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30 de Abril de 2024

A relativização do direito à privacidade na era da informação e o comércio de dados pessoais

MIRA, Herikles Raphael Machado Siqueira de

Publicado por Perfil Removido
há 3 anos

RESUMO

O direito fundamental à privacidade, intrínseco a personalidade e dignidade da pessoa humana, é digno de atenção diante do avanço tecnológico na era da informação que permite o comércio de dados pessoais entre as elites do mercado, ameaçando a tutela deste bem jurídico e causando danos ao titular. Este estudo tem como objetivo identificar as hipóteses legais de relativização da privacidade e o gravame causado pelo abuso da interferência na intimidade alheia praticado pelo comércio de dados pessoais, utilizando-se de informações obtidas através do método dedutivo, e pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e legislativa.

Palavras-chave: Direito Fundamental; Privacidade; Dados; Relativização; Era da Informação.

ABSTRACT

The fundamental right to privacy, intrinsic to the personality and dignity of the human being, is worthy of attention in face of the technological advance in the information age that allows the trade of personal data among the elites of the market, threatening the protection of this legal asset and causing damages to the holder. This study aims to identify the legal hypotheses of relativization of privacy and the damage caused by the abuse of the interference in the intimacy of others practiced by the commerce of personal data, using information obtained through the deductive method, and bibliographical, jurisprudential and legislative research.

Key-words: Fundamental Right; Privacy; Data; Relativization; Information age.

1. Introdução

É notório que a tecnologia e as relações digitais evoluem constantemente, e com elas surge a necessidade de garantir que as normas jurídicas antes impostas apenas no mundo fático, permaneçam e produzam efeitos também no mundo virtual, uma vez que diversos são os meios de exposição de dados pessoais colocados na internet, expostos inconscientemente pelo titular, como endereço, número de documentos, profissão, patrimônio, estado civil, entre outros que facilitam a relativização do direito à privacidade. Assim, é necessário que o Estado resguarde o direito à privacidade nas relações digitais, a evitar que o lucro obtido pela compra e venda de dados prevaleça sobre a dignidade da pessoa humana.

O presente artigo resulta do método dedutivo por meio técnico da pesquisa bibliográfica, jurisprudencial, e legislativa para desenvolver a problemática, iniciando com a explanação do direito à privacidade, dados pessoais, formas legítimas de relativização admitidas em lei e entendimento jurisprudencial, o liame existente entre era da informação e comércio de dados pessoais, e por fim as consequências advindas da exposição de dados sem o devido consentimento do titular.

2. A relativização do direito à privacidade na era da informação e o comércio de dados pessoais.

O direito à privacidade está em constante mutação no tempo e espaço, e por envolver aspectos particulares das pessoas, deve ser concebido de maneira flexível e aberto, onde sua relativização acontece dentro dos limites permitidos em lei, e principalmente, isenta de qualquer violação a este direito fundamental (SAMPAIO, 1988, s.p.).

2.1. Dados ou informação.

Exordialmente é necessário distinguir os conceitos de dados e informação, pois embora muito semelhantes, são temas distintos. Dados no âmbito da informática são quaisquer informações não estruturadas, ou seja, não codificadas, o que faz com que não possuam significado relevante, e a princípio não tenham sentido, como exemplo um símbolo ou número. Enquanto informação é o conjunto de dados organizados e estruturados que transmitem significado e compreensão (SENDOV, 1994, s.p.).

Deste entendimento, dados pessoais são entendidos como qualquer informação relativa ao ser humano, capazes de identificar ou facilitar a identificação deste, não se limitando a nome, sobrenome, apelido, endereço, idade, e-mail, mas incluso religião, raça, etnia, telefone, endereço de IP (protocolo de internet), dados bancários, placa de automóvel, perfil de comprador, histórico de compras, dados acadêmicos, entre outros elementos que possam indicar a quem os dados pertençam (PINHEIRO, 2018, s.p.).

A Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados-LGPD) classifica nos incisos II e III do artigo os dados pessoais como: dado pessoal sensível e dado anonimizado, sendo o primeiro considerado como aquele que trata de elementos específicos e individuais do ser humano e possíveis de identificar alguém, e o segundo como aquele que a princípio não identifica o indivíduo, mas que com a utilização de meios técnicos razoáveis, como descriptografia, é possível descobrir quem é o titular dos dados.

2.1.1. Dados pessoais como fontes de riqueza.

A expressão “Dados são o novo petróleo – e isso é uma coisa boa!”, utilizada no artigo de 15 de novembro de 2019 publicado pela FORBES, faz alusão a importância e monetização que os dados pessoais trazem com si, diante dos proventos oriundos do seu uso e administração. À vista disso, evidente que os dados deixam de ser valiosos tão somente no âmbito da ética e da moral, mas também na esfera econômica, gerando lucro para as elites do mercado.

Na atualidade dados pessoais são recursos extremamente valiosos, lucrativos, e negociáveis entre as grandes empresas, utilizados como ferramentas para as tomadas de decisão, estudos de mercado, identificação do perfil “ideal” de cliente para compra de determinado produto, parâmetros para evitar gastos desnecessários em mecanismos que não atendem o público-alvo, entre outros. Neste sentido, além da órbita do mercado capitalista, os dados pessoais também são utilizados para fins políticos, como deriva do escândalo da Cambridge Analytica, elucidado na matéria “Entenda o escândalo de uso político de dados que derrubou valor do Facebook e o colocou na mira de autoridades” da BBC News publicada em 20 de março de 2018, empresa que materializou a coleta de dados pessoais por meio do gigante Facebook, para colaborar na eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016, influenciando a opinião dos eleitores por meio de publicações tendenciosas postadas em massa, além de teste de personalidade, quiz, like, interação, entre outros mecanismos capazes de decifrar a opinião, preferências, temores, limites do usuário e o necessário para ultrapassá-los, a fim de identificar o voto do eleitor e a maneira de converter este voto positivamente para o candidato que a Cambridge apoiava à época, sendo Donald Trump.

Do exposto até então, somado com o artigo “O mercado dos dados pessoais” de 14 de outubro de 2020 elaborado por Ricardo Cappra, nota-se que o comércio de dados pessoais dos usuários realizado entre os gigantes do mercado, como exemplo Facebook, Instagram, e Twitter, é um dos principais motivos da relativização, invasiva e ilegítima do direito à privacidade na era da informação, causando insegurança e temor aos usuários de internet.

2.1.2. Era da informação.

Nos atuais tempos modernos decorrentes do desenvolvimento tecnológico, período posterior à era industrial, adotou-se pelos historiadores e sociólogos, como Blagovest Sendov, o termo “era da informação” para designar uma época com meio de comunicação instrumentalizado e interligado pela informática e internet, emergindo a imensa capacidade de armazenamento, memorização, coleta de dados, e algoritmos de milhares de pessoas de maneira simultânea e instantânea.

A internet como meio global de redes de computadores e smartphones é a matriz que fortifica a era da informação, capaz de comunicar em tempo real pessoas há milhares de quilômetros, fortalecendo a globalização, e gerando risco à privacidade. Da mesma forma acontecem com outros equipamentos tecnológicos, como câmeras de segurança e gravadores, capazes de fotografar imagens e captar áudios de um determinado local e transmitir mundialmente pela rede, ou seja, com apenas um “click” é possível atingir milhões de pessoas.

Deste pressuposto, há o temor da violação do direito fundamental à privacidade do indivíduo e a incumbência dos três poderes (Executivo, Legislativo, e Judiciário) em garantir a permanência do Estado democrático de direito através de normativas e leis fortes para proteção do titular dos dados.

2.1.3. Direito à privacidade x internet.

Nos âmbitos digital e tecnológico a relativização do direito à privacidade acontece criticamente, havendo o paradigma de que “a internet é uma terra sem lei”, ou “terra de ninguém”. Contudo, esse entendimento não é verídico, posto que a legislação guarda e ampara incessantemente este direito fundamental.

Por meio de redes sociais e do Comércio Eletrônico, termo utilizado por Patrícia Peck Pinheiro para englobar o e-commerce, e marketplace, grandes empresas fazem a captação e tratamento dos dados pessoais de clientes de forma natural e simples, de tal que as pessoas não entendem a maneira que estas informações são tratadas e qual a sua destinação.

Diversos são os mecanismos para captar e gerar lucro com os dados pessoais, a exemplo: a) política de cookies, o website solicita ao navegador para armazenar no computador ou dispositivo móvel, dados que “lembrem” suas ações ou preferências ao longo do tempo, como buscas na web por determinado assunto, produto, entre outros; b) big data, é uma análise e interpretação de grandes volumes de dados variados, a qual possibilita o desenvolvimento de aplicativos e softwares cada vez mais intuitivos e personalizados, criando o “padrão” do consumo audiovisual dos usuários (RUSSI, 2020, s.p.); c) IOT (internet of things), a internet das coisas é o modo como os objetos físicos estão conectados comunicando entre si e interagindo com o usuário através de sensores inteligentes e softwares que transmitem dados para uma rede, como exemplo aplicativos interligados à rede elétrica de uma residência que permitem o apagar e acender de luzes, entre outras formas de interconexão tecnológica entre usuário e objeto. Nesta perspectiva, o pesquisador Ricardo Cappra vai além, e afirma:

“Em um futuro muito próximo você vai trocar seus dados pessoais por dinheiro. Você poderá acessar aplicativos para verificar o saldo em tempo real dos seus dados pessoais armazenados, e então será possível trocá-los por uma moeda como o real, dólar ou euro. As transações desses dados pessoais poderão inclusive compor seu planejamento financeiro familiar, e quem sabe até fazer parte da tão questionada renda básica universal.” (CAPPRA, 2020, s.p.).

2.2. Análise civil-constitucional: privacidade, intimidade e vida privada.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 garante no artigo 12 o direito à privacidade, com fito de evitar intromissões e danos na vida privada do indivíduo. Neste sentido, finda a Ditadura Militar no Brasil em 1985, conforme relata o artigo “Democrática, Constituição Federal de 1988 foi construída pela sociedade” de 05 de outubro de 2018 publicado pelo Governo do Brasil, surge do clamor popular a necessidade de elaborar uma carta magna cuja fosse considerada a lei suprema do país, primando principalmente pelo retorno do Estado democrático de direito para garantir uma convivência digna em sociedade, com liberdade e igualdade para todos. Com isso, em 1988 é promulgada a Constituição da Republica Federativa do Brasil, popularmente conhecida como “Constituição cidadã”, a qual em seu artigo , inciso X, preceitua imperativamente, em caráter de cláusula pétrea, a proteção à privacidade e a inviolabilidade da intimidade e vida privada das pessoas, assegurando ainda o direito a indenização proveniente dos danos morais e reparação dos danos materiais decorrentes da sua violação, tutelando assim o direito da personalidade da pessoa humana, no sentido de que se não houver privacidade, consequentemente não haverá dignidade.

O direito à privacidade é regulamentado nas diversas esferas hierárquicas existentes na legislação brasileira. Considerando a pirâmide de Hans Kelsen de cima para baixo, o direito à privacidade é previsto nos dois primeiros níveis, inicialmente na Constituição Federal, e posteriormente no Código Civil, precisamente no artigo 21, o qual preserva a vida privada da pessoa natural afirmando que esta é inviolável, além da previsão do artigo , inciso VII, da Lei nº 12.965/2014. Sendo assim, é categórica a preocupação e proteção deste direito fundamental no ordenamento jurídico, diante de tratar-se de um sacrossanto direito personalíssimo do ser humano. Logo, inquestionável que na era da informação, dentre o rol (numerus apertus) de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, o direito à privacidade é um dos que merecem maior destaque, decorrente da sua magnitude e relevância para preservar a intimidade e vida privada, além do íntimo elo com a personalidade e dignidade da pessoa humana.

O direito à privacidade aqui analisado não se confunde com a ideia originária do direito norte-americano consistido no direito de estar só e ser deixado só (the right to be let alone), e sim no sentido de tratar-se de um direito concedido ao ser humano de viver sem moléstia do Estado e terceiros no tocante aos aspectos da sua vida pessoal, familiar, e profissional, isto é, o direito de viver em paz no seu recanto (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, s.p.). Deste modo, entende-se o direito à privacidade como a faculdade (direito subjetivo) que o indivíduo possui de divulgar ou não para terceiros as informações sensíveis pertinentes a sua particularidade, ficando o acesso a esses dados condicionado a autorização expressa do titular, entendimento consolidado nos Enunciados n. 404 e 405 da V Jornada de Direito Civil de 2011.

Nos casos de publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais, esta independe de prova do prejuízo, bem como do constrangimento e frustração por parte do titular para gerar ao agressor a responsabilidade de indenizar, pois conforme depreende da Súmula n. 403 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tal conduta afeta a honra subjetiva do indivíduo, entendida como a opinião que ele possui de si próprio. Portanto, trata-se de hipótese de dano moral presumido (in re ipsa).

Além do que discorre o inciso X, do artigo da Constituição Federal, há de se compreender privacidade e intimidade como dimensões, ou seja, níveis do direito à vida privada, conforme leciona Flavia Bahia:

“Ambas tutelam a liberdade da vida privada. Cuidam da esfera secreta das pessoas, protegendo o modo de viver, as relações afetivas, hábitos, particularidades, etc. As questões da intimidade, entretanto, são mais internalizadas (envolvem sentimentos, emoções) que as questões da privacidade.” (BAHIA, 2020, p.196).

Para elucidação do tema utiliza-se a “Teoria das Esferas”, também chamada de “Teoria dos Círculos Concêntricos”, criada por Heinrich Hubmann e Heinrick Henkel na Alemanha na década de 1950, e adotada pelo professor Flávio Tartuce, para explanar que a privacidade do indivíduo contempla três círculos concêntricos, sejam eles: a) a vida privada em sentido estrito, sendo a esfera externa; b) a intimidade, sendo a esfera intermediária; e o c) segredo, a esfera mais interna. Tal teoria parte da premissa de que a proteção da privacidade depende dos atos praticados pelo próprio titular dos dados pessoais, e que a partir de suas escolhas, decide o que vai compartilhar ou excluir do conhecimento de terceiros, pois algumas informações possuem vínculo direto com a sua honra e particularidade (RAMOS, 2020, s.p.).

2.2.1. Relativização do direito à privacidade e seus limites legais.

Na Teoria dos Direitos Fundamentais, em respeito ao supra princípio da dignidade da pessoa humana, nenhum direito é absoluto, todo direito é relativizado por outro direito, não se valendo o brocardo qui suo iure utitur neminem laedit (quem usa de seu direito a ninguém prejudica). Tal entendimento prevalece na suprema corte, conforme jurisprudência: STF, Pleno, MS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.2000, p.20.

No aspecto do direito à privacidade o critério de relatividade deve ser ponderado afinco, pois a relativização não deve acontecer de maneira contrária e desrespeitosa aos bons costumes, valores éticos e morais, e à legislação vigente, de tal maneira que evite qualquer dano ao titular dos dados, sob pena de indenização. Para tal, é de extrema importância utilizar-se dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, com objetivo de agir com cautela e evitar qualquer abuso de direito, além dos princípios da finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, transparência, segurança, e responsabilização, conceitos trazidos pela Lei nº 13.709/2018 (LGPD), ao regulamentar as atividades de tratamento legítimo, específico e explícito de dados pessoais, informando previamente ao titular, prevalecendo a boa-fé entre o agente de tratamento e o titular dos dados (PINHEIRO, 2018).

Para o cumprimento de obrigações judiciais, administrativas, e fiscais, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a possibilidade de relativização do direito à privacidade, como ocorre na quebra de sigilo fiscal, bancário, e telefônico, conforme jurisprudência: STF, HC nº 87.654/PR; STF, AI nº 655.298/SP AgR; STF, e HC nº 87.341/PR, respectivamente. Dessa premissa, nestes casos não cabe alegar violação à privacidade, já que estas situações fáticas ocorrem em prol do interesse público e jurídico, concomitante ao princípio da supremacia do interesse público, onde este prevalece sobre o interesse particular.

Neste entendimento, segue jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

“MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO QUE DEFERE A QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO EM AÇÃO PAULIANA, ATINGINDO CONTAS BANCÁRIAS DE TERCEIROS ÀS QUAIS FORAM TRANSMITIDAS VULTOSAS SOMAS. INDÍCIOS QUE DEMONSTRAM A IMPRESCINDIBILIDADE DA MEDIDA PARA A SOLUÇÃO DA LIDE, COMO FORMA DE APURAÇÃO DA FRAUDE ALEGADA. CIRCUNSTÂNCIAS DE FATO QUE JUSTIFICAM A MEDIDA. RELATIVIZAÇÃO DO SIGILO BANCÁRIO E DO DIREITO À PRIVACIDADE DIANTE DOS INTERESSES PÚBLICO, SOCIAL E DA JUSTIÇA. PRECEDENTES. SEGURANÇA DENEGADA.” (TJPR - 15ª C. Cível - 0034657-49.2020.8.16.0000 - Sertanópolis - Rel.: DESEMBARGADOR HAMILTON MUSSI CORREA - J. 28.10.2020).

Ademais, desde que respeitados os direitos e liberdades fundamentais, o artigo 10 da LGPD possibilita o tratamento de dados pessoais sem o consentimento do titular através do legítimo interesse, ou diante de interesse coletivo, conceitos entendidos como hipóteses flexíveis de autorização legal para que terceiros conheçam das informações particulares do titular dos dados para condutas legítimas e atos específicos, de modo que sejam coletadas apenas as informações estritamente necessárias para a finalidade pretendida, como exemplo a inscrição em Dívida Ativa. Aliás, a LGPD prevê no artigo 5º, inciso XVII, que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) solicite a qualquer momento um relatório de impacto à proteção de dados pessoais (DPIA – Data Protection Impact Assessment), com o propósito de ilustrar quais as informações pretendidas, a real necessidade e proporcionalidade, e minimizar os riscos para proteção dos dados.

Porém, cumpre esclarecer que o legítimo interesse não pode ser utilizado como regra geral para justificar o tratamento dos dados, muito menos para eximir a solicitação do consentimento do titular. Em outras palavras, essa exceção jamais poderá se tornar a regra.

2.3. Exposição de dados pessoais: fraude por terceiro e consequências à vítima.

As consequências decorrentes da exposição de dados pessoais devem ser analisadas de dois prismas diferentes. Em primeiro plano a vítima, aquele em que sua privacidade foi violada, e em segundo o agressor, causador dos danos.

Na hipótese de vazamento de dados por fraude de terceiro, surge a este a responsabilidade de reparar e indenizar todos os transtornos causados, além da possibilidade de sanção penal a depender do caso concreto, como exemplo no crime de phising, também chamado de estelionato digital, praticado por meio de links ou e-mails falsos onde o próprio usuário entrega informações confidenciais ao criminoso, como senha de cartão de crédito, ou no crime de stalking (perseguição), nova tipificação prevista no artigo 147-A do Código Penal, onde o criminoso persegue reiteradamente o titular de dados invadindo ou perturbando a sua esfera de liberdade ou privacidade. Recentemente houve a promulgação da Lei nº 14.155/2021, a qual alterou a tipificação do delito de invasão de dispositivo informático previsto no artigo 154-A do Código Penal, o que demonstra notadamente a preocupação do legislador com a facilidade proposta pela internet em obter informações alheias, diante da redação que impõe pena àquele que invadir dispositivo informático de uso alheio sem autorização expressa ou tácita do usuário, no intuito de obter, adulterar ou destruir dados ou informações.

Na esfera cível, é concludente que àquele que comete ato ilícito, conforme dispõe o artigo , X, da CF, artigos 12, 186, e 927 do Código Civil, artigo 12 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) e artigo 52 e seguintes da Lei nº 13.709/2018 (LGPD), incumbe a responsabilidade dos prejuízos causados por meio de indenização por danos morais e reparação por danos materiais, possíveis de serem cumulados conforme Súmula n. 37 do STJ, além da possibilidade do titular prejudicado peticionar judicialmente que a prática seja cessada, à exemplo impetrando remédio constitucional.

Posterior ao vazamento de dados, exposição, e constrangimento, para a vítima ecoa o sofrimento, angústia, e o medo de novamente publicar informações pessoais na internet, tendo como consequência danos a honra e ao psicológico, que por vezes a conduz a agir drasticamente, como mudar o nome, endereço, e documentos pessoais. Grande exemplo é a atriz Carolina Dieckmann, vítima de vazamento de fotos íntimas em maio de 2012, a qual afirma na entrevista concedida ao G1 em 14 de maio de 2012: “Acho que agora vou poder voltar a viver, porque minha vida estava em suspenso”. De situação semelhante a esta, o STF em tese de repercussão geral, negou provimento ao Recurso Extraordinário nº 1010606 interposto com a pretensão do direito ao esquecimento, entendido pela suprema corte como incompatível com a Constituição Federal.

Por isso, é essencial que o titular ao perceber que seus dados foram compartilhados sem expressa autorização, denuncie o fato a autoridade policial de sua localidade, com a finalidade de investigar os suspeitos de praticar a conduta, ou buscar auxílio de um advogado para utilizar as vias legais para cessar o ato ilícito e evitar que outras pessoas sejam vítimas do mesmo abuso (PINHEIRO, 2012, s.p.).

2.3.1. Exposição de dados pessoais: fraude causada pela vítima.

Cediço, o vazamento de dados pessoais não se limita a fraude ocasionada por terceiros, pois pode acontecer por culpa da própria vítima, ocasião em que opera na internet de forma negligente, não conhecendo as ferramentas necessárias e aceitando compulsoriamente qualquer link ou pop-up que surge no monitor, provocando consequências desastrosas ao usuário (PINHEIRO, 2012, s.p.). Neste caso, exclui-se a responsabilidade de indenizar, uma vez que o agressor é a própria vítima. Existem softwares protetores, como antivírus, porém, não superam a ignorância humana (MILAGRE, em entrevista à TV Câmara em 07 de janeiro de 2015).

2.4. Teoria do Panóptico na Era da Informação.

Formulado o entendimento de que os dados pessoais dos usuários de internet são expostos e captados em tempo real, avalia-se o enquadramento do mecanismo disciplinar Panóptico criado por Jeremy Bentham e adaptado às relações modernas por Michel Foucault, no sentido de que o indivíduo é vigiado durante todo o tempo, sem que veja o seu observador, nem que saiba em que momento está sendo vigiado. Ou seja, é o apoderamento total por parte do poder disciplinador da vida de um indivíduo. Neste caso, o observador pode ser tanto o Estado, quanto uma grande empresa, com intenção de obter vantagens com os dados coletados e utilizá-los como meios de fiscalização, controle, e repressão dos indivíduos. Como bem elucida o filósofo francês:

“Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmos; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papeis: torna-se o princípio da sua própria sujeição.” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, s.p.).

“Quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos” (FOUCAULT, apud GUANDALINI; TOMIZAWA, 2013, s.p.), pois uma vez coletados os dados é possível identificar as vulnerabilidades físicas, emocionais, e financeiras do indivíduo. Vale a reflexão para compreender se a captação de dados serve também como controle e espionagem da sociedade no âmbito político, cultural, e econômico, pois os atos praticados pelos usuários são coletados em tempo real, passando por mapeamento das informações a fim de definir quais as tendências do mercado, influenciar eleições políticas, decisões governamentais, notícias falsas, além da economia volátil.

3. Considerações Finais

Ao final do artigo, conclui-se que a privacidade é direito fundamental e pilar da dignidade da pessoa humana, essencial para o bom convívio em sociedade no Estado democrático de direito.

O avanço tecnológico é a fragilidade da privacidade na era da informação, o que provoca significativas mudanças legislativas na tentativa de resguardar este bem jurídico. Atado, o comércio massivo de dados pessoais é certamente a circunstância que mais afeta o direito à privacidade na era da informação, ultrapassando os limites de relativização autorizados em lei, e prevalecendo o lucro particular sobre o direito fundamental do indivíduo e a dignidade da pessoa humana.

Para amenizar a problemática, ao titular de dados é imprescindível uma rotina segura de navegação, como atenção ao armazenar seus dados, bem como não os expor a terceiros, utilizar senhas de difícil decifração e autenticação de dois fatores, além da prudência ao preencher formulários e aceitar links. Nos contratos particulares, o termo de consentimento, compromisso e sigilo, é instrumento que descreve pormenorizadamente as condições e responsabilidades para ambas as partes durante o acesso e compartilhamento de dados pessoais, essencial à proteção da privacidade, e primazia da boa-fé e função social do contrato.

Finalmente, espera-se que o Direito e a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) caminhem paralelos à tecnologia e não permitam lacunas na legislação, além de cada vez mais intensificar a proteção do direito fundamental à privacidade na era da informação.

4. Referências

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6 Comentários

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Muito Bom!! continuar lendo

Show cara, você é show!!! continuar lendo

Parabéns, desafios da LGPD! continuar lendo

Sim, grandes desafios. Obrigado! continuar lendo