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30 de Abril de 2024
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    Ficha Limpa não viola a presunção de inocência

    Ouve-se, principalmente, na linguagem popular que a Justiça Eleitoral é sazonal e que só funciona e existe nos anos que se têm pleitos. Na verdade, os Tribunais Eleitorais funcionam e existem exatamente como os demais que compõem o Poder Judiciário. Entretanto, nos anos de eleições os holofotes são todos a eles direcionados e as emoções políticas se afloram e se inflamam.

    Como dizia o Saudoso Político Mineiro Tancredo de Almeida Neves, eleição é emoção. E é essa emoção que faz com que temas eleitorais sejam elevados a números exponenciais nas vésperas dos pleitos e depois, com a mesma velocidade, se arrefecem e dão a impressão, especialmente àqueles que não estão acostumados com a vida do direito, que submergiram para o silêncio das profundezas, podendo emergir novamente dentro de quatro anos.

    E é isso que está acontecendo com a Lei Complementar 135, de 04 de junho de 2010, e publicada no Diário Oficial da União do dia 7 de junho de 2010, que atende pela alcunha de Lei da Ficha Limpa. Certamente, não fossem as eleições de 2010, as discussões sobre esta lei existiriam no seio de Poder Judiciário, mas sem sofrer as influências das emoções políticas do pleito que se avizinha.

    A lei está aí, votada e aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Presidente da República. Faz parte do ordenamento jurídico e nenhum magistrado pode simplesmente ignorá-la, como se ela não existisse no mundo jurídico. Entretanto, qualquer magistrado pode deixar de aplicar uma lei se considerá-la inconstitucional.

    Aqui, as emoções políticas inflamam, também, o debate jurídico. Há aqueles que defendem a constitucionalidade e a aplicação imediata da LC 135/10. Outros, mais radicais, entendem que ele é inconstitucional, pelos motivos e razões que serão abaixo demonstradas. Há aqueles que defendem que a lei é constitucional e que a sua aplicação para o pleito de 2010 é que seria inconstitucional.

    O operador do Direito não pode se deixar inflamar pelo brado das ruas. É neste cenário, sem nos deixar influenciar pelas emoções político-eleitorais, que tentaremos demonstrar o acerto da tese defendida por aqueles que defendem a constitucionalidade e a aplicação imediata da LC 135/10.

    Um breve sobrevoo

    A LC 135/2010 teve sua origem na iniciativa do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e que reuniu mais de 1,6 milhão de assinaturas.

    A sua tramitação foi catalisada pela abertura da Caixa de Pandora[2] no Governo do Distrito Federal, pela magnitude das denúncias, pela coleção de vídeos capaz de dar inveja a qualquer blockbuster e, principalmente, pelas pressões populares e da mídia.

    O artigo 14 da Carta da Republica de 1988 estabeleceu as condições básicas de elegibilidade e inelegibilidade. Estabeleceu, porém, que, por meio de Lei Complementar, outras hipóteses de inelegibilidade poderiam ser estabelecidas.

    Foi dentro deste contexto constitucional que a Lei Complementar 135/2010 foi editada, alterando a LC 64/1990, para estabelecer, de acordo com o artigo 14, parágrafo 9º, da CF/1988, outros casos de inelegibilidade, além daqueles já constantes do artigo 14, e os prazos de sua cessação, sempre a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública.

    Dentre os pontos mais importantes, está o artigo , inciso I, alíneas d, e, h, j, l e n da LC 64/1990, alterados pela LC 135/2010, onde estão os casos de inelegibilidade daqueles que forem condenados por um colegiado de Magistrados, ainda que a decisão final não tenha transitada em julgado.

    O primeiro ponto a ser abordado neste artigo diz respeito à (in) constitucionalidade da LC 135/2010. Em seguida, abordaremos a questão da aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010.

    Da presunção de constitucionalidade

    É de conhecimento geral que as disposições legais se presumem constitucionais até que o Poder Judiciário pelo Controle Difuso ou Concentrado de (IN) Constitucionalidade assim declare[3]. No Escol do Professor Inocêncio Mártires Coelho[4]: ...presumem-se constitucionais os atos do Congresso; na dúvida, decide-se pela sua constitucionalidade...[5].

    Clèmerson Merlin Clève diz que incide sobre a lei, em princípio, uma presunção juris tantum de validez, conseqüência do atestado de seu trânsito regular por todas as fases do procedimento legislativo.

    Os projetos de lei são analisados nas duas casas legislativas (artigo 65 da CF/1988), mas antes, passam pelas Comissões de Constituição e Justiça. Após os projetos serem analisados, votados e aprovados pelo Poder Legislativo, eles são encaminhados ao Presidente de República que pode vetá-los quando entender, i.e., que a Constituição está sendo violada (artigo 66 da CF/1988).

    Então, a simples existência de uma lei já demonstra que ela passou por várias esferas que analisam a sua (in) constitucionalidade e, se foi aprovada e está vigente, é porque todas as esferas concluíram pela sua constitucionalidade. Daí a presunção de constitucionalidade que paira sobre ela[6].

    O ex-Presidente da Suprema Corte dos EUA, William H. Rehnquist[7], dizia que, para ele, a presunção de constitucionalidade que paira sobre toda e qualquer lei vigente faz muito sentido. Segundo ele, se a Suprema Corte cometesse um equívoco julgando uma lei inconstitucional como constitucional, o resultado do equívoco seria deixar toda a nação com uma lei votada e aprovada pela popularidade dos membros escolhidos pela sociedade para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal e sancionada pelo Presidente da República com toda a sua representatividade popular. Por outro lado, se a Suprema Corte equivocadamente entender que uma lei constitucional é, na sua visão, inconstitucional, o erro seria muito mais grave. A Corte, neste caso, estaria anulando uma lei constitucional, com representatividade popular, votada e aprovada pelos membros eleitos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, não por ser ela contrária a um princípio constitucional, mas sim pela visão particular de cada um dos membros da Corte que formaram uma maioria.

    O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a lei goza, no ordenamento jurídico brasileiro, da presunção de constitucionalidade, assim como os atos administrativos gozam da presunção de legalidade, que nenhum julgador pode, monocraticamente, afastar com duas ou três linhas em exame de mera delibação[8].

    A presunção de constitucionalidade da lei atrai o ônus da prova de sua inconstitucionalidade para aquele que alega[9].

    Certa ou errada a Lex (gênero) deve ser cumprida e aplicada[10]. Caso seja contrária à princípios constitucionais ou normas hierarquicamente superiores, ações ou procedimentos próprios deverão ser tomados com o intuito de anulá-las, retirando-as de nosso ordenamento jurídico[11].

    Arnaldo Rizzado[12] diz que existem leis injustas, que se chocam contra princípios constitucionais. É meta suprema dos juízes fazer justiça, mesmo que se defrontando com uma lei injusta. Não lhe compete, porém, decidir se a lei apresenta-se ou não injusta. Permite-se que julgue contra a lei unicamente quando encontra um amparo superior, ou se a lei contraria uma outra lei de hierarquia mais elevada, ou a Constituição Federal.

    Alguém, então, poderia perguntar: É lícito ao Magistrado deixar de aplicar a LC 135/2010 por outro motivo que não seja a sua inconstitucionaliade? Com a resposta o já lembrado Arnaldo Rizzado[13] que, citando decisão do Supremo Tribunal Federal, diz que é lícito ao juiz interpretar a lei, porém não lhe é facultado revogá-la ou deixar de aplicá-la[14].

    Maria Luiza Machado Granziera[15] diz que o desrespeito à lei gera insegurança jurídica e fere o princípio da isonomia.

    Como lembra o Saudoso Geraldo Ataliba[16] não é aos tribunais, não é ao Poder Judiciário que se vai pedir justiça contra a lei. Logo, parafraseando Ataliba, não é aos tribunais, não é ao Poder Judiciário que se vai pedir justiça contra a Lei da Ficha Limpa.

    Somente se declara a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de um ato, inclusive do legislativo, quando não houver outra alternativa, agindo, assim, por absoluta necessidade. O Juiz L. Hand, citado por John E. Nowak e Ronald D. Rotunda[17], diz que há de se ter em mente o princípio de que o poder de uma Corte de Justiça em anular um ato de outro Poder deve ser exercitado raramente e somente quando houver absoluta necessidade. Este poder deveria ser exercitado apenas e por absoluta necessidade para se evitar a violação de um claro e importante princípio constitucional[18]. Se a Corte puder interpretar a lei em um sentido que não seja contrário à Constituição[19], assim deve proceder para salvá-la da declaração de inconstitucionalidade: Quando uma lei é impugnada perante o Judiciário por suposta inconstitucionalidade, a Corte deve antes verificar da possibilidade dela ser razoavelmente interpretada de maneira e evitar a sua inconstitucionalidade[20]. Antes disso, em julgamento que data de 1811, a Suprema Corte dos EUA, em decisão de lavra do Chief Justice Tilghman, já decidia que um ato do legislativo somente deveria ser declarado nulo (inconstitucional) se não houvesse espaço para a sua interpretação conforme à Constituição[21].

    A declaração de inconstitucionalidade não se confunde com a lei boa ou má[22]. John E. Nowak e Ronald D. Rotunda[23] lecionam que uma questão constitucional não se confunde com boas ou más políticas públicas e William Rehnquist[24] entende que o fato de uma lei ser tida como injusta, não deve, por si só, ser motivo para sua invalidade. Se não houver qualquer inconstitucionalidade e a questão for apenas de saber se a lei é boa ou má, o Judiciário deve se abster de declarar a lei nula ou inválida, mantendo aquilo que o Legislativo aprovou[25], conforme já decidiu a Suprema Corte dos EUA em decisão cuja relatoria coube ao Justice Black[26]. Por este motivo é que o professor Laurence H. Tribe[27], da Universidade de Harvard, diz que a falta de inteligência da legislação ou da lei não é, de per se, uma inconstitucionalidade.

    Então, julga-se em conformidade com a lei e deixa-se de aplicá-la somente quando for o caso dela estar em contradição com preceitos de maior monta encontrados na Constituição. Nesses casos, o Judiciario deve adotar o rito dos artigos 97 da CF e 480 e 481 do CPC para o controle concreto/difuso de inconstitucionalidade ou as acoes diretas (artigos 102 e 103 da CF/1988) perante do STF.

    Pede-se licença para citar o seguinte precedente do STF, verbis:

    Não pode o Juiz, sob a alegação de que a aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com o seu sentimento de justiça ou de equidade, substituir-se ao legislador para formular de próprio a regra de direito aplicável.

    Do voto do Relator, Ministro Oscar Corrêa, colhem-se as seguintes lições, verbis:

    Que não está o Juiz adstrito à letra da lei, não se nega; Que o fundamento moral da aplicação do texto legal não lhe é estranho, não se objeta; Que a equidade, os fins sociais, o bem comum devem inspirá-lo, não só se reconhece, de consciência, como se afirma em disposição expressa. Mas, por outro lado, que o Juiz não se substitui ao legislador e não julga contra-legem; Que não despreza e descumpre a norma impositiva, é tanto regra jurídica como regra moral: porque seria imoral que se autorizasse o Juiz a negar a aplicação à lei sob o fundamento moral de que sua consciência a ela se opunha. Estabelecer-se-ia o reino do arbítrio, da vontade de cada um, erigida em juízo soberano. O que equivaleria a não haver juízo que pudesse impor-se a todos.

    Em resumo, como ponderou o Ministro Oscar Corrêa, não é contrariando a lei que se constrói o Direito. O arbítrio deve sempre ser combatido, ainda que proveniente do Poder Judiciário:

    O Poder não fundado na lei, o Poder contra a lei, é o Poder discricionário. É, exatamente, o Poder que a lição da História nos ensinou a odiar, porque é o Poder dos tiranos. É o Poder que aprendemos a odiar, mesmo quando esse Poder esteja nas mãos dos juízes[28].

    Logo, como lembra Flávio Luiz Yarshell,[29] deve o julgador se submeter à lei, o que, como observou Carlos Maximiliano[30], é útil para o povo e para o juiz:

    Constitui, para este, um vínculo, um grilhão, limite ao seu império; outrora o julgador deliberava de acordo co ma sua consciência; a desconfiança popular cobriu-o com a lei; serve este de couraça, para ele, contra a maledicência, mas também o amarra e imobiliza de modo que lhe não permite o anseio da onipotência.

    Oportuna a lição de Júlio Fabbrini Mirabete[31] para quem

    deve o juiz julgar de acordo com a vontade da Lei. É ela a primeira fonte do Direito e, nas democracias, é o resultado da vontade da maioria dos cidadãos, que elegem seus representantes para, no Legislativo, elaborarem as normas destinadas a regerem a sociedade a que pertencem. Ao exercer o poder jurisdicional, o Juiz deve obedecer a vontade da lei [mens legis] porque esta é a vontade do povo. Ainda que dela discorde, mesmo que lhe pareça injusta, a lei deve ser respeitada pelo Magistrado, aquele cujo primeiro dever é acatá-la[32].

    Não se está aqui propugnando pelo respeito irrestrito à Lex (gênero), pois antes dela, há a Constituição Federal de 1988 que precisamos sempre proteger. A LC 135/2010 deve ter a sua presunção de constitucionalidade garantida e, assim sendo, deve ser aplicada pelo Poder Judiciário. Somente se admite a sua retirada do mundo jurídico se houver efetivamente colisão com princípios de maior envergadura, em estrita observância ao princípio da hierarquia das normas.

    O simples afastamento ou a não aplicação da LC 135/2010 sem a adoção do rito trazido pelos artigos 480 e 481 do CPC e 97 da CF/1988 (Cláusula do Full Bench ou da Reserva de Plenário) e sem a sua expressa declaração de inconstitucionalidade acaba também por violar a Súmula Vinculante 10 do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe:

    Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.

    Em face do até aqui exposto, claro está que a Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), assim como todas as outras aprovadas pelo Poder Legislativo, possui presunção de constitucionalidade, que somente pode ser afastada se violar, direta e frontalmente, algum princípio constitucional[33], e que o Magistrado não pode, por razões pessoais, simplesmente deixar de aplicá-la.

    Da suposta inconstitucionalidade da lei

    Parte-se do princípio de que a eliminação e o combate a argumentos contrários a uma determinada tese representam, sempre, um grande progresso, como não cansa de dizer o professor Adrian Vermeule, da Universidade de Harvard[34].

    Vozes de peso, dentre elas podemos citar a do Ministro Eros Roberto Grau[35], ecoam no sentido de que a Lei da Ficha Limpa é inconstitucional, por vilipendiar a presunção de inocência que, por imperativo Constitucional, perdura até que se tenha o trânsito em julgado final da decisão.

    Data maxima venia do entendimento daqueles que defendem esta tese, creio que somente se pode assim concluir, se entendermos que o princípio da presunção de inocência é um princípio absoluto, superior aos demais.

    É o próprio Ministro Eros Roberto Grau quem nos adverte, corretamente, que a Constituição e as Leis não podem ser interpretadas em fatias[36].

    É desaconselhável um olhar fragmentado da Constituição e das Leis. Não se pode partilhar em fatias o texto constitucional para aferir a intencionalidade de seus autores, eis que estes subscreveram o todo, não os fragmentos da Carta Magna. Não será pinçando o artigo , inciso LVII, da CF/1988 (locus do citado principio) e desprezando ou menosprezendo os demais, que chegaremos à vontade constitucional.

    Karl Engisch[37], citando o jusfilósofo Stammler, afirma que quando alguém aplica um artigo do Código, aplica todo o Código[38]. Logo, quando se interpreta um artigo da Constituição, está a se interpretar ela toda[39].

    O jurista, que nada mais é do que o lógico, o semântico e o pragmático da linguagem do direito, há de se debruçar sobre os textos, quantas vezes obscuros, contraditórios, penetrados de erros e imperfeições terminológicas[40], para construir a essência dos institutos, surpreendendo, com nitidez, a função da regra, no implexo quadro normativo[41]. Este mal também afeta a própria Constituição da República de 1988, que está repleta de supostas contradições[42] e imperfeições terminológicas[43].

    A norma deve ser interpretada em função da unidade sistemática[44] da ordem jurídica[45]. Paulo de Barros Carvalho[46] alerta que a leitura de um único artigo será insuficiente para a compreensão da regra jurídica. E, quando isso acontece o exegeta se vê na contingência de consultar outros preceitos do mesmo diploma e, até, a sair dele, fazendo incursões pelo sistema[47].

    Este também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal[48], em decisão de lavra do Ministro Carlos Ayres Britto[49], para quem é fato que, muitas vezes, o inteiro teor de uma figura de Direito não se contém em um único dispositivo de lei. Cada dispositivo, em verdade, pode não encerrar senão um fragmento de norma. O fragmento restante pode se conter em outro texto ou até mesmo em outros textos do mesmo diploma legal[50]. Relembrem-se que o Chief Justice Marshall, no conhecido julgamento do caso Marbury v. Madison[51], enfatizou que, se a Corte de Justiça analisa um texto legal, ela deve analisar todos os artigos da lei e, inclusive, a Constituição.

    Se ao hermeneuta fosse dado fatiar a Constituição, a Lei ou a Legislação e pinçar apenas a parte ou o artigo que lhe convém do texto, desprezando ou menosprezando as demais, a atividade do aplicador da lei certamente invadiria o espaço reservado ao legislador, violando, conseqüentemente, o artigo da CF/1988 (Princípio da Separação de Poderes). Fatiando e pinçando o aplicador da lei criaria um novo texto legal que, certamente, não refletiria aquele aprovado pelo Legislativo e, até, podendo modificá-lo com os seus pinçamentos.

    Oportuna é a lição de Francesco Carrara[52] que, sobre o tema, afirma que nada é pior do que o intérprete colocar na lei o que na lei não está por preferência ou dela retirar o que nela está por não lhe agradar o princípio.

    O caso concreto é imbricado, mas a resposta há de ser encontrada com o ordenamento jurídico posto. Ronald Dworkin leciona:

    Somos advogados, não somos filósofos. O Direito tem sua própria disciplina, seu método próprio. Quando se cursa a Faculdade de Direito, você é ensinado a pensar como advogado e não como filósofo. Advogados não tentam decidir sobre vastas questões teóricas da Moral ou da Teoria Política. Eles decidem sobre assuntos especiais, tratados separadamente, um a um, de forma mais limitada e restrita. Os meios de argumentação dos advogados não são imponentes como aqueles do tratado filosófico, mas simples e confiáveis métodos de análise textual e analógica[53].

    O que se impõe ao intérprete, em hermenêutica construtiva, é a busca de adequada conciliação, pelo critério da razoabilidade, entre os princípios legais em aparente contradição[54].

    Nenhum artigo ou princípio constitucional é absoluto[55], prevalecendo, sempre, a interpretação lógico-sistemática da Constituição, conforme nos ensina Laurence H. Tribe[56] e conforme já decidiu a Suprema Corte Norte-Americana[57].

    A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de ponderação. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por não ser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas.

    Tampouco, podem ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos hierárquico, cronológico e da especialização quando a colisão se dá entre disposições da Constituição originária.

    Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores é técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade[58].

    Do ponto de vista jurídico, é forçoso admitir que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Ou seja, todas as normas constitucionais têm igual dignidade. Em outras palavras: não há normas constitucionais meramente formais, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da Constituição, conforme asseverou J.J. Gomes Canotilho. Existem, é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas, nem por isso, é correto dizer que há hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata dos princípios da unidade da Constituição (Einheit der Verfassung) e da concordância prática, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre si.

    O princípio da presunção de inocência do artigo 5º, inciso LVII, convive com outros, principalmente aqueles que sustentam a prisão cautelar[59] do processo penal (Incisos XLIII, XLIV, LXV, LXVI e LXVIII, todos do artigo da CF/1988).

    No processo penal, onde o que está em jogo é um dos bens mais importantes de qualquer pessoa[60], a sua liberdade, a presunção de inocência cede espaço a outros princípios constitucionais para possibilitar a prisão cautelar, não só antes do trânsito em julgado da sentença condenatória final, mas, antes mesmo da instauração do processo penal, pois ela é cabível ainda em sede de inquérito policial, onde nem mesmo um processo existe[61].

    A interpretação da Constituição quer em processo civil, quer em processo penal deve ser a mesma, como entende a Suprema Corte Norte-Americana[62].

    E, não há porque se admitir a ponderação do princípio da presunção de inocência quando se está em jogo a liberdade de uma pessoa e não admiti-lo quando o que se tem é algo muito menor[63].

    Seria a consagração de um verdadeiro absurdo que se entendesse que a presunção de inocência poderia ser ponderada para justificar a prisão (forma de restrição à liberdade) de uma pessoa antes mesmo da inauguração do processo penal, ainda em sede de inquérito policial, e que essa mesma presunção de inocência seria absoluta a justificar que mesmo um condenado por um colegiado de magistrados (no Brasil, em segunda instância), não pudesse sofrer uma restrição de um direito seu que, nem de perto, afeta à sua liberadade. Nunca é demais lembrar, com Carlos Maximiliano[64], que o direito deve ser inteligível de forma a não consagrar absurdos[65].

    A Constituição deve ser interpretada da mesma maneira para todos, ricos ou pobres, ou seja, para o bem ou para o mal de todos e não para o bem de determinadas pessoas e para o mal de outras[66]. Não há interpretação seletiva da Constituição.

    A Corte Suprema dos EUA já decidiu que a Constituição pensada e aprovada sob a teoria de que todas as pessoas dos diversos Estados devem nadar ou se afogar juntas e que a prosperidade da nação, a longo prazo, somente se dará com a união de todos e não com a divisão[67].

    Como se vê o princípio da presunção de inocência não é absoluto, nem muito menos tem a abrangência/amplitude propugnada por aqueles que defendem a inconstitucionalidade da LC nº 135/2010, devendo ser lembrado, como já advertiu o Juiz Brandeis, da Suprema Corte Norte-Americana, que nossos preconceitos não devem se tornar princípios legais[68].

    Há, aqui, um outro ponto que se faz necessário abordar como forma de reforçar o posicionamento defendido no presente artigo, apesar de saber que a sua utilização isolada é de pouca (rectius: pouquíssima) importância para o hermeneuta. Esse ponto é a interpretação topográfica do princípio da presunção de inocência.

    Em que pese as críticas que podem advir desse ponto, não se pode deixar de abordá-lo, pois como afirmou o tributarista José Souto Maior Borges[69], é preferível um erro que decorra de uma tentativa ousada e comprometida com uma construção teórica grandiosa, a uma verdade elementar e até superficial[70].

    Como leciona o professor Adrian Vermeule, da Universidade de Harvard, todas as fontes de informação e de interpretação podem e devem ser usadas[71]. Consequentemente, não podemos desprezar, ainda que seja ad argumentandum tantum, a interpretação topográfica do princípio da presunção de inocência.

    O artigo da CF/1988 inaugura o capítulo dos direitos e das garantias constitucinonais e é composto de 78 incisos que tratam de uma verdadeira miríade de temas. O inciso XXXVII do artigo 5º fala que não haverá juízo ou tribunal de exceção. O próximo inciso (XXXVIII) já trata de matéria estritamente penal, com a instituição do júri. O inciso XXXIX diz que não há crime sem lei anteior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. A partir do inciso XXXVIII do artigo da CF/1988 até o inciso LXVIII, nota-se uma feição marcadamente penal/criminal, salvo os incisos LIII ao LVI e LX que se aplicam ao genero processo. Ve-se, claramente, que o citado preceito está envolto em incisos que tratam estritamente da questão penal, sendo, por isso, um princípio do direito constitucional penal[72] que, até pode ser aplicado aos demais processos, mas sempre lembrando de suas origens e de sua interpretação no processo penal/criminal que não pode ser desarmônica com a de outro processo.

    Se a presunção de inocência fosse um princípio absoluto, qual seria a razão de o próprio Legislador Constitucional dizer, nos incisos XLIII e XLIV, em crimes inafiançáveis e, no inciso LXVI, em liberdade provisória e fiançaa? Pergunta-se: Após a condenação e o trânsito em julgado final da sentença condenatória, existe liberadade provisória ou mesmo fiança?

    Como se não bastasse, o inciso LXI do artigo 5º fala que ninguém será preso senão em flagrante delito. Mas, se como defendem os inconstitucionalitas de plantão, a presunção de inocência vigora até o trânsito em julgado final da sentença condenatória, somos, então, obrigados a concluir que a prisão em flagrante delito viola a presunção de inocência? Claramente que não, é a única resposta possível. Ambas têm previsão constitucional.

    Se no processo penal, como visto, o princípio sofre temperamentos, inclusive na fase de inquérito policial, qual razão para não sofrer também no presente caso, ainda mais quando o bem em risco, a liberdade, não está em jogo?

    Em nenhum outro país o princípio da presunção de inocência tem a amplitude defendida por aqueles que pregam a inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa por estar, supostamente, em desacordo com o artigo , LVII da CF/1988[73].

    De uma forma ou de outra, todos os países possuem em suas legislações a garantia da presunção de inocência que, na verdade, toca a uma questão básica: cabe a quem acusa provar a culpabilidade do réu e, se nada for provado contra ele perante o Judiciário, o réu deve ser considerado inocente[74]. Ou seja, na dúvida, absolve-se[75].

    A Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais do Conselho da Europa, no seu artigo 6.2, diz que qualquer pessoa acusada de um crime deve ser considerada inocente até prova em contrário em conformidade com a lei[76]. O artigo 48 da Convenção de Direitos Fundamentais da União Européia repete, ipsis litteris, o citado preceito.

    O artigo 11, aliena d, da Constituição Canadense, inserido em Capítulo reservado aos Direitos e Liberdades, estabelece que qualquer pessoa acusada de um crime tem o direito de ser considerada inocente até que se prove a sua culpabilidade em conformidade com a lei e em audiência pública e justa em tribunal independente e imparcial[77].

    Na França, a Constituição da República não consagra expressamente a presunção de inocência. Entretanto, o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de valor constitucional, estabelece que todos são presumidos inocentes até que sejam declarados culpados[78].

    O artigo 49 da Constituição Russa é tão analítico quanto o brasileiro e diz que todo acusado de um crime deve ser considerado inocente até que sua culpabilidade seja provada em conformidade com a lei federal e estabelecida por uma sentença válida exarada por uma Corte de Justiça. E, continua, que o réu não pode ser obrigado a provar a sua inocência e que a dúvida deve ser interpretada sempre em favor do réu.

    Já a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, no seu artigo 11, estabelece que toda pessoa acusada de um crime goza da presunção de inocência até que sua culpabilidade seja provada de acordo com a lei em um julgamento público, no qual ele tenha tido as garantias necessárias para a sua defesa[79].

    O que se quer demonstrar é que, com mais ou menos palavras e das suas próprias maneiras, todos os países consagram a presunção de inocência e que tal princípio não veda a prisão de um acusado antes da sentença penal final, pois há outros princípios que, também, devem ser respeitados no juízo concreto de ponderação[80].

    Nos EUA, assim como aqui no Brasil, a presunção de inocência é utilizada na prática para a soltura de acusados antes de suas condenações. Entretanto, a 8º Emenda Constitucional Norte-Americana, e que trata da ilegalidade da fiança excessiva, é utilizada como fundamento jurídico-constitucional para que réus que sejam acusados de crimes hediondos e que coloquem em perigo ou risco a sociedade permaneçam encarcerados antes mesmo de suas condenações definitivas. Só se fala em fiança excessiva (excessive bail) antes da condenação definitiva. Lá, como aqui, a presunção de inocência é relativa.

    No Canadá, conforme decidido pelo Justice Lamer, no caso R v. Pearson[81], o princípio da presunção de inocência não significa que não possa sofrer restrições na sua liberdade antes de sua condenação por uma Corte de Justiça. A seção 9 da Constituição Canadense fala em prisão arbitrária e a 11, aliena e, fala do direito do preso de não ter negado o direito a fiança em valor razoável imotivadamente. Em face destes preceitos constitucionais foi que o Judiciário Canadense decidiu que há a possibilidade de se realizar a prisão de um acusado antes de sua condenação por um juiz.

    Enfim, não se tem notícia de nenhum ordenamento jurídico onde o princípio da presunção de inocência seja um princípio absoluto, impedindo a restrição de liberdade do réu em todas as situações.

    A experiência internacional constante do presente trabalho foi trazida como argumentação para as conclusões. Não se propugna a adesão deste ou daquele modelo de constituição. Entretanto, as experiências internacionais são sempre de grande valia, pois nossos problemas constitucionais e legais não são exclusivos e nada impedem que possamos aprender com lições de outras plagas. O próprio ex-Presidente da Suprema Corte dos EUA, William H. Rehnquist, em 1993, já observava que, considerando que o direito constitucional já estava enraizado em muitos outros países, já era hora daquela Corte Suprema começar a olhar as decisões de outras cortes constitucionais para auxiliar nas soluções dos casos por ela enfrentados e julgados[82]. Um ano após a advertência do Juiz-Presidente da Suprema Corte dos EUA, William H. Rehnquist, de que se utilizasse a experiência de cortes constitucionais de outros países na solução dos casos por ela examinados, julgou-se o caso Holder v. Hall e a decisão final se baseou em casos semelhantes julgados na Bélgica, Chipre, Líbano, Nova Zelândia, Alemanha Ocidental e Zimbábue[83].

    Da não violação e da aplicação

    É muito mais fácil propugnar pela aplicação do artigo 16 da CF/1988 e dizer que a LC 135/2010 somente terá validade para as próximas eleições. Entretanto, ao jurista não cabe adotar o caminho mais simples, mas sim construir o caminho constitucionalmente aceito, ainda que seja o mais espinhoso[84].

    Vejamos o que diz o artigo 16 da Carta Magna de 1988, verbis: Art. 16. A lei que altere o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

    A Constituição é sobejamente clara ao restringir, no seu artigo 16, que somente a lei que altere o processo eleitoral (norma instrumental). Tudo aquilo que não for processo eleitoral, ainda que venha a atingir direitos políticos e as eleições, não está abrangido pelo citado artigo.

    Normas de direito processual eleitoral e de direito material eleitoral são distintas, como bem nos presenteou o Ministro Moreira Alves na ADIN 354/1990 com brilhante lição, verbis:

    O que é certo é que processo eleitoral é expressão que não abarca, por mais amplo que seja o sentido que se lhe dê, todo o direito eleitoral, mas apenas o conjunto de atos que estão diretamente ligados às eleições.

    (...)

    A meu ver, e desde que processo eleitoral não se confunde com direito eleitoral, parte que é dele, deve-se entender aquela expressão não como abrangente de todas as normas que possam refletir-se direta ou indiretamente na série de atos necessários ao funcionamento das eleições por meio do sufrágio universal o que constitui o conteúdo do direito eleitoral -, mas, sim, das normas instrumentais diretamente ligadas à eleições (...).

    Note-se, porém, que são apenas as normas instrumentais relativas às eleições, e não as normas materiais que a elas de alguma forma se prendam. Se a Constituição pretendesse chegar a tanto não teria usado da expressão mais restrita que é processo eleitoral (...)

    Diferentemente seria se o legislador constitucional tivesse dito, no citado artigo 16, a lei que, de qualquer modo, afete as eleições (norma de direito material) entrará em vigor na data de sua publicação, entretanto, não se aplicará à eleição que ocorra até um ano da data da sua vigência.

    Mas, o Legislador Constitucional não quis restringir. Logo, não cabe ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu ou inserir palavras na lei[85].

    Atente-se para a advertência de Carlos Maximiliano[86], isto a dosar-se a carga construtiva, cuja existência, em toda interpretação, não pode ser negada:

    Cumpre evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos.

    O Supremo Tribunal Federal já decidiu que: Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação a ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanistica do intérprete. No exercício gratificante da arte de interpretar, descabe inserir na regra de direito o próprio juízo - por mais sensato que seja - sobre a finalidade que conviria fosse por ela perseguida[87]. Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli[88], repete, ipsis litteris, a lição do STF citada acima[89]. Essa mesma lição também nos é fornecida por Laurence H. Tribe, e por Michael C. Dorf, em obra conjunta:

    (...) é tão ilegítimo se retirar algo que está escrito naConstituiçãoo (...) quanto é adicionar algo que lá não se encontra e que desejaríamos que lá estivesse[90].

    Como acentuou Justice Anthony Kennedy[92], da Suprema Corte dos Estados Unidos da América: Respeitar a Constituição tem um preço. Nós pagamos o preço, alguma frustração, alguma irritação quando vemos os direitos constitucionais terem força[93]. Neste diapasão, correta a afirmação da Juíza Jutta Limbach, como Presidente da Corte Suprema Alemã (1995) na Revista Deustchland, só conheço uma medida com que medir: a Constituição do País[94].

    Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão: Ao juiz não é permitido mediante interpretação conforme a Constituição dar um significado diferente a uma lei cujo teor e sentido resulta evidente (1 BvL 149/52-53, 11/06/1958).

    Na visão do Supremo Tribunal Federal brasileiro desponta a que segue: Se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo (STF, RP 1417-7/DF, Relator Ministro Moreira Alves, DJU 15/04/1998)[95].

    Impõe-se, aqui, recordar as palavras de William Sutherland[96], a propósito da interpretação das cláusulas constitucionais, verbis:

    Nenhuma Corte de Justiça está autorizada a interpretar uma cláusula da Constituição de maneira a contrariar ao seu significado óbvio (...). A Corte não tem o direito de inserir nada na Constituição que lá já não se encontre ou possa estar implícito e, quando o Texto Constitucional não é ambíguo, a Corte não está autorizada a ir além do significado constante do texto[97].

    Assim, não cabe ao intérprete restringir mais, onde o legislador não quis restringir, inserindo palavras no texto ou modificando as existentes por outras.

    A Lei da Ficha Limpa é uma Lei Complementar (LC 135/2010) e que busca fundamento constitucional no artigo 14, parágrafo 9º, da CF/1988, sendo certo que a restrição do artigo 16 da CF/1988 se aplica tão somente à lei ordinária que, porventura, altere o processo eleitoral (norma instrumental).

    E, esta lei é a Lei 9.504/1997 que trata do processo eleitoral, dispondo sobre as coligações (artigo 6º), as Convenções para a Escolha de Candidatos (artigos 7º ao 9º), o Registro de Candidatos (artigos 10 ao 16- A), a Arrecadação e da Aplicação de Recursos nas Campanhas Eleitorais (artigos 17 ao 27) , a Prestação de Contas , as (artigos 28 ao 32) Pesquisas e Testes Pré-Eleitorais , a Prop (artigos 33 ao 35) aganda Eleitoral em Geral , a Propagan (artigos 36 ao 41- A) da Eleitoral na Imprensa , a Propagan (artigo 43) da Eleitoral no Rádio e na Televisão , o Direito (artigos 44 ao 57- I) de Resposta , o Sistema (artigos 58 e 58-A) Eletrônico de Votação e da Totalização dos Votos , as Mesas R (artigos 59 ao 62) eceptoras , a Fiscalização (artigos 63 e 64) das Eleições e as Condutas Ve (artigos 65 a 72) dadas aos Agentes Públicos em Campanhas Eleitorais .(artigos 73 a 78)

    O único dispositivo da Lei 9.504/1997 que fala em (in) elegibilidade é o parágrafo 10 do artigo 11 ao estabelecer que: As condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade.

    Ou seja, ninguém tem direito adquirido a elegibilidade pela lei vigente em 2008 ou 2009, mas sim aquela lei vigente no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ou seja, a lei vigente às 19hs do dia 05/07/2010 (artigo 11 da Lei 9.504/1997). De nada adianta o candidato dizer que em 2008, 2009 ou que em 03/06/2010 preenchia todos os requisitos de elegibilidade e que uma nova lei, aprovada em 04/06/2010 (LC 135/2010), não lhe pode retirar esse seu suposto direito adquirido. Não há direito adquirido algum, mas, quando muito, uma mera expectativa de direito.

    O fato de a Lei 9.504/1997 não tratar em nenhum momento das hipóteses de (in) elegibilidade demonstra, claramente, que tais hipóteses ou estão na Constituição ou, então, em Lei Complementar, conforme estabelece o artigo 14, parágrafo 9º, da CF/1988 e que tais condições não fazem parte do que o Legislador Constitucional quis significar como sendo o processo eleitoral[98].

    A lei ordinária que fosse aprovada, em respeito ao artigo 16 da CF/1988, jamais poderia tratar de outras hipóteses de inelegibilidade, pois estas estão diretamente presentes na CF/1988 ou, então, em Lei Complementar, in casu, a LC 64/1990 e a LC 135/2010 (artigo 14, parágrafo 9º, da CF/1988). Isso não era dado ao legislador ordinário fazer, salvo por meio de LC[99].

    Não se pode confundir as condições da ação do processo civil e as hipóteses de (in) elegibilidade eleitoral. As primeiras são questões processuais, já as segundas não fazem parte do processo eleitoral, pois são anteriores a ele. Somente pode participar do processo eleitoral os que, às 19 horas do dia 5 de julho de 2010, preenchiam os requisitos de elegibilidade constantes na CF/1988 e na LC (artigo 14, parágrafo 9º) e não se enquadravam em qualquer hipótese de inelegibilidade.

    O STF já decidiu favoravelmente (decisão por maioria de 6 x 5[100]votos) ao que ora se propugna, quando da análise de ação sobre a LC 64, de 18/05/1990 e que foi utilizada nas eleições de outubro/1990[101]. Vejamos a ementa do caso citado, verbis:

    EMENTA - I. Processo eleitoral: vacatio legis (CF, art. 16): inteligência. 1. Rejeição pela maioria - vencidos o relator e outros Ministros - da argüição de inconstitucionalidade do art. 27 da LC 64/90 (Lei de Inelegibilidades) em face do art. 16 da CF: prevalência da tese, já vitoriosa no TSE, de que, cuidando-se de diploma exigido pelo art. 14, par.9., da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, a sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 da mesma Constituição. II. Inelegibilidade: abuso do exercício do poder (CF, art. 14, par.9.): inteligência. (...).

    (STF, Pleno, RE 129.392, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ. 16.04.93)

    Entretanto, alguns juristas[102] dizem que a decisão data do início da década de 1990 e que a composição do tribunal hoje mudou, sustentando que isso justificaria uma mudança de posição do STF quanto ao tema.

    Não se trata de fundamento jurídico-constitucional e se ignora a presunção de que os julgamentos anteriores de um Tribunal estão corretos[103] e, ainda, se ignora que a obediência aos julgamentos anteriores é uma forma de garantir os princípios da segurança jurídica e da isonomia[104].

    Thomas G. Hansford e James F. Springs II lecionam que é importante notar que os Magistrados da Suprema Corte não buscam simplesmente proferir decisões que retratem suas preferências pessoais sobre determinada ação pública. Eles buscam, com suas decisões (precedentes), influenciar o modo de ser e de agir da sociedade, bem como dos demais poderes[105].

    Estudos indicam que um precedente judicial influencia comportamentos das partes privadas, as ações políticas a serem implementadas pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas, a Câmara Legislativa, bem como as Câmaras de Vereadores[106].

    O conhecido Juiz da Suprema Corte Norte-Americana, Justice Marshall, dizia que: a doutrina do precedente (stare decisis) é importante não apenas pelo fato de as pessoas confiarem nas decisões do Judiciário para estruturarem suas vidas e atividades, mas, também e principalmente, pelo fato de a obediência ao precedente ser parte da concepção do nosso direito de que o Poder Judiciário é uma fonte de julgamentos impessoais e fundamentados[107].

    A doutrina do respeito aos casos julgados (precedentes ou stare decidis) é um ponto central do nosso sistema legal e o seu respeito traz uma variedade enorme de benefícios, tais como, clareza, estabilidade, segurança e justiça. Tanto Magistrados, quanto juristas e professores concordam que, por estas razões, as Cortes Superiores e a Corte Suprema devem ter parcimônia ao realizarem a revogação de uma tese já consagrada em um precedente[108].

    O fato de o precedente igual ao que ora se analisa ter sido julgado no início da década de 1990, antes de significar uma fraqueza, demonstra a sua solidez. A experiência internacional aponta para o lado oposto da conclusão dos E. Juristas que defendem a fraqueza de precedentes velhos. Thomas G. Hansford e James F. Spriggs II, que se debruçaram sobre a Política dos Precedentes na Suprema Corte Norte-Americana, constataram que na medida em que os precedentes ficam velhos, a probabilidade de serem reformados ou revistos é reduzida significativamente[109].

    Quanto à alegação de que a composição do STF mudou e que por este motivo há grandes possibilidades de a decisão da década de 1990 não ser respeitada, há de se dito que a Constituição não é um espelho onde se possa ver apenas a imagem da visão do próprio intérprete ou o reflexo que o intérprete tem do humor da sociedade[110]. A decisão do Tribunal reflete a posição da instituição e não pessoal de quem quer que seja.

    A sociedade não pode partir do princípio de que a mudança da composição de um Tribunal gera a (grande) possibilidade de mudança nos precedentes. Se assim for, estará instaurada a insegurança jurídica, um princípio consagrado na CF/1988 (artigos 5º e 6º).

    Esta tese, defendida por poucos, vai de encontro aos princípios vetores que justificaram a aprovação das Súmulas Vinculantes, das Súmulas impeditivas de recurso e do respeito[111] aos precedentes da Corte Suprema e dos Tribunais Superiores pelos inferiores. A prevalecer esta tese, o princípio da segurança jurídica estará sempre na berlinda quando a composição de um Tribunal for modificada, não se sabendo como, onde e quando haverá a guinada de 180º e se adotará o voto banana-boat[112], na feliz expressão cunhada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça[113].

    Bem analisada a matéria, pode-se concluir que a Lei da que nunca foi um princípio absoluto, nem no direito penal/criminal que seria mais grave e onde está em risco a liberdade da pessoa humana. Nem muito menos deve a LC nº 135/2010 sofrer as restrições da anualidade do artigo 16 da CF/1988, pois a restrição toca apenas ao direito instrumental e as condições de (in) elegibilidade estão previstas no próprio artigo 14 da CF/1988 ou em lei complementar, conforme o artigo 14, parágrafo 9º, da CF/1988, não sendo norma que afete o direito instrumental (processo eleitoral).

    Ao hermeneuta não lhe é dado adotar o caminho mais simples na solução dos problemas enfrentados. Antes de tudo, o caminho precisa ser o constitucionalmente correto. E, tal como Édipo, no enigma da esfinge, que, primeiro ouviu atentamente o quebra-cabeça, depois ouviu a ameaça decifra-me ou devoro-te e, finalmente, proferiu resposta clara e precisa, aqui, no presente caso da Lei da Ficha Limpa, não há o que decifrar, o sistema é claro e limpo, bastando a nós aceitá-lo. E, à Esfinge, nada mais lhe restará que, furiosa, se atirar no precipício, assim como ocorreu na mitologia grega.

    [1] Esfinge vem do grego sphingo que significa estrangular. Diz a mitologia grega que a esfinge teria sido enviada por Hera da Etiópia para Tebas. Ela perguntava a todos que passavam à sua frente sobre o mais famoso quebra-cabeça da história, conhecido como o enigma da esfinge. Dizia ela: Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois e à tarde tem três?. Depois, vinha a advertência: decifra-me ou devoro-te. Ela estrangulava qualquer pessoa inábil a responder. Entretanto, Édipo resolveu o quebra-cabeça, respondendo: É o homem. Engatinha como bebê, anda sobre dois pés na idade adulta e usa uma bengala quando é ancião. Furiosa com tal resposta, a esfinge teria cometido suicídio, atirando-se de um precipício.

    [2] PANDORA vem do grego e significa a que tudo possui. Na mitologia grega, Pandora foi uma mulher criada por Zeus com a ajuda de todos os outros Deuses para punir os homens. Hefesto (Vulcano) moldou sua forma a partir de argila. Afrodite (Vênus) deu-lhe beleza. Febo (Apolo) incutiu-lhe talento musical. Ceres (Deméter) ensinou-lhe a arte da colheita. Atena (Minerva) concedeu-lhe a habilidade manual. Mercúrio (Hermes) dotou-a do dom da persuasão. Poseidon (Netuno) forneceu-lhe um colar de pérolas e a certeza de não se afogar. E, Zeus (Júpiter), antes de enviá-la a Terra como presente a Epimeteu, arrematou a obra e deu-lhe uma série de características pessoais.

    Conta a história que Prometeu, irmão de Epimeteu, antes de tudo, lhe havia dito para jamais aceitar qualquer presente ofertados pelos Deuses.

    Epimeteu, em um primeiro momento, foi presenteado pelos Deuses com uma caixa que continha todos os males. Desobed

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