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3 de Maio de 2024

A adoção sob a ótica da multiparentalidade

Uma análise acerca das decisões instauradas pelo Poder Judiciário

Publicado por Uorlei Lima Silva
ano passado

O artigo postado tem como objetivo dar maior suporte em matérias universitárias.


RESUMO

Este artigo possui o objetivo de apresentar um estudo referente a adoção de acordo com as considerações jurídicas que acolheram a multiparentalidade. Verifica-se que o reconhecimento da multiparentalidade não é mencionado expressamente por nenhum diploma legal, suas fundamentações embasam-se em princípios constitucionais, deixando ao interprete o cargo de compreende-lo. É através da utilização destes parâmetros que o presente artigo pretende realizar a análise da multiparentalidade, embasando-se em doutrina e jurisprudência, compreendendo os efeitos jurídicos gerados e os fundamentos adotados pelos operadores de direito. Por fim serão reificados os aspectos relativos a alguns efeitos do registro, uma vez que este será o primeiro meio para garantir a autenticidade da filiação, bem como o reconhecimento da multiplicidade de vínculos.

1. INTRODUÇÃO

A adoção é um instituto criado com o objetivo de garantir a dignidade de crianças e adolescentes que sofreram com a violação de seus direitos a ter uma família, atribuindo a estes a condição de filho, com os mesmos direitos e deveres expressos no artigo 41 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, tratando-se de um ato jurídico que atribui um estado de filiação e desassocia os vínculos relacionados as paternidades e parentescos biológicos.

Nesse contexto, o presente artigo pretende analisar as probabilidades do reconhecimento da adoção perante a multiparentalidade, em razão da pluralidade de entidades familiares que se estabeleceu após inúmeras mudanças na organização familiar, demandando uma nova visão sobre o modo interpretativo do Direito de Família e suas relações de parentalidade perante o ordenamento.

Será feita a exposição básica do instituto da adoção, abordando suas noções gerais que foram desenvolvidas adaptando-se as necessidades de progresso perante a sociedade. Será realizado a análise de seus efeitos, uma vez que o mesmo deverá ser entendido como ato excepcional, aplicável apenas quando não foi possível a permanência do menor em companhia de seus pais ou quando inserida em famílias extensas ou ampliadas.

Em um segundo momento serão esclarecidos alguns aspectos referentes a admissibilidade da multiparentalidade de acordo com a possibilidade de coexistência de múltiplos vínculos, analisando algumas decisões proferidas pelos Tribunais.

Por fim, serão analisados os principais efeitos relacionados aos aspectos registrais, que busca um desfecho que atenda a preservação dos direitos a identidade e a personalidade dos indivíduos envolvidos.

2. O INSTITUTO DA ADOÇÃO

A adoção veio ao Brasil através da interposição do Código Filipino, sendo revogado em definitivo apenas com o Código Civil de Clóvis Beviláqua em 1916, que chamava de simples a adoção tanto de maiores como de menores de idade, prescrevendo que somente quem não tivesse filhos poderia adotar, com seus efeitos sendo concebidos mediante escritura pública somente entre adotante e adotado.

A Lei nº 4.655 de 2 de junho de 1965 surgiu como um marco na legislação, admitindo a chamada legitimação adotiva e se tornando dependente de decisões judiciais, compreendendo-se em um ato irrevogável e cessando o vínculo de parentesco com a família natural. Em 1979, o Código de Menores substituiu através da Lei nº 6.697 a legitimação adotiva e apresentou a adoção plena, porém com a mesma finalidade, estendendo os vínculos parentescos as famílias dos adotantes, possibilitando que o nome dos avós passasse a constar no registro de nascimento do adotado, independentemente do consentimento dos ascendentes.

A inauguração do Estado Democrático de Direito em 1988 eliminou qualquer distinção entre a adoção e a filiação através do artigo 227, § 6º, consagrando o princípio da proteção integral. Após 11 anos da primeira lei especial, surge para dar efetividade a este comando, o Estatuto da Criança e do AdolescenteECA, regulando a adoção dos menores de 18 anos e assegurando todos os direitos do adotado, impondo obrigatoriedades nas sentenças judiciais que efetivam o processo de adoção, resguardando a irrevogabilidade.

Quanto ao advento do Código Civil de 2002, grandes divergências doutrinarias foram estabelecidas. Citando Maria Berenice Dias (2016):

O ECA regulava de forma exclusiva a adoção de crianças e adolescentes, mas a lei civil trazia dispositivos que faziam referência à adoção de menores de idade. Esta superposição foi corrigida pela chamada Lei Nacional da Adoção (L 12.010/09, 2.º) que, modo expresso, atribui ao ECA a adoção de crianças e adolescentes, mas manda aplicar seus princípios à adoção dos maiores de idade (DIAS, 2016, p. 815).

Além de atestar ao ECA o encargo para a regulamentação do instituto, a Lei nº 12.010/09 aprimorou inúmeros dispositivos atribuindo ao adotado o direito de reconhecer a sua origem biológica, tornando mais rigoroso o procedimento de adoção, priorizando a retomada da convivência familiar e comunitária, e transformando a adoção em uma ultima alternativa dentre as medidas que podem ser tomadas. Seguindo este contexto, destaca-se um posicionamento de Maria Berenice Dias (2016):

[...]. O filho não é uma ‘coisa’, um objeto de propriedade da família biológica. Quando a convivência com a família natural se revela impossível ou é desaconselhável, melhor atende ao seu interesse - quando a família não o deseja, ou não pode tê-lo consigo - ser entregue aos cuidados de quem sonha ter um filho. A celeridade deste processo é o que garante a convivência familiar, direito constitucionalmente preservado com absoluta prioridade (DIAS, 2016, p.815).

2.1 Efeitos jurídicos da adoção

A adoção implicará na total extinção da relação familiar mantida pelo adotado com o seu núcleo anterior, para que seja conferida segurança a nova relação jurídica estabelecida e garantindo a proteção integral do interessado. Qualquer vínculo, direito ou dever em relação as partes integradas no núcleo familiar anterior será cessado, inclusive os efeitos referentes aos alimentos e a sucessão, apagando-se todas as origens do envolvido e o integrando em um novo núcleo familiar. Discorre Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017):

É estabelecida uma relação paterno-filial que, por óbvio, não pode ser contestada ou impugnada, por nenhuma das partes. Significa dizer: o filho adotivo não poderá investigar a paternidade ou maternidade de outra pessoa, mesmo que se trate de seu genitor. Isso não se confunde, porém, com o direito à investigação da origem genética ou origem ancestral, para fins meramente personalíssimos, de conhecimento dos dados biológicos originários, sem qualquer efeito patrimonial (FARIAS C. C., ROSENVALD N., 2017, p. 986-987).

Embora não lhe seja retirado o direito de conhecer sua origem biológica, o filho adotivo não poderá naturalmente investigar a sua paternidade, uma vez que o artigo 48 do ECA afirma que “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”. Salienta-se que sendo menor de 18 anos, o acesso a estes dados dependerá exclusivamente de autorização judicial, assegurando-se a orientação e a assistência jurídica.

Nesse mesmo sentido o artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente diz que “a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.” regra que está incorporada através de um dos dois tratados internacionais presentes na legislação brasileira (Convenção Relativa a Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria da Adoção Internacional, conhecida como Convenção da Haia, e a Convenção sobre os Direitos da Criança).

Como já previsto no artigo, o desligamento da família possui suas exceções para fins de impedimento matrimonial, objetivando evitar possíveis casos de incesto, ou seja, será mantido o vínculo anterior somente nos casos em que seja necessário impedir o casamento entre o adotado e os seus ascendentes, descendentes e colaterais até o terceiro grau, que faziam parte da família passada.

Ainda é necessário fazer uma observação em relação os efeitos jurídicos da sentença de adoção, que terão início com o seu trânsito em julgado, exceto nas hipóteses de morte do adotante durante o procedimento.

Além do fim da relação paterno-filial anterior, a adoção implicará alguns outros efeitos jurídicos previstos no artigo 1.845 do Código Civil de 2002, como o acréscimo de sobrenome pelo adotado; estabelecimento do poder familiar com o adotante; direitos sucessórios na qualidade de herdeiro legitimo necessário; cobranças alimentícias do adotante e demais obrigados a prestação de alimentos.

Sobre a legitimação para adotar, a mesma será de 18 anos como prevê o artigo 42 do ECA/90, observada a diferença de 16 anos entre o adotante e o adotado ( 42, § 3º, ECA, 1990). Maria Berenice Dias (2016) justifica a necessidade desta diferença:

Este distanciamento temporal busca imitar a vida, pois é a diferença em anos para a procriação. Sendo dois os adotantes, basta o respeito à diferença de idade com referência a apenas um deles. A regra admite flexibilização, principalmente quando o pedido de adoção é antecedido de período de convívio por lapso de tempo que permitiu a constituição da filiação afetiva (DIAS, 2016, p. 822)

Por fim, é importante salientar sobre as possibilidades de mudança de nome na adoção, onde a procedência do pedido implicará diretamente na mudança do prenome do adotado, passando a adquirir o do adotante.

É possível que esta modificação seja facultativa a pedido do adotado ou do adotante, bastando o consentimento do adotado (quando maior de 12 anos) para que seja analisado a sua vontade, como prevê os §§ 5º e do artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Uma vez estabelecida as divergências em relação ao nome, deverá ser preservado o melhor interesse.

3. MULTIPARENTALIDADE

A multiparentalidade busca fundamento na possibilidade de alguém ter mais de dois pais e/ou mães averbados em seu registro de nascimento, assumindo os encargos decorrentes do poder familiar, possibilitando ao filho a usufruir de direitos e deveres relacionados a todos. Um exemplo é quando a criança mantém vínculo socioafetivo tanto com o pai biológico quanto ao novo companheiro da mãe, denominado como padrasto.

Neste caso, ao invés de utilizar-se do instituto da adoção unilateral, se acrescenta mais um pai e os respectivos avós na certidão de nascimento, podendo inclusive alterar a composição do nome, incluindo o sobrenome do padrasto. Feito o registro, constará o nome de três pais e seis avós, mantendo-se todos os direitos do filho, como a alimentos e os direitos sucessórios. Nesse contexto, Maria Berenice Dias (2016) discorre:

O afeto, elemento identificador das entidades familiares, passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais. Se de um lado existe a verdade biológica, de outro lado há uma verdade que não mais pode ser desprezada: a filiação socioafetiva, que decorre da estabilidade dos laços familiares (DIAS, 2016, p. 692)

Apesar de ser uma realidade crescente no âmbito familiar, as famílias multiparentais não possuem regularização normativa que fixe direitos e deveres aos seus membros, se tornando reconhecida a partir de uma interpretação prevista em jurisprudência e doutrina, baseando em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana, do pluralismo das entidades familiares, convívio familiar, melhor interesse da criança e do adolescente, e a afetividade.

É inevitável salientar que vivemos em uma sociedade caracterizada por arranjos familiares que quebraram paradigmas nas últimas décadas, por isso, é esperado que o ordenamento esteja apto a regular essas situações de multiparentalidade de forma que seja proporcionada aos envolvidos uma segurança jurídica, especialmente no que tange aos menores diante de suas condições necessárias de desenvolvimento.

3.1. Ponderações acerca dos julgados sobre a adoção multiparental

Com o surgimento de diversos tipos de família, os tribunais, através de distintos embasamentos, deixaram de ignorar a realidade atual das famílias e admitiram a multiparentalidade como hipótese viável em algumas oportunidades possíveis de soma de parentalidade biológica e socioafetiva, sem que uma exclua a outra. Verifica-se o entendimento de Ana Carolina Brochado e Renata de Lima (2010) sobre a possível existência da multiparentalidade:

Em face de uma realidade social que se compõe de todos os tipos de famílias possíveis e de um ordenamento jurídico que autoriza a livre (des) constituição familiar, não há como negar que a existência de famílias reconstituídas representa a possibilidade de uma múltipla vinculação parental de crianças que convivem nesses novos arranjos familiares, porque assimilam a figura do pai e da mãe afim como novas figuras parentais, ao lado de seus pais biológicos. Não reconhecer esses vínculos, construídos sobre as bases de uma relação socioafetiva, pode igualmente representar ausência de tutela a esses menores em formação. (CASSETTARI, 2017 apud TEIXEIRA, A. C., RODRIGUES, R. L., 2010, p. 170)

Assim, para justificar a importância de se debater o tema, serão retratados alguns casos jurisprudenciais sobre o tema da multiparentalidade, verificando a sua origem e os fundamentos utilizados para sustentar as decisões.

Um dos mais tradicionais casos de reconhecimento de multiparentalidade, funda-se no pedido de inclusão de mãe ou pai socioafetivo, devido ao falecimento da mãe ou pai biológico. Um interessante julgado ocorreu no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação Cível nº 0006422-26.2011.8.26.0286, reconhecendo a multiparentalidade materna em relembrança a mãe biológica da parte:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna nãoconsanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. (TJ-SP - APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2012)

No caso em questão, o menor perdeu sua mãe biológica três dias após o parto em decorrência de um acidente vascular cerebral. Meses após o fato, seu pai conheceu a requerente e se casaram quando a criança tinha apenas dois anos de idade, sendo criado como filho por sua madrasta. Por respeito a memória da mãe biológica, que comoveu toda a comunidade devido ao infortúnio, resultando inclusive em singelas homenagens, optou-se pela ação declaratória para que não fosse retirado da criança esse vinculo de parentesco.

Neste caso o desembargador esclarece em seu voto que a filiação não poderá decorrer exclusivamente do parentesco consanguíneo, preceituando no sentido de que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, afirmando que a expressão “outra origem” poderá fazer referência a filiação socioafetiva desde que o estado de filho seja fruto de longa e estável convivência.

O julgador ainda justificou que a formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade, haja vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF), a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º, CF) e o fato de as relações familiares deitarem raízes na Constituição da Republica, que tem como um dos princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), além da formação de uma sociedade solidária (art. 3º). (BRASIL, 1988)

De uma maneira geral, com a facilitação do divórcio após o advento da Lei do Divórcio em 1977, ocorreu o crescimento do número de famílias recompostas (formadas com integrantes que eram membros de outras famílias), visto que os padrastos e madrastas em diversas ocasiões acabam exercendo um papel similar ao de pai e mãe mesmo com a presença dos genitores biológicos na vida do filho, exercendo suas devidas funções.

Um caso famoso e similar ao primeiro, porém com o pai biológico ainda vivo, ocorreu em Cascavel/PR, pela Vara da Infância e Juventude, em uma ação de adoção apresentada pelo padrasto que convivia com o menor desde os três anos de idade. O requente apresentou emenda a inicial, incluindo no pedido de adoção a manutenção da paternidade biológica, bem como o deferimento da adoção e o acréscimo de seu sobrenome, ao nome do adolescente.

Em sabia decisão, o Juiz Sério Luiz Kreuz (2013) proferiu sentença nos autos do Processo nº 0038958-54.2012.8.16.002 fundamentando-se:

Ser o caso decorrente dos formatos familiares contemporâneos, para os quais o Direito nem sempre tem solução pronta, pacifica, consolidada. É indescritível o momento de alivio, de felicidade, tanto do adotando, como do genitor, da genitora e do próprio requerente quando o Ministério Público, por meio do Dr. Luciano Machado de Souza, cogitou uma solução alternativa, ou seja, o reconhecimento da filiação socioafetiva, sem a exclusão da paternidade biológica. Afinal de contas, o próprio adolescente informa que chama de pai tanto o requerente quanto o genitor. Há muito tem dois pais, que gostaria muito que essa situação de fato estivesse retratada no seu registro civil. Demonstrou que tem laços de afeto com ambos, a tal ponto que mesmo convivendo com a genitora e o requerente, continua visitando o genitor regularmente (KREUZ, 2013, p. 2-3)

Concluiu ao fim que o adolescente poderia se sentir privilegiado por possuir dois pais presentes, dedicados e amorosos, se tratando de uma paternidade sedimentada ao longo de muitos anos, por laços de confiança, de respeito, afeto, lealdade que não podem ser ignorados pelo Direito e nem pelo Poder Judiciário.

De antemão, ainda é de grande importância ressaltar que existem processos que reconhecem apenas o acréscimo do pai biológico no registro, um exemplo é o julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em uma ação de investigação de paternidade:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE ERRO OU VÍCIO DE CONSENTIMENTO INVOCADO PELO PAI REGISTRAL A JUSTIFICAR ALTERAÇÃO NO REGISTRO CIVIL DA AUTORA. DESNECESSIDADE. MULTIPARENTALIDADE RECONHECIDA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA QUE NÃO EXCLUI A PATERNIDADE BIOLÓGICA. PRECEDENTES DO STF E STJ. SENTENÇA CONFIRMADA. Caso dos autos em que não há óbice para o acréscimo do vínculo biológico no registro de nascimento requerido pela filha, devendo prevalecer o seu interesse, no caso. Existência de relação socioafetiva que não afasta o direito da pessoa em buscar suas origens ancestrais, devendo ser reconhecida a multiparentalidade como reflexo das relações parentais da atualidade. Precedentes das Cortes Superiores. Apelação desprovida. ( Apelação Cível Nº 70077173102, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Daltoé Cezar, Julgado em 10/05/2018).

Na presente demanda de investigação de paternidade ficou comprovada a paternidade em relação a autora, remanescendo a discussão do pedido de alteração do registro civil, uma vez que a mesma buscava apenas o acréscimo do pai biológico, ora apelante, em seu registro de nascimento, mantendo-se o pai registral, no qual nutre forte laço afetivo.

Nos votos, o relator José Antônio Daltoé Cezar reiterou que “a autora teve sonegada a filiação biológica por vinte e sete anos, período em que se originou e se fortaleceu a filiação socioafetiva com seu pai registral, a qual está amparada no artigo 1.593 do Código Civil, mas que, por si só, não afasta o direito da autora buscar suas origens familiares, direito justificável e legítimo, para saber quem é seu pai biológico, como corre no caso sub judice.”

Ressaltou ainda que o registro de fato é ato irrevogável, citando situações excepcionais, como quando comprovado erro cabal de consentimento ou justificando-se as possíveis alterações se as partes envolvidas no ato o desejarem. O que não era o caso presente nos autos, pois a autora expressava de forma contundente o desejo de manter em sua certidão de nascimento o nome do pai registral.

Por fim, ainda pontuou o julgado do STF, no Recurso Extraordinário nº 898.060-SC, sendo reconhecida repercussão geral – tema 622, em que firmou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

3.2. Efeitos jurídicos do Registro Civil

Através do Provimento nº 2 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editado em 27 de abril de 2009, que foi alterado pelo Provimento nº 3 em 17 de novembro de 2009 e subsequentemente pelo Provimento nº 63 em 14 de novembro de 2017, as certidões de nascimento, casamento e óbito foram padronizadas em todo o país, se tornando iguais em qualquer município, alterando os campos “pai e mãe” para “filiação”, bem como “avós paternos e maternos” por “avós”.

A alteração impôs fim a diversas preocupações doutrinárias referentes aos procedimentos que deveriam ser tomados para o registro de uma pessoa com dois pais e/ou duas mães fossem averbados, podendo a partir deste momento, ser aceito o direito da multiparentalidade, evitando-se embaraços registrais.

Em uma de suas críticas Belmiro Pedro Welter (2009) reitera:

Quem comparece no cartório de Registro Civil, de forma livre e espontânea, solicitando o registro de alguém como filho, não necessita de qualquer comprovação genética, porque isso representa um modo de ser em família. Em outras palavras, “aquele que toma o lugar dos pais pratica, por assim dizer, uma ‘adoção de fato’”, uma aceitação voluntária ou judicial da paternidade/ maternidade, em que é estabelecido o modo de ser filho afetivo, com a atribuição de todos os direitos e deveres. (WELTER, 2009, p. 277)

Compreende-se que o registro civil será o primeiro meio de reconhecimento da multiparentalidade, uma vez que serve como garantia de autenticidade da filiação, conforme definido no art. 1º da Lei de Registro Públicos, sendo averbado para o reconhecimento posterior, conforme previsto no art. 10, inciso II, do Código Civil de 2002.

A partir do momento em que o juiz reconhece a existência da socioafetividade, deverá determinar a expedição de um mandado de averbação endereçado ao registro civil, devendo estar descrito se a pessoa terá ou não o seu nome alterado, já que o reconhecimento de filhos poderá ensejar na modificação do nome, com a inclusão do sobrenome de quem foi reconhecido como figura paterna ou materna.

Diversas ocorrências jurídicas ocorrem após o registro ser averbado, a primeira faz referência a declaração de vínculo de parentesco, que será estendida aos demais familiares de linha reta e colateral do pai ou mãe que foi averbado no registro civil, aplicando-se o artigo 1.521 do Código Civil de 2002, que estabelece restrições quanto ao casamento entre parentescos.

Seguindo este contexto, quando a paternidade e/ou maternidade se constituírem, as pessoas envolvidas estarão unidas pelos laços parentais atribuindo ao adotado, os avós, irmãos, tios, primos, sobrinhos, entre outros, ou seja, todos os filhos biológicos ou afetivos, terão as mesmas responsabilidades e direitos da relação parental.

3.3. Outros efeitos

Uma das consequências jurídicas está relacionada aos cuidados previstos no artigo 1.634 do Código Civil de 2002, que passam a se estender a competências de todas figuras maternas e paternas de forma complementar, estando sujeitos a se dirigirem a autoridades competentes caso exista negligencia por parte de algum membro. Quanto a relação de verbas alimentares, é possível que a prestação seja paga por qualquer um deles, desde que existam meios suficientes para arcar com as necessidades básicas da criança ou adolescente, ou seja, somente através de consenso entre as figuras paternas/maternas que poderão responder de forma solidária.

A guarda dos filhos também entra neste ponto, sendo unilateral e compartilhada, como prevê o artigo 1.583 e seguintes do Código Civil de 2002. Entende-se que todos os pais e/ou mães, biológicos ou socioafetivos terão seus direitos a guarda resguardados, desde que apresentem condições de garanti-los atendendo todos os interesses assegurados ao infante e/ou pubescente.

Uma outra consequência que também merece ser tratada, diz respeito ao usufruto e a administração dos bens dos filhos menores, elencados no artigo 1.689 do Código Civil de 2002. Cassettari (2015, p. 222) explica que o termo “pai” deverá ser interpretado como “todos”, ou seja, neste assento, todos deverão ter o dever de administrar os bens dos filhos menores, se tornando inaceitável alienar os imóveis do filho e muito menos contrair obrigações que superam os limites da administração.

Por fim, é importante ressaltar os aspectos sucessório, que abarcam tanto aos filhos, que poderão receber duas ou mais heranças, cabendo ao Poder Judiciário coibir quando existir abuso de direito, como também abarcam os pais, que podem se beneficiar caso o filho não tenha herdeiro e venha a falecer antes deles. Neste último caso, a doutrina prevê que será feita uma divisão igualitária, devendo a lei ser flexibilizada uma vez que não existe previsão sucessória que trata sobre o assunto.

4. CONCLUSÃO

Durante o desenvolvimento do presente artigo verificou-se que é clara a evidencia de que o ordenamento jurídico vem se atualizando e moldando-se as novas realidades decorrentes de modificações no âmbito do direito de família. Em sua maioria, os Tribunais vêm produzindo consequências positivas para os demais casos de multiplicidade parental, garantindo os mesmos efeitos jurídicos baseados na origem biológica.

No entanto, conforme visto, as soluções são baseadas em doutrina e na jurisprudência, embasando-se em princípios constitucionais, se tornando possível suprir a ausência de regulamentos legais específicos sobre o instituto. Desta forma, reconhece-se que a ausência da multiparentalidade em previsão legal não deve se constituir como um empecilho para não ser reconhecido, uma vez que é necessário apenas uma adequação das regras aplicáveis a este novo contexto apresentado.

Ainda é de extrema importância que a legislação evolua para garantir o melhor tratamento deste instituto, em especial aos seus efeitos e o que será gerado para as partes envolvidas. Surge a necessidade de implantar-se atos normativos mais criteriosos que poderão dar uma segurança jurídica a estes pontos omissos da lei.

O tema é de completa amplitude, apesar de as decisões jurisprudênciais cada vez mais estarem reconhecendo a possibilidade da multiparentalidade, ainda existe um extenso caminho a ser percorrido, pois somente assim será possível uma maior proximidade desta realidade social com o direito, assumindo na pratica o caráter de igualdade com os demais núcleos familiares já existentes.

REFERÊNCIAS

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CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva: Efeitos Jurídicos. 3. Ed. São Paulo/SP: Atlas. 2017.

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GLAGLIANO, S. P.; FILHO, P. R. Novo Curso de Direito Civil - Volume 6: Direito de Família. 9. ed. São Paulo/SP: Saraiva Educação, 2019

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WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2009.

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1 Comentário

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Artigo excelente! Tenho primos adotados, são gratos por estarem em nossa família sanguínea! continuar lendo