Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
2 de Maio de 2024

STF Nov22 - Competência da Justiça Eleitoral em caso de crimes conexos

ano passado

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 220.033 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. LUIZ FUX

PACTE.(S) : X

IMPTE.(S) : Y

IMPTE.(S) : Z

IMPTE.(S) : W

COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL E PENAL. SUPOSTO CRIME DE PECULATO-FURTO. ART. 312, § 1º, C/C ART. 327, § 2º, DO CÓDIGO PENAL. ALEGADA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. POSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE CRIME ELEITORAL. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA PARA DETERMINAR A REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA ESPECIALIZADA, NOS TERMOS DO PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA.

Decisão: Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que não conheceu o habeas corpus nº 746.737, in verbis:

"HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO DO WRIT. PROCESSAMENTO PARA VERIFICAR EVENTUAL CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PECULATO-FURTO MAJORADO. CONDENAÇÃO PELA JUSTIÇA COMUM. CONFIRMAÇÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. PEDIDO DE APLICAÇÃO DA ORIENTAÇÃO FIRMADA NO INQ. 4.435/STF. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE CRIME ELEITORAL OU DE CRIME COMUM CONEXO A CRIME ELEITORAL. RECURSO PROVIDO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. LIMINAR CONSEQUENTEMENTE REVOGADA. PREJUDICADA A ANÁLISE DO AGRAVO REGIMENTAL INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS.

1. Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal - STF e do próprio Superior Tribunal de Justiça - STJ. Contudo, considerando a gravidade das alegações expostas na inicial - possível inelegibilidade do paciente em decorrência de condenação proferida por Juízo absolutamente incompetente - o feito foi processado para se verificar a existência do constrangimento ilegal narrado pelo impetrante.

2. Segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - MPDFT, o ora paciente" na qualidade de Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, entre os anos de 2009 e 2010, agindo com vontade e consciência, subtraiu, em proveito próprio e alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporcionava o cargo de Secretário, bens doados pela Receita Federal e pelo Tribunal de Contas da União à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal - SECT ". Ainda nos termos da inicial acusatória, o paciente" determinou que parte dos computadores doados fosse ilicitamente empregada em prol de sua campanha eleitoral de 2010 ".

3. O núcleo da controvérsia consiste na identificação do Juízo competente para o julgamento do crime descrito no art. 312, § 1º, c/c art. 327, § 2º, ambos do Código Penal - CP (peculato-furto majorado) imputado ao paciente e cuja condenação em Primeira Instância foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT, o qual deu parcial provimento ao recurso do MPDFT para exasperar a pena imposta na sentença e, consequentemente, revogar a concessão da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, bem como afastar o reconhecimento da extinção da pretensão punitiva do Estado.

4. A leitura das decisões proferidas pelas instâncias ordinárias revela que não foram imputados crimes eleitorais ao paciente. A menção, na denúncia, ao propósito eleitoreiro é circunstância adjeta, caracterizadora de mero proveito da conduta típica. Elemento subjetivo do tipo penal do peculato-furto é o dolo, que se aperfeiçoa independente da finalidade específica ou do objetivo remoto da conduta. Dessa forma, em análise tipológica, os interesses politico- eleitorais envolvidos no peculato são írritos para fins de definição de competência da Justiça Eleitoral.

5. A jurisprudência do STJ, na linha da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal - STF no julgamento do Inquérito 4.435/DF, tem reconhecido a competência da Justiça Eleitoral quando denúncias narram a utilização de dinheiro de origem criminosa em campanha, mediante falsidade ideológica eleitoral, conduta tipificada no art. 350 do Código Eleitoral. Contudo, na singularidade do caso concreto, não há notícias de que o ora paciente tenha utilizado qualquer numerário oriundo de fontes ilícitas para sua campanha eleitoral, tendo havido, somente, imputação e condenação pela prática de desvio de computadores doados para estudantes carentes, conduta que se amolda ao crime de peculato majorado, mas que não se encontra descrita como crime eleitoral. Além disso, não há notícias de qualquer delito eleitoral possivelmente conexo, em tese praticado pelo paciente, que pudesse justificar o deslocamento da competência para a Justiça Especializada.

6. Não tendo havido imputação de crime eleitoral ou a ocorrência de conexão do delito comum com delito eleitoral, não se justifica a anulação da ação penal e encaminhamento do feito à Justiça Eleitoral. Precedentes: STF - Rcl 42894 AgR, Relator Alexandre de Moares, Primeira Turma, DJe 7/2/2020; STJ - Rcl n. 42.842/PR, Relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 3/5/2022.

7. Habeas corpus substitutivo de recurso próprio não conhecido, com a consequente cassação da liminar. Prejudicada a análise do agravo regimental interposto pelo Ministério Público do Distrito

Federal e Territórios."

Colhe-se dos autos que o paciente foi condenado, nos autos da ação penal nº 0004145-03.2018.8.07.0001, à pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, em regime inicial aberto, substituída por duas restritivas de direitos, mais 13 (treze) dias-multa pela prática do crime previsto no artigo no art. 312, § 1º, c/c art. 327, § 2º, do Código Penal.

Em sede recursal, o Tribunal de origem, ao apreciar as irresignações da acusação e defesa negou provimento ao recurso da defesa e deu parcial provimento ao apelo do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios para, na primeira fase da dosimetria da pena, valorar negativamente a culpabilidade e exasperar a pena imposta ao réu, fixando-a em 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, e 21 (vinte e um) dias-multa, à razão unitária de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, in verbis:

"PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÕES CRIMINAIS DA DEFESA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PECULATO- FURTO. SUBTRAÇÃO DE BENS DESTINADOS A PROGRAMA SOCIAL. PRELIMINARES DE CERCEAMENTO DE DEFESA REJEITADAS. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA REJEITADA. AUSENTE CRIME ELEITORAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA RETROATIVA. NÃO OCORRÊNCIA. NECESSIDADE DE ANÁLISE DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. LAUDO PERICIAL PRODUZIDO UNILATERALMENTE. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DOSIMETRIA. PRETENSÃO MINISTERIAL DE VALORAÇÃO DA CULPABILIDADE. PROCEDÊNCIA. VETORES MOTIVOS E CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA PARA EXASPERAR A PENA. AUSÊNCIA DE PEDIDO DE CONDENAÇÃO AO RESSARCIAMENTO DOS DANOS NA DENÚNCIA. RECURSOS CONHECIDOS, NÃO PROVIDO O APELO DA DEFESA E PARCIALMENTE

PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. 1. O Ministério Público possui a prerrogativa de oferecer a denúncia sem indiciamento, tendo em vista que o inquérito policial trata-se de procedimento meramente informativo. 2. Não há falar em cerceamento de defesa por ausência de fundamentação da sentença se, pela simples leitura, é possível perceber que a alegação da defesa não possui correspondência com o que fora analisado pelo Magistrado. 3. O acordo de não persecução penal (ANPP) é instituto de caráter bilateral, e a sua não aceitação pelo indiciado não possui qualquer repercussão na valoração da culpabilidade ou inocência do réu. 4. Rejeita-se a preliminar de nulidade por cerceamento de defesa se a defesa não se insurgiu no momento oportuno quanto à sua insatisfação com os quesitos respondidos pelos peritos no laudo pericial. 5. A competência da Justiça Eleitoral é atraída quando os crimes comuns são conexos com os crimes eleitorais. No caso, não há imputação de crime eleitoral ao acusado, não havendo falar com competência da justiça especializada. 6. Conforme o art. 110 do Código Penal, depois de transitada em julgado a sentença condenatória, a prescrição regula- se pela pena aplicada. No caso, além da defesa, o Ministério Público recorreu da sentença, não havendo, portanto, trânsito em julgado. 7. Quando o conjunto probatório demonstra que o réu, na condição de Secretário de Estado, concorreu para a subtração, em proveito próprio, de computadores destinados a um programa social que atendia a população vulnerável, adequada a sua condenação pelo crime do art. 312, § 1º, c/c art. 327, § 2º, ambos do Código Penal. 8. Laudo pericial produzido unilateralmente pelo acusado, por perito não oficial, que não observa o contraditório e que reexamina provas não possui o condão de, por si só, desacreditar a conclusão a que chegaram os peritos oficiais. 9. Os bens públicos devem ser destinados pelo administrador buscando, necessariamente, a moralidade administrativa e jamais privilegiar qualquer instituição particular, sob pena de que se ratifique um modelo arcaico e patrimonialista de Administração Pública, no qual não se distingue a fronteira entre o público e o privado. 10. O desvio de bens destinados à população carente demonstra maior reprovabilidade da conduta do réu, apta a autorizar o aumento da pena-base pela análise desfavorável do vetor culpabilidade. 11. A vantagem eleitoral constitui proveito da conduta típica e, no caso, não constitui razão suficiente para valorar negativamente os motivos do crime de peculato. 12. A facilidade acarretada pelo cargo de Secretário de Estado foi considerada na terceira fase da dosimetria, ao incidir a causa de aumento do art. 327, § 2º, do Código Penal. Assim, exasperar a pena na primeira fase por esse motivo seria incorrer em bis in idem. 13. Este Tribunal de Justiça vem adotando uma interpretação restritiva do disposto no inciso IV do artigo 387 do Código de Processo Penal, prevalecendo a vertente segundo a qual, para a fixação de reparação de danos materiais, são necessários pedido formal e instrução específica para apurar o valor da indenização. In casu, embora haja a estimativa do valor dos bens, não houve pedido na denúncia de fixação de reparação de danos. 14. Recursos conhecidos, não provido o recurso da defesa e parcialmente provido a apelação do Ministério Público."

Irresignada, a defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, que não conheceu do writ nos termos da ementa supratranscrita.

Sobreveio este mandamus , no qual a defesa aponta, em síntese, a ocorrência de constrangimento ilegal consubstanciado no reconhecimento da competência da justiça comum para conhecer e julgar a ação penal.

A defesa narra que o paciente foi acusado de ter desviado computadores e equipamentos de informática da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal para empregá-los em sua campanha eleitoral de 2010 e, na época da suposta prática do crime, ocupava o cargo de Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal.

Aduz que "a despeito de a acusação expressamente indicar que os crimes supostamente praticados pelo ora Paciente ostentavam claro intuito de benefício eleitoral, bens esses que teriam sido desviados (peculato-furto) e em seguida foram utilizados ilegalmente em sua campanha, e claramente, porque fruto de suposto crime de peculato-furto, não foram declarados nas prestações de contas do Paciente, configurando, em tese, o crime previsto do art. 350 do Código

Eleitoral", a denúncia foi ajuizada perante a justiça comum. Arrazoa que "os fatos narrados, inexoravelmente, configuram, também, além do peculato- furto, o crime de caixa-dois eleitoral previsto no artigo 350 do Código Eleitoral", bem como que a "circunstância foi acolhida e reconhecida pela sentença condenatória e confirmada integralmente pelo Acórdão do TJDFT; mas a despeito disso, a Justiça Comum Distrital/Estadual se negou a reconhecer a competência da Justiça Federal Especializada Eleitoral para processar e julgar o feito".

Considera que "houve descumprimento ao que já reiteradamente decidido em decisões anteriores pelo próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça e por esse Excelso Supremo Tribunal Federal", pois "o ato coator usurpou a competência da Justiça Eleitoral, matéria de ordem pública, de cariz absoluto".

Ao final, formula pedido principal nos seguintes termos, in verbis:

"Formula-se, portanto, pedido liminar para que o (a) eminente Ministro (a) Relator (a) suspenda os efeitos do Acórdão do TJDFT proferido na Apelação Criminal 0004145-03.2018.8.07.0001 e todos os demais proferidos pela Justiça Distrital/Eleitoral nos autos da Ação Penal 0004145-03.2018.8.07.0001, por evidente usurpação de competência pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, da competência da Justiça Federal Especializada Eleitoral e determine imediata remessa à Justiça Federal Especializada Eleitoral para processamento do feito, ab initio.

Requerem, por fim, no julgamento final da presente Ação, a confirmação de medida liminar concedida, conhecendo-se da Ação e concedendo-se a ordem, reconhecendo-se usurpação de competência pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios na Ação Penal 0004145-03.2018.8.07.0001, da competência da Justiça Federal Especializada Eleitoral e determine imediata remessa à Justiça Federal Especializada Eleitoral para processamento do feito, ab initio, nos termos dos arts. , XXXVII, LIII e LIV, 109, IV, in fine, da CRFB/88, art. 35, II, do Código Eleitoral, e arts. 78, IV, 79, do CPP.

Excepcionalmente, que se conceda Ordem de Habeas Corpus de ofício, como no precedente da RCL 43130/RJ/STF.

Pedem, ainda, sejam os Impetrantes comunicados com antecedência razoável da data em que será levado à sessão de julgamento esse Habeas Corpus, para que possam sustentar oralmente as razões da impetração."

A Procuradoria-Geral da República, instada a se manifestar, proferiu parecer pela concessão da ordem "para os fins de reconhecer a competência da Justiça Eleitoral para análise dos fatos, remetendo-se os autos àquela Especializada".

É o relatório, DECIDO.

Ab initio , quanto ao exame da medida liminar, observo que a eleição para o cargo de Governador do Distrito Federal, realizada em 2/10/2022, foi definida em primeiro turno, pleito esse no qual não se verificou a eleição do ora paciente. Desta sorte, ausente um dos requisitos para a sua concessão, qual seja o periculum in mora , resta prejudicado o exame deste ponto da impetração.

De outro lado, na hipótese sub examine , vislumbro excepcionalidade que permite a concessão parcial da ordem. Por oportuno, transcrevo a fundamentação da decisão do Superior Tribunal de Justiça, naquilo que interessa, in verbis:

"[...] O núcleo da controvérsia consiste na identificação do Juízo competente para o julgamento do crime descrito no art. 312, § 1º, c/c art. 327, § 2º, ambos do CP (peculato majorado) imputado ao paciente e cuja condenação em Primeira Instância foi confirmada pelo TJDFT, o qual deu parcial provimento ao recurso do MPDFT para exasperar a pena imposta na sentença e, consequentemente, revogar a concessão da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, bem como afastar o reconhecimento da extinção da pretensão punitiva do Estado pela prescrição retroativa.

Conforme relatado, a medida liminar foi parcialmente concedida para suspender os efeitos do acórdão impugnado com esteio em precedentes do STJ e do STF no sentido de que compete à Justiça Eleitoral o julgamento de crimes eleitorais e de crimes comuns conexos a crimes eleitorais.

Todavia, em análise mais detida do caso concreto, não se identifica na ação originária do presente habeas corpus a imputação de conduta que se subsuma a algum tipo penal descrito no Código Eleitoral; tampouco se tem notícia da existência de crime eleitoral que seja conexo ao crime de peculato pelo qual o ora paciente foi condenado na Justiça Comum. [...]

Indubitavelmente, a leitura das decisões proferidas pelas instâncias ordinárias revela que não foram imputados crimes eleitorais ao paciente. A menção feita na denúncia ao propósito eleitoreiro do comportamento ilícito é mera circunstância adjeta, sequer caracterizadora de elemento subjetivo específico do tipo penal (peculato-furto), que se aperfeiçoa com a demonstração do animus rem sibi habendi, independentemente do viés alvitrado pelo agente para proveito da conduta típica.

Nesse diapasão, o Código Penal prevê no artigo 312, parágrafo 1º, a figura do peculato-furto, destacando sua incidência em duas hipóteses: a) o funcionário público, ratione officii, subtrai dinheiro, valor ou coisa pública ou particular, de que não tem a posse; b) o funcionário público concorre para que terceiro, podendo ser um extraneus, subtraia o dinheiro, valor ou coisa pública ou particular, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário público.

Dessa forma, em análise tipológica, os interesses politico- eleitorais envolvidos no peculato são elementos acidentais, írritos para fins de definição de competência da Justiça Eleitoral.

Ademais, a jurisprudência colacionada quando da concessão da medida liminar trata de casos nos quais foram identificadas possíveis práticas de" caixa dois ". Melhor explicando, naqueles precedentes em que o STJ reconheceu a competência da Justiça Especializada, as denúncias narravam a utilização de dinheiro de origem criminosa em campanha, mediante falsidade ideológica eleitoral, conduta tipificada no art. 350 do Código Eleitoral.

[...]

Entretanto, os precedentes acima mencionados não guardam similitude com o caso ora em análise. Isso porque, na singularidade do caso concreto, não há evidências de que o ora paciente tenha utilizado qualquer numerário oriundo de fontes ilícitas para sua campanha eleitoral, tendo havido, somente, imputação e condenação pela prática de subtração de computadores doados para estudantes carentes. Essa conduta, abstratamente considerada, amolda-se ao crime comum de peculato-furto majorado, porém, não se encontra descrita como crime eleitoral.

Além disso, não consta qualquer acusação paralela por delito eleitoral, em tese praticado pelo paciente, que possa justificar o deslocamento deste feito para a análise da Justiça Eleitoral por conexão.

Portanto, não se tratando de crime eleitoral e à mingua de conexão do delito comum com delito eleitoral propriamente dito, não se justifica a pretendida anulação da ação penal e seu encaminhamento à Justiça Eleitoral. Nessa senda são iterativos os precedentes do STF e do STJ:

[...]

Ante o exposto, reconhecida a competência da Justiça Comum para julgamento do feito, voto no sentido de não conhecer do presente habeas corpus substitutivo de recurso próprio por não vislumbrar constrangimento ilegal, revogando, de consequência, a liminar de fls. 3793/3799."

No que diz respeito à fixação da competência da Justiça Eleitoral para conhecer e julgar ações penais, o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua composição plenária, na oportunidade do julgamento do

Inquérito nº 4.435, Rel. Min. Marco Aurélio, estabeleceu que compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ex vi dos arts. 109, IV, e 121 da Constituição Federal; art. 35, II, do Código Eleitoral; e art. 78, IV, do Código de Processo Penal. Por oportuno, trago à colação a ementa desse julgado:

"COMPETÊNCIA - JUSTIÇA ELEITORAL - CRIMES CONEXOS. Compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos - inteligência dos artigos 109, inciso IV, e 121 da Constituição Federal, 35, inciso II, do Código Eleitoral e 78, inciso IV, do Código de Processo Penal."( Inq 4.435-AgR-quarto, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ e de 21/08/2019)

Cumpre ressaltar que o referido entendimento tem sido, reiteradamente, aplicado pelos órgãos fracionários desta Corte, cabendo colacionar, à guisa de exemplo, o seguinte precedente:

AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DA AUTORIDADE DA DECISÃO DO STF FIRMADA NO INQUÉRITO 4.146/DF. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA PELO STF, INCLUSIVE EM RELAÇÃO AO CRIME ELEITORAL. PERDA ULTERIOR DO MANDATO DO RECORRENTE. DECLINAÇÃO PARA O JUÍZO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA. EXCLUSÃO DO CRIME ELEITORAL PELA INSTÂNCIA INFERIOR APÓS O RECEBIMENTO DOS AUTOS. MANIPULAÇÃO INDEVIDA DA COMPETÊNCIA. VIOLAÇÃO DA AUTORIDADE DA DECISÃO PROFERIDA PELO STF. A VALIDADE DAS DECISÕES DEVERÁ SER ANALISADA PELO JUÍZO ELEITORAL COMPETENTE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. 1. Alegação de descumprimento da autoridade da decisão do STF. Cabimento da reclamação. 2. A jurisprudência do STF encontra-se consolidada quanto à competência da Justiça Eleitoral para o julgamento de crimes eleitorais e de crimes comuns conexos a essas infrações. 3. Ao receber os autos remetidos pelo Supremo, o magistrado de primeira instância promoveu o decote da peça acusatória (já recebida por esta Corte), em relação às infrações penais eleitorais. Violação da autoridade da decisão do Tribunal no que se refere à definição da competência. 4. Caberá ao juiz eleitoral competente o exame da validade das decisões e atos instrutórios, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal, sem prejuízo de análise futura por esta Suprema Corte, após esgotadas as instâncias recursais pertinentes. 5. Agravo regimental a que se dá parcial provimento. ( Rcl 34796-AgR, Segunda Turma, Rel. p/ Acórdão, Min. Ricardo Lewandowski, DJ e de 17/12/2021)

In casu, observo que se consignou na sentença condenatória que "[...] na presente ação penal são imputadas a prática de crimes comuns e não delitos capitulados no Código Eleitoral ou em qualquer outra Legislação esparsa ou especial, que regula ou trata das eleições, em especial, aquela a que concorreu X no pleito realizado no ano de 2010, inclusive, os fatos ocorreram nos anos de 2008 e 2009". (Doc. 36, fl. 12), contudo, no exame da materialidade, se registra expressamente que "com relação ao segundo fato narrado na denúncia, não tenho dúvidas e restou comprovada a materialidade delitiva, seja em razão dos ofícios assinados pelo denunciado, solicitando os computadores ao TCU, e o atestado, também, subscrito pelo acusado, seja em razão das declarações das testemunhas inquiridas nas duas fases deste processo, tudo corroborado pela prova pericial realizada na sala em que os equipamentos foram instalados, onde funcionava o escritório de campanha eleitoral de X [...] Em verdade, foram doados materiais escolares, mochilas, equipamentos eletrônicos, vestuários e calçados, tudo compatível com as solenidades mencionadas pela Defesa, sendo que, embora o réu fosse candidato, à época, existem meros indícios e conjecturas de que teriam sido empregados em proveito próprio na campanha eleitoral, mas isto não permite o reconhecimento do crime, mesmo porque, foram apresentadas imagens onde integrantes da Fundação Gonçalves Ledo, que possuía vínculo com a mesma Secretaria dirigida pelo acusado, participando dos mesmos atos. [...] Assim, porventura o denunciado tivesse efetivado as doações no seu comitê eleitoral, também, responderia por este delito, mas não há prova cabal de que tenha destinado estes bens em proveito próprio. [...] Agora, convenhamos, a instalação de parte dos equipamentos de informática doados pelo TCU e recebidos pelo Secretário, à época, no seu escritório de campanha eleitoral, à toda evidência, fere a moralidade administrativa e implica em peculato, pois o desvio foi em beneficio próprio." (Doc. 36, fls. 17 e 18).

O Tribunal de origem registrou que "no caso, não obstante a acusação se refira a fatos relacionados, em alguma medida, às eleições, não foi imputado ao apelante crimes previstos no Código Eleitoral e na legislação afeta à matéria, ou seja, crimes eleitorais. Ainda que a conduta tenha por objetivo obter vantagem na corrida eleitoral, não se pode afirmar que a competência é de Justiça Eleitoral porque o crime imputado ao apelante é comum e não há outro delito que atraia a competência para a justiça especial" (Doc. 37, fl. 18).

Deveras, em observância aos limites cognitivos do habeas corpus, à luz dos fatos narrados e reconhecidos na sentença e no acórdão proferido pelo Tribunal de origem, vislumbra-se a possibilidade da prática de crime eleitoral conexo na espécie. Destarte, consignou-se que "os equipamentos foram instalados, onde funcionava o escritório de campanha eleitoral de X" , bem como se assentou a possibilidade de "a conduta [ter] por objetivo obter vantagem na corrida eleitoral" , além do que os referidos bens, consoante apontado pela Procuradoria-Geral da República não foram "declarados em sua prestação de contas à Justiça Eleitoral" (Doc. 52, fl. 8). Essa moldura fática permite antever, em tese, a prática da infração penal tipificada no artigo 350 do Código Eleitoral, o qual prevê, in litteris:

"Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:

Pena - reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.

Parágrafo único. Se o agente da falsidade documental é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo ou se a falsificação ou alteração é de assentamentos de registro civil, a pena é agravada."

Desta sorte, mercê da existência de conexão entre as infrações penais de competência da Justiça Eleitoral e da Justiça Comum, o feito penal deve tramitar perante a Justiça Eleitoral, nos termos dos arts. 109, IV, e 121 da Constituição Federal; art. 35, II, do Código Eleitoral; e art. 78, IV, do Código de Processo Penal, para além da orientação firmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no Inquérito nº 4.435-AgR-quarto, Rel. Min. Marco Aurélio.

Ante a pertinência de suas alegações, transcrevo trecho do Parecer elaborado pela Procuradoria-Geral da República:

"[...]Em análise à documentação que compõe o presente remédio constitucional, é possível perceber que ao longo do julgamento em testilha, tanto pelo juízo de primeiro grau quanto pelos colegiados, consignou-se a instalação e utilização dos equipamentos de informática doados à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia no escritório que tratava sobre a campanha eleitoral do paciente, ipsis litteris: [...]

Denota-se, dessa forma, que o desvio de bens públicos supostamente perpetrado por X, ao que consta, teve por escopo guarnecer seu comitê de campanha eleitoral, possibilitando a realização de atos de divulgação e publicidade (call center, s.m.j.), não sendo estes, por óbvio, declarados em sua prestação de contas à Justiça Eleitoral.

Tal conduta, em tese, configura o delito tipificado pelo artigo 350 do Código Eleitoral, que pune a omissão, em documento público ou particular, de declaração que dele devia constar, para fins de disputa de mandatos eletivos [...] Percebe-se, de tal forma, que vigora o entendimento de que a competência para processar e julgar investigações e processos envolvendo delitos eleitorais conexos a delitos comuns é da Justiça Eleitoral.

Por essas razões, assiste razão aos impetrantes quando afirmam que houve violação à jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal e ao artigo , inciso LIII, da Constituição Federal . Por fim, o pedido liminar está prejudicado pela perda superveniente do objeto (artigo 21, inciso IX, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), já que a eleição para o cargo de Governador do DF foi definida no primeiro turno das Eleições de 2022, que ocorreu no dia 02 de outubro, sem a vitória do ora paciente."

Ex positis, CONCEDO PARCIALMENTE A ORDEM de habeas corpus para reconhecer a competência da Justiça Eleitoral, remetendo-se os autos para essa justiça especializada no afã de que se verifique se houve a efetiva prática de crime eleitoral conexo a crimes comuns, prosseguindo-se o julgamento da ação penal, resguardada a possibilidade de aproveitamento dos atos instrutórios, nos termos do art. 567 do CPP.

Publique-se.

Brasília, 14 de novembro de 2022.

Ministro LUIZ FUX

Relator

Documento assinado digitalmente

👉👉👉👉 Meu Whatsaap de Jurisprudências, Formulação de HC eREsp - https://chat.whatsapp.com/FlHlXjhZPVP30cY0elYa10

👉👉👉👉 ME SIGA INSTAGRAM @carlosguilhermepagiola.adv

(STF - HC: 220033 DF, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 14/11/2022, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 14/11/2022 PUBLIC 16/11/2022)

  • Publicações1082
  • Seguidores99
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações56
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/stf-nov22-competencia-da-justica-eleitoral-em-caso-de-crimes-conexos/1689193071

Informações relacionadas

Supremo Tribunal Federal
Jurisprudênciahá 2 anos

Supremo Tribunal Federal STF - HABEAS CORPUS: HC XXXXX RJ XXXXX-03.2021.1.00.0000

Superior Tribunal de Justiça
Jurisprudênciahá 2 anos

Superior Tribunal de Justiça STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS: AgRg no HC XXXXX RS XXXX/XXXXX-4

Superior Tribunal de Justiça
Jurisprudênciahá 3 anos

Superior Tribunal de Justiça STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS: AgRg no RHC XXXXX RJ XXXX/XXXXX-1

Rafael Salamoni Gomes, Advogado
Modeloshá 4 anos

[Modelo] - Alegações finais por memoriais no processo penal

Thiago Marinho, Advogado
Modeloshá 4 anos

[Peça Modelo] Memoriais (Art. 403, §3° do CPP)

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)