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2 de Maio de 2024

A decisão de reintegração de posse vale contra qualquer invasor? - A questão dos cessionários presumidos da posse litigiosa

há 4 anos

Neste modesto ensaio, trataremos da ação de reintegração de posse relativa a imóveis, buscando identificar quem pode ser atingido por decisões havidas nesse tipo de processo.

Pela definição presente no Código Civil brasileiro, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1.196). A posse é, portanto, um estado de fato constituído através do exercício prático de poderes jurídicos próprios de quem é dono, o que não significa que a posse esteja atrelada ao direito de propriedade. O possuidor pode ou não ser o dono da coisa, contanto que exerça sobre ela (justa ou injustamente) alguma das prerrogativas que a lei confere ao proprietário. Os possuidores que não são proprietários e nem têm um título que legitime esse estado de fato são os chamados posseiros.

Cumpre ressaltar que a posse não pressupõe, necessariamente, a presença física constante do possuidor. O dono de casa de veraneio que pouco a frequenta pode ser considerado o seu possuidor, por mantê-la sob a vigilância de terceiros e/ou nela realizar manutenções, ainda que esporádicas. Bem por isso, a apuração prática da posse pode revelar-se muito difícil, não escapando, por vezes, de uma boa dose de subjetividade dos julgadores.

Como todo fato socialmente relevante, a posse gera diversas consequências jurídicas, dentre as quais o direito do possuidor de reavê-la de quem a tenha subtraído irregularmente, ou de protegê-la contra quem tente ou ameace fazê-lo. O possuidor poderá reaver ou proteger a sua posse mediante o uso da força (o chamado desforço possessório, modalidade de autotutela permitida no art. 1.210, § 1º do Código Civil), desde que responda imediata e proporcionalmente ao ataque sofrido; ou lançar mão de algum dos interditos (ações possessórias), medidas judiciais que servem justamente para evitar a tomada violenta da posse, ou para revertê-la, quando consumada. Nesse último caso, tem lugar a ação de reintegração de posse (art. 560, CPC), modalidade de ação possessória voltada a recuperar a posse esbulhada.

Um erro ainda muito frequente na prática forense é o manejo de ação possessória por proprietário que não possuía o imóvel (por si ou por seus antecessores) quando lá ingressaram os réus. Ora, se a ação possessória serve para proteger o possuidor, seja ele proprietário ou não, como se pleitear judicialmente a tutela de posse que não foi violentada? Não se está aqui afirmando que o dono do bem não tenha o direito possuí-lo, mas apenas que o meio correto para buscá-lo, com base no direito de propriedade, é a ação reivindicatória (art. 1.228, CC), e não uma possessória.

Aliás, a impertinência da alegação de propriedade, no âmbito de ação possessória, é explicitada no § 2º do art. 1.210 do Código Civil, que estatui: “não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa”. Assim, pela lei, não importa quem seja o dono da coisa: terá proteção possessória aquele que esteja ameaçado em sua posse (fundada em justo título ou não), ou que dela tenha sido removido pelo uso da força. Naturalmente, pacificada a disputa de posse, através do julgamento da possessória, o proprietário poderá manejar ação reivindicatória, baseada em seu direito de possuir, ínsito à condição de dono. Vale ressaltar que a ação reivindicatória não pode ser ajuizada na pendência de ação possessória (art. 557, CPC), proibição que, a nosso ver, não se justifica.

Feitas os esclarecimentos introdutórios, passemos a analisar a questão proposta.

São muitos os casos em que incontáveis pessoas invadem imóvel que, a despeito de não estar ocupado no momento, não se encontra abandonado, estando sob a posse de alguém. Nesses casos, a exigência de citação pessoal de cada um dos invasores inviabilizaria o manejo de interdito possessório, o que felizmente foi percebido pelo legislador, que regulou a hipótese no CPC/2015, da seguinte maneira:

Art. 554 [Omissis]
§ 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.

Tem-se, nesses casos, uma exceção ao disposto no artigo 319, inciso II, do CPC – que exige a indicação, na petição inicial, dos “nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu” – sendo possível o ajuizamento da ação possessória contra uma conjunto de pessoas não nomeadas e qualificadas individualmente. Assim tem sido interpretada a regra no STJ:

O novo regramento autoriza a propositura de ação em face de diversas pessoas indistintamente, sem que se identifique especificamente cada um dos invasores (os demandados devem ser determináveis e não obrigatoriamente determinados), bastando a indicação do local da ocupação para permitir que o oficial de justiça efetue a citação daqueles que forem lá encontrados (citação pessoal), devendo os demais serem citados presumidamente (citação por edital)[1].

Assim, na hipótese de haver um grande número de invasores, tendo sido cumpridas as exigências do § 1º do artigo 554 do CPC, a decisão proferida na ação possessória poderá ser cumprida em face de qualquer um que se encontre no imóvel, pois todos foram citados (ainda que fictamente, por edital), sendo, portanto, partes integrantes do processo, mesmo não identificados individualmente.

Situação menos comum, mas bem complicada, ocorre quando o invasor é plenamente identificado na petição inicial e pessoalmente citado para integrar o processo, mas ao tomar conhecimento de decisão desfavorável a si, “vende” a posse a um terceiro, que passa a ocupar o seu lugar. Chegando ao local para dar cumprimento à ordem de reintegração, o oficial de justiça constata que o réu não mais se encontra no local, que está ocupado por outra pessoa. Diante disso, como proceder?

A nosso sentir, nesse tipo de situação, o mandado de reintegração de posse não pode ser cumprido “contra qualquer um que lá esteja”, salvo se essa possibilidade constar expressamente da decisão. O oficial de justiça não é juiz, por isso deve se ater ao texto da decisão e, em caso de dúvida, solicitar formalmente os esclarecimentos necessários ao magistrado.

Quanto à decisão em si, fora da hipótese do artigo 554, § 1º, do CPC - tendo sido corretamente identificado (s) todo (s) o (s) ocupante (s) do imóvel, no momento da citação – é lícito que dela conste a determinação de valer contra qualquer pessoa que esteja ocupando o bem, quando do cumprimento da ordem de reintegração de posse, por se considerar eventuais terceiros lá fixados como cessionários presumidos da posse litigiosa?

Antes de respondermos, convém apresentar mais algumas explicações.

Como forma de garantir o contraditório – direito fundamental de qualquer um a ser informado dos atos processuais e de ser ouvido no processo, de modo a influir em julgamento que de algum modo o possa afetar[2] – a decisão judicial, como regra, apenas pode suprimir bens ou direitos e criar obrigações ou ônus àqueles tenham tomado parte no processo (ou pelo menos tenham sido regularmente chamados a fazê-lo). Essa regra está expressa no artigo 506 do Código de Processo civil, assim redigido: “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Como exceções, existem algumas hipóteses nas quais a lei admite que a decisão produza efeitos contra terceiros determináveis (coisa julgada ultra partes), como ocorre quando há alienação da coisa ou do direito litigioso[3].

O artigo 109 do CPC estatui que “a alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes” (art. 109, caput), de modo que “estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário” (art. 109, § 3º). Assim, se após a citação, algum dos réus ceder sua posse a terceiro, ainda que o cessionário não participe do processo, estará sujeito aos efeitos da decisão[4].

Gize-se que a regra do § 3º do artigo 109 do CPC, que estende a eficácia da decisão aos adquirentes ou cessionários do bem ou direito litigioso, independentemente de terem participado do processo, não se aplica àqueles que já ocupavam o imóvel quando da citação, pois é só nesse momento que se instaura a litispendência em relação aos demandados (art. 240, CPC). Assim, é sempre importante que a citação nas ações possessórias se faça mediante oficial de justiça (art. 246, II, CPC), para que esse possa certificar quais eram os ocupantes do imóvel naquele momento, eis que todos eles deverão integrar a lide como litisconsortes necessários (art. 114, CPC), sob pena de ineficácia da decisão contra os que não foram citados (art. 115, II, CPC).

Quanto à decisão que determine a remoção de todos os ocupantes do imóvel (tenham ou não participado do processo), perceba-se que tal disposição tem o objetivo de garantir efetividade à tutela possessória, evitando que seu cumprimento seja obstado através da posterior introdução de terceiros no imóvel. Com tal previsão, tem-se a fixação de um critério objetivo e factível para identificação dos cessionários da posse litigiosa, que legalmente estão sujeitos aos efeitos da decisão. Não há, portanto, um alargamento do conceito de cessionários, para fins de submissão aos efeitos da decisão e da coisa julgada, mas apenas a indicação de um critério prático (bastante razoável) a partir do qual eles deverão ser identificados, no momento do cumprimento da tutela possessória, razão pela qual nos parece lícita (e recomendável) esse tipo de disposição.

Por óbvio, aqueles terceiros que, retirados do imóvel (ou na iminência de sê-lo), não se considerarem cessionários da posse litigiosa, poderão mover embargos de terceiro (art. 674, CPC)- ação autônoma voltada a repelir a eficácia da ordem judicial que ameasse a posse de bem possuído por quem não tenha integrado o processo na qual foi exarada - sob a alegação de terem ingressado no imóvel quando esse já se encontrava abandonado pelo (s) réu (s), por exemplo, ou sob o argumento de que já ocupavam o local quando da citação, não podendo, por isso, serem considerados cessionários de coisa litigiosa, como explicado acima.

Nos embargos de terceiro - a despeito de ter presumido, na decisão da ação possessória, que aqueles que ocupassem o imóvel, no momento da execução, seriam cessionários – entendemos que o magistrado poderá distribuir dinamicamente o ônus probatório sobre essa condição (art. 373, § 1º, CPC), avaliando quem, no caso concreto, teria maior capacidade de provar a sua versão sobre esse ponto fático controvertido. Não sendo realizada a inversão do ônus da prova, ele recairá sobre o autor dos embargos de terceiro (art. 373, inc. I, CPC).

Outrossim, o ocupante do imóvel que não tenha sido citado na ação possessória terá legitimidade para nela apresentar recurso, como terceiro prejudicado (art. 996, CPC), se a decisão proferida contra os seus interesses ainda admitir recurso.


[1] REsp 1314615/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 12/06/2017

[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de processo civil: teoria geral do processo. 8ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 272

[3] DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 10ed. Salvador: JusPODIVM, 2015. v2. p. 543

[4] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado. 3ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 270. Cf. REsp 1837413/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/03/2020, DJe 13/03/2020

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12 Comentários

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Caro colega, só para aclarar, o autor de uma ação possessória, poderá impetrar ação de reinvindicação contra um terceiro que adquiriu do invasor a posse, mesmo existindo ação de reintegração contra o primeiro invasor. Ou o remédio também, que se deve valer, é impetrar outra ação de reintegração contra o terceiro? continuar lendo

Olá, nas possessórias não coletiva,quando o réu antes da citação, vende o terreno subjudice a terceiros, e o terceiro vende para um quarto, o quarto vende para um quinto. Como proceder para os impedir na sucessão de compradores? continuar lendo

essa é a minha dúvida tb continuar lendo

Olá, Dra! É preciso que o réu citado esteja ocupando a área no momento da citação. É por isso que é importante que a citação se faça por oficial de justiça, o qual deve emitir certidão atestando quais os ocupantes da área no momento da citação, pois todos eles deverão figurar no polo passivo. Para maior segurança, penso que também seja interessante publicar-se edital de citação de outros possíveis posseiros do imóvel. Feito isso, penso que qualquer pessoa que venha a ocupar o imóvel deve ser considerada sucessora presumida dos posseiros já citados, ficando sujeita aos efeitos da decisão, mesmo que não se habilite nos autos (art. 109, § 3º, CPC). continuar lendo

Diz o texto: "...Como todo fato socialmente relevante, a posse gera diversas consequências jurídicas, dentre as quais o direito do possuidor de reavê-la de quem a tenha subtraído irregularmente, ou de protegê-la contra quem tente ou ameace fazê-lo. O possuidor poderá reaver ou proteger a sua posse mediante o uso da força (o chamado desforço possessório, modalidade de autotutela permitida no art. 1.210, § 1º do Código Civil), desde que responda imediata e proporcionalmente ao ataque sofrido; ou lançar mão de algum dos interditos (ações possessórias), medidas judiciais que servem justamente para evitar a tomada violenta da posse, ou para revertê-la, quando consumada. Nesse último caso, tem lugar a ação de reintegração de posse (art. 560, CPC), modalidade de ação possessória voltada a recuperar a posse esbulhada",

A solução legal referente ao desforço é tradição do direito das coisas, porém contraria o fim de que o direito tem por objetivo regular a vida social, "de forma racional". Afinal, em um país no qual a violência é o denominador dos conflitos sociais, não pode a ordem jurídica permitir ao cidadão o uso da violência para a proteção de direito, sendo exceção ao estatuído no artigo 345 do Código Penal.

Não comungo do pensamento do jurista da vedação da ação reivindicatória na pendência do processo possessório, pois este pode conter todos os requisitos para a ação da usucapião. continuar lendo

Olá, Dr. Marcel! Muito obrigado por contribuir com suas observações!

Quanto ao desforço possessório, penso que ele deve ser interpretado com restrições, circunscrevendo-se a imóveis habitados, como medida necessária não apenas à tutela da posse, mas também à segurança dos que lá estão.

No que tange à vedação da propositura de ação reivindicatória, na pendência da possessória, não sei se entendi bem a colocação do colega. A proibição está expressa no artigo 557 do CPC, regra essa que entendo inadequada, pois o prejuízo que gera supera e muito o hipotético benefício que antevisto pelo legislador. Sobre a possibilidade do réu em ação possessória ter preenchido todos os requisitos da usucapião, embora não possa ser a usucapião declarada e/ou considerada neste processo, o réu tende a obter êxito na possessória e ter sua posse preservada, já que é essencial à usucapião a posse pacífica e sem oposição, durante longo período, o que descaracteriza o esbulho que lhe é imputado pelo autor. continuar lendo

Comprei uma casa e ela foi invadida. Já teve a terceira audiência e o juiz deu a causa para o invasor. O invasor ja vai fazer 3 anos no ímovel o que fazer? continuar lendo

Não posso afirmar o que aconteceu com certeza, mas existe uma boa chance do seu advogado ter entrado com uma ação possessória, quando o ideal seria uma ação reivindicatória. Recomendo procurar a opinião de outro advogado sobre o seu processo. continuar lendo