLO, 2016, p.254.).

Para Di Pietro que também qualifica em quatro categorias, a gente público são: a) agentes políticos; b) agentes honoríficos; c) servidores estatais; e d) particulares em colaboração com o Poder Público (DI PIETRO,2016, p.2).

Diante do exposto, nota-se uma evolução em comparação a antiga lei 4.898/65, pois a antiga legislação dispunha em seu artigo que os responsáveis seriam apenas as autoridades “quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.” (BRASIL, 1965)”

Percebe-se que os legisladores, na nova lei, estavam atentos para os conceitos doutrinários de agente público, tanto que muitos desses foram incorporados a nova lei, afim de abarca todas as classificações daqueles, os quais podem surgir como sujeitos ativos dos crimes da lei 13.869.

Em contra partida, os sujeitos passivos imediatos da lei de abuso a autoridade são as pessoas (físicas e jurídicas), e o estado que aqui se perfaz como o sujeito passivo mediato.

É importante observar que tanto as pessoas que possuem uma conduta ilibada, quantos os que estão as margens do direito penal podem ser vítimas dos abusos, pois tais violações são de cunho fundamentais, dizendo a respeito de garantias constitucionais como por exemplo o crime previsto no artigo 12, inciso IV da lei: “prolonga a execução de pena privativa de liberdade, de prisão temporária, de prisão preventiva, de medida de segurança ou de internação, deixando, sem motivo justo e excepcionalíssimo, de executar o alvará de soltura imediatamente após recebido ou de promover a soltura do preso quando esgotado o prazo judicial ou legal”, comtempla-se aqui uma preocupação em garantir o direito de liberdade do preso, um direito fundamental, previsto na constituição federal.

Por fim, é possível notar que o artigo 2º e seus incisos e parágrafo não são taxativos, ou seja, são exemplificativos, abrindo uma margem maior de interpretações fazendo com que novas figuras ou conceitos que nasçam na doutrina ou na jurisprudência, possam se encaixar no tipo penal.

    1. Condições de aplicabilidade.

No Brasil, adota-se a teoria analista do crime, a qual prevê que a infração penal é composta pelos elementos: do fato típico, do ilícito e do culpável. O fato típico, que para os fins desse artigo, tem uma especial importância, pode ser definido como uma conduta produtora de um resultado reprovável pelo Direito Penal.

Na ótica de Hans Welzel, fundador da teoria finalista, no fato típico “a conduta é dirigida a uma finalidade antijurídica e reprovável". O fato típico se subdivide ainda em conduta, tipicidade, nexo de causalidade e resultado.

Inserido no fato típico, encontra-se o dolo, que segundo a teoria finalista, localiza-se incluso no fato típico mais precisamente na conduta (divisão adotada pela melhor doutrina), caracterizado como a parte subjetivo do fato típico. É subjetivo pois se refere à vontade consciente do agente em realizar o ilícito penal.

Quando se trata do elemento subjetivo do crime é preciso entender que entre o resultado e a consequência da conduta há um vínculo de natureza psicológica, partindo da vontade e da consciência do agente. Portanto, para que seja repreendido pelo direito penal, o resultado lesivo do agente deve ser previsto (dolo eventual), desejado (dolo direto) ou, pelo menos, decorrente de uma ação imprudente (culpa).

Nesse contexto, doutrina Cleber Masson que o dolo precisa englobar todas as elementares e circunstâncias do tipo penal. Se restar provado a sua inexistência acerca de qualquer parte do ilícito penal, esse incidirá no erro de tipo. Assim, por exemplo, no crime de homicídio, é necessário que o agente possua a consciência de que com sua conduta “mata alguém”, e tenha vontade de fazê-lo (MASSON: 2013, p. 275).

Acontece que, por vezes, ao lado do elemento subjetivo (dolo), a legislação prevê também, no bojo do tipo penal, elementos subjetivos especiais, no qual amplifica o aspecto subjetivo do tipo penal. Refere-se aquilo do que a doutrina costuma chamar de “especial fim de agir”

Vale dizer que a nova lei 13.869 exclui a figura culposa e trás apenas crimes dolosos (SOUZA, 2020, p. 17) e inseriu, também, algumas condições subjetivas especiais a serem cumpridas, para que o sujeito possa se moldar aos tipos penais da lei. Nesse quesito há uma grande discussão doutrinaria sobre o tema, pois, restadas descaracterizadas a presença desses elementos subjetivos especiais, será impossível a responsabilização penal do agente pelo crime a ele imputado.

O parágrafo 1º do artigo 1º da lei, prevê em sua redação o seguinte texto: “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.” Tratam-se dos chamados elementos subjetivos especiais do tipo que, além do dolo (direito ou eventual), são exigidos para configuração dos crimes previstos na nova lei de abuso a autoridade.

    1. Elementos subjetivos especiais

Visto a importância dessas condições, passaremos a trata-las individualmente nesse artigo, porém o intuito aqui não é exaurir todo seu entendimento, pois isso demandaria um trabalho específico a parte, mas sim exemplificar e esclarecer o que cada uma desejar (ou gostaria) de representar.

Os artigos 319 e 311-A do código penal, que tratam respectivamente sobre a prevaricação e a fraude em certames públicos já tratavam sobre os elementos da satisfação pessoal e sobre o benefício a si próprio ou a terceiro, portanto são figuras já conhecidas no Direito Brasileiro.

Para Gustavo Badaró, satisfação pessoal “é aquela que gera contentamento no agente, por representar algo que se desejava ou esperava. Podem ser variadas as razões de satisfação pessoal: a teimosia ou obstinação, a veleidade, a maldade ou crueldade, o preconceito, o desejo de humilhar, etc”. (2020, p. 25).

O problema que a doutrina e a jurisprudência encontram aqui é pela comprovação desses elementos, assegura Renee do Ó Souza tratar - se de “expressão aberta que pode gerar manipulações e ambivalências significativas, dificuldade que desembocará no ônus da prova” (2020, p. 20). Já na jurisprudência, muitos processos são trancados ou os réus são absolvidos quando da incapacidade de comprovação ou a não descrição dessa condição, como aconteceu no Supremo Tribunal Federal, v. STF – HC 81504-SP, na 1ª Turma, Relator Ministro Ilmar Galvão, DJ de 31.05.2002.

Já sobre a exigência específica de prejudicar outrem, trata-se do dano causado, quando a atuação do agente, diversas são as consequências. Geralmente causando dano ao particular que esta sendo submetido ao estado. Aqui a intenção foi combater aquela atitude que extrapole ou desvie o mero exercício regular do direito, de uma conduta aparentemente legal, mas que no fim visa o prejuízo de outrem. Como no exemplo de Renato Brasileiro de Lima, seria o delegado que inicia a instauração do inquérito contra adversário político com a intenção de prejudica-lo às vésperas de uma disputa eleitoral, sabendo que não há indício que fundamente aquele ato.

Por fim, ao analisarmos o “mero capricho” previsto na lei, alguns doutrinadores definem que “o capricho é a cisma, a vontade birrenta ou arbitraria, o desejo injustificado” (SOUSA; FONTES; HOFFMANN, 2020, p. 343). Tome como exemplo um agente policial, que ao prender alguém, deixe de comunicar, imediatamente, a prisão a qualquer da família, simplesmente porque o suspeito tenha o feito correr por matas e dificultado a prisão e por conta disso, ele decide não comunicar a família para que o preso fique isolado. Em suma, o mero capricho “É a vontade repentina não justificada” (LIMA, 2020, p. 57).

Por conseguinte, com a análise dos tipos penais subjetivos, nota-se que os tribunais encontram certas dificuldade no processo penal que envolve o abuso de autoridade, não obstante para que se possa prosseguir com a responsabilização de quem quer que seja, no crime de abuso de autoridade, é necessário que o Ministério Público, na denúncia seja descrito, detalhadamente, na peça inicial acusatória os fins que especiais de agir do agente público para o cometimento do crime, ou seja, deverá ser exposto o fim específico ao qual o agente agiu para o cometimento do delito.

A questão complica-se ainda mais com a comprovação de tais fins específicos, ensina Renee do Ó Souza que:

A questão se dramatiza na medida em que os elementos subjetivos especiais contidos no final da norma, “mero capricho” e satisfação pessoal”, são expressões abertas, quase indemonstráveis o que pode gerar manipulações e ambivalências significativas, dificuldade que desembocará no ônus da prova. [...] a demonstração destes estados anímicos específicos, dada a impenetrabilidade da mente do agente, fator que levou à normatização e objetivação do dolo, principalmente em razão da adoção da teoria finalista da ação, deve ser revelada por meio de elementos externos, o que na maioria das vezes permite que sobre eles recaia uma variação interpretativa e valorativa (SOUZA, 2020, p. 20).

Portanto, é necessário buscar o embasamento probatório para que se possa responsabilizar os culpados e evitar o cometimento de injustiças com aqueles que sempre agiram de boa fé. Até aqui é percebido as contradições da nova lei de abuso a autoridade e como ela demonstra-se ser mais uma barreira do que um caminho facilitador.

    1. Tipologia penal da lei 13.869.

Façamos agora uma breve analise dos tipos de sanções previstas na lei 13.869/19. O intuito aqui é discorrer rapidamente sobre os crimes, o processo penal que a envolve e as sanções administrativas e civis da lei.

Referente a ação penal, a nova lei prevê, em seu artigo 3º, que os crimes nela previsto são de ação penal pública incondicionada, ou seja, não precisa de representação e nem de queixa crime para que a ação contra o agente tenha início. Segundo Fernando da costa Tourinho Filho:

“Se a autoridade policial souber, por meio de suas atividades de rotina, da existência de um crime, cumprir-lhe-á de logo examinar se trata de crime de ação pública incondicionada. Sendo-o, a Autoridade Policial terá o dever jurídico de instaurar o inquérito, isto é, de determinar sejam feitas investigações para se apurar o fato infringente de norma e sua autoria, e isso por iniciativa própria, sem necessidade de qualquer solicitação nesse sentido, vale dizer, de ofício. (FILHO, 2014, 255)

Entretando, poderá ainda o ofendido intentar ação privada subsidiária da pública, se essa não for proposta no prazo legal, cabendo ao ministério público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recursos e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal, assim como preconiza o § 1º do artigo 3º. Tudo isso em um prazo de 6 meses, a contar da data em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia, de acordo com o § 2º do mesmo artigo.

Já referente ao procedimento adotado, o capítulo VII, em seu artigo 39, determina que sejam adotados, no que couber, as disposições do código de Processo Penal (DL nº 3.689), assim como a lei de Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95).

Superado o entendimento sobre a ação penal e o procedimento adotado, passamos a fala sobre as sanções de natureza administrativas e civis, contidas no capitulo IV, intitulado como “das sanções de natureza civil e administrativa” mais precisamente do artigo 6º ao 8º.

Nessa parte a lei trás a previsão legal de que as sanções de natureza civil ou administrativa serão independentes das penas previstas na lei [9], assim como também diz que à responsabilidade civil e administrativa são independentes, mas que uma vez resolutas o debate sobre a autoria dos fatos ou sua existência na esfera penal, não mais poderão ser mais impugnadas nas demais esferas [10]. Finalmente, a lei trás em seu artigo 8º a exclusão da responsabilidade civil e administrativa quando presente algumas da excludentes de ilicitude [11].

O capítulo VI, denominado “Dos crimes e das Penas” prevê, objetivamente, os crimes de abuso de autoridade que vai do artigo 9º ao artigo 38º, totalizando 25 artigos, pois entre eles há alguns que foram vetados pelo presidente à época da sua sansão.

Ao analisar-se os tipos penais previsto, pode-se defini-los e dividi-los da seguinte forma: Os crimes relativos ao exercício do direito de defesa acusado, previstos nos artigos 18, 19, 20 e 32, os crimes relativos à liberdade individual, encontrados nos artigos 13, 15-A e 33, os crimes que dizem respeito ao direito de liberdade, contidos nos artigos 9º, 10 e 12, os crimes relativos à dignidade da pessoa humana, previstos nos artigos 21, 27 e 30 e os crimes relativos ao andamento de investigação criminal, presentes nos artigos 16, 23, 24, 29 e 31.

Além desses crimes, há outros tipos penais relativos à fruição de garantias fundamentais diversas, como o crime relativo à proteção da intimidade (artigo 28), à inviolabilidade do domicílio (artigo 22), ao direito à duração razoável do processo (artigo 37), à proteção do sigilo de comunicação e dados (artigo 41) e ao sigilo profissional (artigo 15), à Presunção de inocência (artigo 38), à proteção do patrimônio (artigo 36), à obtenção/uso de prova ilícita (artigo 25) e às Prerrogativas da advocacia (artigo 43).

Além disso, a nova lei fez algumas alterações em outros códigos, como por exemplo, alterou o artigo da lei 7.960 de 1989 e o artigo 10 da lei 9.296 de 1996. Trouxe novidades também no Estatuto da Criança e do Adolescente, implementando o artigo 227-A e inseriu o artigo 7-B na lei nº 8.906 de 1994.

A antiga lei direcionava os atos praticados inteiramente a figura policial, entretanto, como já tratado no tópico específico, a lei 13.869 de 2019 ampliou o rol para todas as figuras que se encaixem como agente público. Nesse aspecto, é possível associar os crimes com diversas figuras públicas abarcadas na lei.

Fazendo um estudo dos artigos, podemos concluir que podem ser praticado pelos magistrados os crimes previstos nos artigos 9º, 10º, 15, 20, 28, 29, 36, 37 e 43, já os possíveis de serem cometidos por membro de Ministério Público temos os crimes previstos nos artigos 30 e 43. A serem possivelmente praticados por autoridade policial, têm-se os crimes dos artigos 12, 15, 16, 18, 19, 23, 25, 27, 28, 29, 31, 32, 38, 41 e 43. Por fim, como possíveis de serem praticados por policiais em geral, têm-se os crimes descritos nos artigos 13, 16, 22, 24 e 25.

Por fim, observar-se uma atualização drástica referente ao assunto de abuso a autoridade, a antiga lei tinha pouca ou nenhuma preocupação com a repercussão social que causaria, também foi pouco divulgada e quase esquecida pela a população e a Doutrina. Já a nova lei teve uma grande repercussão, tanto pelo momento histórico e oportuno a qual se procedeu, quanto pela atenção que recebeu dos indivíduos e da Doutrina, esta última em especial devido ao grande número de trabalhos doutrinários e acadêmicos sobre o tema.

E, apesar de sua inovação, necessidade, oportunidade e encaixa no momento ao qual o país vive, a novatio legis ainda necessita de severas atualizações e modificações para que possa extinguir sua ambiguidade referente aos seus elementos especiais subjetivos, tanto quanto a ampliação de seu rol de crimes. O tratamento a ser dado aos abusos dos estados contra o indivíduo se perfaz em uma matéria de constante manutenção e atenção pode parte de quem deva reprimi-lo.

  1. A LEI NA PRÁTICA: COMO TEM JULGADO OS TRIBUNAIS.

Nesse capítulo nos concentraremos em uma analise de como tem entendido a jurisprudência sobre a nova lei de abuso a autoridade.

Apesar das várias críticas e contrapontos da nova lei de abuso a autoridade, o fato é que ela já está em vigor a 4 anos, e mesmo nesse o assunto ainda é obscuro na jurisprudência, isso representa a dificuldade na sua aplicação em casos concretos.

Como já previsto, as condições especiais subjetivas do tipo penal, abarcadas pela nova lei, em seu artigo 1º, § 1º, seriam de importância fundamental para a configuração do crime, caso não os haja, estaria ali desconfigurado a ação típica penal.

Sendo assim, a jurisprudência do STF vem consubstanciando tal entendimento. Analisando o agravo regimental de 2020, tendo como relator o Min. Roberto Barroso, a primeira turma reforça a atipicidade da conduta, pois não existia lastro probatório da conduta subjetiva:

EMENTA: DIREITO PENAL. AGRAVO INTERNO EM PETIÇÃO. NOTÍCIA CRIME. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E EVIDENTE ATIPICIDADE DA CONDUTA. ARQUIVAMENTO MONOCRATICAMENTE PELO RELATOR. ERRO MATERIAL RECONHECIDO, SEM EFEITOS MODIFICATIVOS NA DECISÃO AGRAVADA. 1. Da descrição das condutas já se extrai a falta de justa causa e a evidente atipicidade da conduta. 2. Não existe lastro probatório mínimo na acusação de que o noticiado teria negado injustificadamente acesso aos autos das referidas investigações. 3. É evidente a atipicidade da conduta, também, considerando-se o disposto nos §§ 1º e do art. da Lei nº 13.869/2019. 4. Reconheço erro material no dispositivo da decisão agravada, uma vez que o dispositivo utilizado para determinar o arquivamento da presente petição foi o art. 13, V, c, do RISTF, que, como apontado pelo agravante, é competência da Presidência desta Corte. Contudo, o erro material não altera o teor

da decisão, uma vez que o Ministro Relator tem competência para arquivar a petição quando os fatos narrados não constituírem crime (art. 21, XV, c , RISTF). 5. Agravo interno parcialmente provido, tão somente para correção de erro material no dispositivo da decisão agravada, sem efeitos modificativos.

(STF- Pet 9052 AgR / DF - DISTRITO FEDERAL Relator (a): Min. ROBERTO BARROSO Julgamento: 30/11/2020 Publicação: 14/12/2020 Órgão julgador: Primeira Turma) [12]

Na decisão, o tribunal deu provimento parcial ao agravo interno, uma vez que apenas analisou o erro material causado pelo juízo a quo e manteve as decisões sobre a atipicidade da conduta. Portanto não sendo possível traçar o lastro probatório referente à conduta subjetiva especial, não será possível a punição do agente.

Por outro lado, em outro julgado, ocorrido neste ano de 2023, configurando como relator o Min. Gilmar Mendes, também em um agravo regimental em Habeas Corpus, o tribunal decidiu por anular as provas obtidas por policiais que adentraram em uma residência a força, arrombando o portão, incidindo, teoricamente, no artigo 22 da lei 13.869:

- DENÚNCIA ANÔNIMA, FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE, INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA, BUSCA E APREENSÃO, PERSECUÇÃO PENAL, NECESSIDADE, COMPLEMENTAÇÃO, DILIGÊNCIA. BUSCA E APREENSÃO, DOMICÍLIO, AUSÊNCIA, MANDADO JUDICIAL, CRIME PERMANENTE, PRESERVAÇÃO, INVIOLABILIDADE, DOMICÍLIO, CONTROLE JUDICIAL, MOMENTO POSTERIOR. COMPROVAÇÃO, CONSENTIMENTO, INGRESSO, AUTORIDADE POLICIAL, DOMICÍLIO. INVIOLABILIDADE, DOMICÍLIO, DIREITO FUNDAMENTAL.

Agravo regimental em habeas corpus. 2. Supressão de instância. Não exaurimento da jurisdição. Manifesta ilegalidade a autorizar a atuação ex officio. 3. Tráfico de drogas. Busca domiciliar. Ausência de fundadas razões. 4. Testemunhos de que os policiais teriam arrombado o portão para adentrar o imóvel devem prevalecer sobre a versão destes últimos de que teriam recebido autorização da moradora. Nulidade do ato. 5. Agravo regimental provido para concessão da ordem, de ofício.

( HC 196935 AgR, Relator (a): NUNES 8MARQUES, Relator (a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 25-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 12-06-2023 PUBLIC 13-06-2023). [13]

É importante notar que mesmo usando como embasamento o artigo 22 da lei 13.869 de 2019 a decisão nada mencionou sobre o dolo subjetivo específico, tal observação é de suma importância, pois se não houve o lastro probatório de nenhum dos requisitos específicos mencionados pela lei, não seira possível enquadrar os agentes na conduta descrita, porque apesar de comprovada a atitude objetiva dos agentes policiais, nada se comprovou sobre a conduta subjetiva do tipo penal.

Parece que o Ministro, nessa ocasião, assim como o tribunal a quo, deixou escapar a análise sobre o alicerce comprobatório necessário referente ao tipo subjetivo para a configuração do delito, como já mencionado em outro julgado supracitado.

Tais ocorrências nos julgamentos não deveriam ocorrer, pois estariam violando o princípio da segurança jurídica necessária em nosso ordenamento jurídico, pois sem ela não seria possível delimitar o conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida. Ou seja, o indivíduo nunca teria uma certeza concreta de qual ato aquela lei repreende, pois dado as suas nuances, cada julgados a interpreta de uma certa forma.

De certo fato, não pode o juiz ir contra a lei, não se trata aqui ainda de mera interpretação da lei pelo magistrado, ou o chamado crime de hermenêutica, pois o dolo subjetivo especial é requisito essencial ao qual requer a lei.

Assim como já existem posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários, entende-se não ser cabível a aplicação da lei de abuso a autoridade quando não estiverem presentes os requisitos subjetivos, conforme se nota a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PEDIDO DE PENHORA ON LINE DOS ATIVOS FINANCEIROS DO EXECUTADO. CONDUTA QUE NÃO 10 INCORRE NA CONDUTA PREVISTA NO ART. 36 DA LEI N.º 13.869/2019 (LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE). PRECEDENTES. POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DO ATO CONSTRITIVO. AUSÊNCIA DE DOLO POR PARTE DO JULGADOR, REQUISITO INDISPENSÁVEL AO RECONHECIMENTO DO TIPO PENAL. DECISÃO AGRAVADA REFORMADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR. (Agravo de Instrumento, Nº 70084076710, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em: 17-03-2020).

(TJ-RS - AI: 70084076710 RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Data de Julgamento: 17/03/2020, Décima Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 01/04/2020).

Nessa decisão proferia pelo TJ-RS, é essencial a demonstração do dolo específico para a caracterização do tipo penal. Portanto a análise dessas subjetivas é imprescindível para enquadrar o agente nos crimes da lei 13.869. não obstante é preciso uma análise criteriosa e precisa para se descobrir se o agente agiu com o abuso ou excesso de poder e se foi praticado para prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal.

Ademais assevera Rogerio Greco E Rogerio Sanches:

Talvez com o fim de espancar algumas pertinentes críticas, logo no seu artigo inaugural, a Lei 13.869/19 anuncia que a existência do crime depende de o agente comportar-se abusivamente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Eis o elemento subjetivo presente nos vários tipos incriminadores, restringindo o alcance da norma de tal forma que, a nosso ver, o dolo eventual fica descartado. (GRECO, Rogério, CUNHA, Rogério Sanches, Op. Cit., p. 13.).

A demonstração pratica do entendimento de Sanches foi o julgado do TRF3 que decidiu sobre a ausência de dolo por parte dos magistrados quanto à penhora de ativos financeiros e a não aplicabilidade da lei de abuso de autoridade pela falta do elemento subjetivo dolo específico.

E M E N T A TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA DE ATIVOS FINANCEIROS INDEFERIDO. ALEGAÇÃO DE CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE AFASTADA. AUSÊNCIA DE DOLO. DECISÃO ANULADA. 1. O simples fato de decidir acerca da penhora de ativos financeiros não implica, prima facie, em crime de Abuso de Autoridade, até porque a configuração de tal crime depende de dolo e, no caso, com finalidade específica, conforme se verifica a transcrição dos §§ 1º e , do art. , da Lei 13.869/19. 2. Não pode o Juízo, sob fundamento genérico de hipotética prática do crime previsto no art. 36, da Lei nº 13.869/2019, indeferir sistematicamente os pedidos de penhora via Bacenjud - e consequentemente suspender a execução com fundamento no art. 40 da Lei 6.830/80, até que a exequente venha a indicar bens para a garantia do feito fiscal - uma vez que tal conduta se equipararia a um verdadeiro non liquet, eis que a ocorrência do alegado crime exige, como cediço, conduta dolosa, o que não se verifica das circunstâncias apontadas na decisão agravada. Ademais, não há como se vislumbrar o referido crime por deixar de cumprir as disposições do § 1º do artigo 854 do CPC, pois que 12 problemas relacionados com a estrutura e funcionamento da justiça também excluem o dolo exigido ao caso tratado. 3. Se concluirmos que todo Magistrado brasileiro poderá responder, em caso de bloqueios pelo Bacenjud, por uma ação penal ligada ao delito de Abuso de Autoridade - seja por iniciativa Ministerial ou até mesmo de forma subsidiária pela parte lesada - é fato que as garantias legais de uma execução deixarão de existir. E nesse contexto, deixando o magistrado de decidir o caso concretamente ou, na pior hipótese, transferindo sua responsabilidade funcional para as Cortes Superiores, o caos se instalaria. 4. Agravo de instrumento parcialmente provido para anular a decisão agravada, determinando ao juízo de origem, afastado o aduzido "abuso de autoridade", apreciar o pedido de penhora, via Bacenjud, à vista do caso concreto.

(TRF-3 - AI: 50282506920194030000 SP, Relator: Desembargador Federal LUIZ PAULO COTRIM GUIMARAES, Data de Julgamento: 13/05/2020, 2ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 19/05/2020)

Todos esses julgados apontam para um único problema: a impunidade e ineficiência da lei, os tipos penais subjetivos são muito amplos e de difícil consolidação pragmática isso acaba por deixar os agentes que deveriam ser punidos impunes da mão do estado.

Uma ação direita de inconstitucionalidade de nº 6.032, de autoria do partido PODEMOS no STF, questionou a amplitude da lei, afirmando que ela não conceitua de forma clara e objetiva a caracterização do abuso de autoridade, precisando que o magistrado interprete a norma, dificultando o alcance do seu interim.

Claus Roxin, aprofunda o questionamento sobre a lei. Segundo ele é uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não podendo proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invalidando, dessa forma, a esfera do legislativo.

Sendo assim, e observados os julgados acimas, é notável que a aplicação da lei se contradiz naquilo que incialmente propõe. Os termos amplos requeridos em seu primeiro artigo inviabiliza uma interpretação clara e concisa por parte dos julgadores, também causas ambiguidades à aplicação da norma durante a pratica jurídica. E seguindo o entendimento da professora de direito na USP Helena Lobo da Costa, a comprovação de que a autoridade agiu com o dolo específico é um enorme obstáculo para a aplicação da nova lei nº 13.869/19 isso porque é extremamente difícil produzir provas que comprovem a conduta ilícita e portanto o agente ficará impune, causando prejuízo para a coletividade e tornando ineficiente a sua aplicação.

  1. CONCLUSÃO

A lei de abuso a autoridade não é um tema novo no Brasil, ela vem sendo tratada desde o ano de 1824, sendo o brasil ainda uma monarquia hereditária. Observando toda a análise histórica e evolutiva do tema, percebe-se que ele não é um assunto recente, mas com certeza acabou tomando notoriedade recentemente.

Apesar de tudo, ainda é possível notar-se uma carência de palpabilidade na nova lei, uma vez que suas condições subjetivas específicas se tornaram mais como uma barreira na responsabilização dos criminosos usurpadores do poder público.

Com o intuito de coagir determinadas autoridades, o processo legislativo acabou se infectando e apressando a revisão textual e ideológica da lei 13.869/19 o que levou as polêmicas e críticas por parte da doutrina.

As condições de aplicabilidades quais sejam: a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, demonstram-se de difícil elucidação comprobatória na jurisprudência prática. Para isso basta uma rápida pesquisa nos tribunais, a qual se perceberá a falta de julgados ou, quando tiver, se perceberá a descriminalização do ato por fata de provas.

A quem defenda que, não sendo possível a comprovação dos outros requisitos subjetivos específicos, poderia o agente ser enquadrado na condição de “mero capricho” , porém tratar qualquer interpretar qualquer ato sem a comprovação legal seria ir além do que a além especifica, e mesmo que o magistrado se utilizasse do seu poder interpretativo para deduzir que o agente agiu de tal forma, ainda sim a situação seria bastante complicada e passível de embargos, pois facilmente poderia se reconhecer uma omissão, obscuridade ou uma ambiguidade no julgado.

Apesar dos contratempos, a atenção que deva ser dada ao tema não dever ser menor, o abuso de autoridade é uma das representações pragmática do elo entre o estado e o indivíduo, se não a mais demonstrativa desse elo. É preciso impedir que o Leviatã engula o cidadão e faça com suas liberdade e direito o que bem desejar. Em uma análise mais profunda, toda legislação contra o abuso de autoridade é uma repressão a qualquer forma de totalitarismo por parte do estado.

Por fim, embora o cacetar que a nova lei cause, ainda é possível usa-la bem, desde que haja mudanças em seu corpo textual, é preciso esclarecer de forma inequívoca as contradições de sua condição específica, é necessário fazer com que a legislação em vigor seja efetiva, através de uma mobilização do legislativo, assim como é necessário ampliar ainda mais o seu rol taxativo e observar as conexões que a lei tem com o ordenamento penal, para que nem uma classe ne outra seja privilegiada ou prejudicada afim de barrar os abusos de poder por partes dos agentes do estado.

  1. REFERÊNCIAS

ALMEIDA NERI HORWATH, Felipe. Elementos subjetivos específicos e dolo eventual na lei de abuso a autoridade. Site da JusBrasil. 2021. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/artigos/elementos-subjetivos-especificosedolo-eventual-nos-crimes-da-... > Acesso em: 16 de set. de 2023.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 33. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2016.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 33 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2016.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Legislação Penal Especial, ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

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CARVALHO SOUZA SILVA, Vitória. A nova lei do abuso de autoridade e a dificuldade prática de aplicação de alguns de seus conceitos imprecisos. 2020. Disponível em: Acessado em 10 de out. de 2023.

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  1. Advogado, formado pela Universidade Tiradentes de Pernambuco -Unit-PE

  2. O abuso de poder administrativo no Brasil – conceitos e remédios, p. 12. Rio de Janeiro: DASP/IBCA, 1959.

  3. Nogueira, Rafael Fecury, Netto Willibald Quintanilha Bibas. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ABUSO DE AUTORIDADE NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA E PERSPECTIVAS. 2020. Trabalho de pesquisa. II ENCONTRO VIRTUAL DO CONPEDI DIREITO PENAL, PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO.

  4. (...) Como é de Direito Natural, a segurança das pessoas; e Constando-Me que alguns Governadores, Juizes Criminaes e Magistrados, violando o Sagrado Deposito da Jurisdicção que se lhes confiou, mandam prender por mero arbitrio, e antes de culpa formada, pretextando denuncias em segredo, suspeitas vehementes, e outros motivos horrorosos à humanidade para ipunimente conservar em masmorras, vergados com o peso de ferros, homens que se congregaram convidados por os bens, que lhes offerecera a Instituição das Sociedades Civis (..)

  5. Art. 1º O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, são regulados pela presente lei. Art. 2º O direito de representação será exercido por meio de petição: a) dirigida à autoridade superior que tiver competência legal para aplicar, à autoridade civil ou militar culpada, a respectiva sanção; b) dirigida ao órgão do Ministério Público que tiver competência para iniciar processo-crime contra a autoridade culpada. Parágrafo único. A representação será feita em duas vias e conterá a exposição do fato constitutivo do abuso de autoridade, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e o rol de testemunhas, no máximo de três, se as houver.

  6. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/126377

  7. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128545

  8. O doleiro é um operador de câmbio paralelo, ou seja, negocia moedas estrangeiras fora do sistema oficial de transações. Como essas operações costumam ser realizadas em dólar, o nome ficou associado à moeda norte-americana. ( https://jornaldebrasilia.com.br/noticias/brasil/o-queeum-doleiro-entenda-por-queapraticaeilega...)

  9. Art. 6º As penas previstas nesta Lei serão aplicadas independentemente das sanções de natureza civil ou administrativa cabíveis.

  10. Art. 7º As responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal.

  11. Art. 8º Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

  12. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur438298/false

  13. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur481620/false

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