Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
6 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    Jurisprudência STJ - Direito civil - Família - Ação de reconhecimento de união homoafetiva post mortem - Divisão do patrimônio adquirido ao longo do relacionamento

    EMENTA

    DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA POST MORTEM. DIVISÃO DO PATRIMÔNIO ADQUIRIDO AO LONGO DO RELACIONAMENTO. EXISTÊNCIA DE FILHO ADOTADO PELO PARCEIRO FALECIDO. PRESUNÇÃO DE ESFORÇO COMUM. 1. Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela. Essa circunstância não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, que devem estar preparados para regular as relações contextualizadas em uma sociedade pós-moderna, com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais. 2. Os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar. 3. O art. da LICC permite a equidade na busca da Justiça. O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidades familiares, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização de entidade familiar diversa e que serve, na hipótese, como parâmetro diante do vazio legal �- a de união estável �- com a evidente exceção da diversidade de sexos. 4. Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, sem a ocorrência dos impedimentos do art. 1.521 do CC/02, com a exceção do inc. VI quanto à pessoa casada separada de fato ou judicialmente, haverá, por consequência, o reconhecimento dessa parceria como entidade familiar, com a respectiva atribuição de efeitos jurídicos dela advindos. 5. Comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento, em nome de um apenas ou de ambos, sem que se exija, para tanto, a prova do esforço comum, que nesses casos, é presumida. 6. Recurso especial não provido. (STJ �- REsp nº�- MT �- 3ª Turma �- Rel. Min. Nancy Andrighi �- DJ 04.08.2011)

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino e da retificação do voto do Sr. Ministro Sidnei Beneti, por maioria, negar provimento ao recurso especial. Vencido, em parte, o Sr.Ministro Vasco Della Giustina que proferiu voto antes do julgamento do STF e na continuidade do julgamento não mais fazia parte do Órgão Julgador. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com a Sra. Ministra Relatora. Não participou do julgamento o Sr. Ministro Massami Uyeda.

    Brasília (DF), 19 de maio de 2011 (data do julgamento).

    MINISTRA NANCY ANDRIGHI �- Relatora.

    RELATÓRIO

    MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

    Cuida-se de recurso especial interposto por C. E. F. DA S., menor nascido em 1º.11.1999, representado por sua curadora especial, M. A. S., com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ/MT.

    Ação (inicial às e-STJ fls. 16/62): “declaratória de reconhecimento de união estável homoafetiva e entidade familiar”, ajuizada por C. P. DA S. em face de C. E. F. DA S.

    O autor sustenta, como causa de pedir, que conviveu em alegada “união estável” com G. F. DA S., durante 18 anos �- de 1988 até a data do óbito de G., ocorrido em 3.11.2006. Relata que na constância da aludida união foram adquiridos, a título oneroso, diversos bens, pugnando, por consequência, para que seja reservada a sua meação em virtude de sua condição de companheiro sobrevivente, bem assim de herdeiro, em concorrência com C. E. F. DA S., filho adotivo de G. F. DA S.

    Alega que no início da união o casal possuía poucos bens, mas que ao longo da convivência foram acumulando patrimônio construído com o esforço de ambos, exercendo G. a profissão de bibliotecário e C. P. de cabeleireiro, o qual também cuidava dos trabalhos domésticos.

    Afirma que a adoção de C. E. foi formalizada somente em nome de G., mas que o menino sempre foi criado e educado por ambos, figurando os três como verdadeira família, composta, portanto, pelo casal homoafetivo �- G. F. e C. P. �- e pela criança �- C. E.

    Destaca, ainda, que C. E. foi abandonado pelos genitores, dos quais recebeu como legado tão somente o vírus HIV, tendo nascido soropositivo e necessitando, portanto, de cuidados médicos especiais para toda a vida. Salienta que o menor foi adotado com quase 2 anos de idade, mediante procedimento que observou todas as formalidades legais, ocasião em que foi retirado de um abrigo de menores, para ser acolhido no lar do casal.

    Relata que G. foi acometido de grave enfermidade �- Doença de Chagas e decorrente comprometimento de vários órgãos �-, necessitando de sucessivas internações hospitalares, momento a partir do qual C. P. “cessou suas atividades profissionais, para dedicar-se integralmente a ele [G.], bem como na educação e criação do menor C. E.” Prossegue asseverando que

    isso vem demonstrar o afeto e vida homoafetiva harmônica entre ambos, o Requerente, renunciando ao seu trabalho para dedicar-se exclusivamente ao seu companheiro, sem, contudo, jamais (sic) de dar toda assistência como sempre fez ao menor C. E.” (e-STJ fl. 23 �- com destaques conforme original e com adaptações).

    Aduz que com a morte de G., “de forma inesperada e dolorosa, findou-se a união homoafetiva”, inexistindo alternativa “para garantia de seus direitos nos bens deixados pelo falecido, bem como a criação e educação do menor C. E. F. DA S. (...) a não ser socorrer-se ao Poder Judiciário” (fls. 23/24 �- com destaques no original e com adaptações).

    Destaca que já lhe foi deferida a guarda provisória de C. E., bem como foi nomeado inventariante nos autos do inventário de G.

    Por fim, deduz o seguinte:

    (...) conquanto tratar-se de questão de Justiça, caso Vossa Excelência entenda incabível o reconhecimento da união estável entre o Autor e o requerido, que, ao menos, (sic) reconhecida a sociedade de fato entre o Autor e G. F. da S., e desta forma, seja reservada quota-parte correspondente a 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio inventariado nos autos do processo 1.006-2006, em trâmite perante a 5ª Vara Cível da Comarca de Cuiabá-MT” (e-STJ fl. 60 �- com adaptações).

    Petição de M. A. S. (e-STJ fls. 231/234): na condição de irmã do falecido, alega que C. P. DA S. não contribuiu para a formação do patrimônio de G. F. DA S., não fazendo jus ao acervo por ele deixado e que ao menor C. E. F. DA S. deve ser conferida a condição de único sucessor de G. Assevera que desde a morte de G., C. P. não tem permitido que os familiares daquele tivessem acesso à criança, quando na verdade a própria M. é quem a “vinha criando assumindo a figura de mãe” (e-STJ fl. 233), visto que, segundo alega, G. e a criança residiam com ela desde a adoção. Postula, dessa forma, o ingresso nos autos, com o objetivo de proteger os interesses da criança.

    Decisão interlocutória (e-STJ fl. 289): nomeou M. A. S. curadora especial de C. E. F. DA S.

    Contestação (e-STJ fls. 306/312): sustenta C. E., representado por M. A. S., que “o falecido [G.], o réu [C. E.] e o Autor [C. P.] residiram nos últimos anos na residência de propriedade da Curadora Especial e era esta que cuidava pessoalmente da criança”. Prossegue afirmando que a relação entre G. e C. P. era semelhante ao relacionamento entre irmãos e que

    Nos últimos tempos quando se agravou o quadro de saúde do 'de cujus', a Curadora Especial do Réu ficava ao lado do irmão por todo o tempo no internamento e a criança foi levada para uma sua parenta tomar conta, pois o Autor já estava atrás de providências para se apossar de parte do patrimônio.

    (...) o autor teve sim uma convivência familiar com o 'de cujus', o réu e a Curadora Especial, pois morava com a família, MAS NÃO COMO COMPANHEIRO OU PARCEIRO DO SR. G., era sim, alguém que se aproveitava da generosidade e do amor de alguém de alma pura, que jamais imaginou que seu filho pudesse enfrentar esta situação (sic e-STJ fl. 310 �- com destaques conforme original e com adaptações).

    Impugnação à contestação (e-STJ fls. 315/323): C. P. assinala que a real intenção de M. A. S. ao ingressar no processo é a de ter acesso à parcela do patrimônio deixado pelo falecido, notadamente no que se refere a considerável numerário depositado em conta bancária, pois G. “emprestava dinheiro a juros”, com o que teria formado fortuna.

    Aduz, ainda, que

    Se o trabalho desenvolvido pelo falecido foi mais parceiro da sorte com conseqüente formação de patrimônio, não se pode duvidar que ele só possa (sic) ser desenvolvido tal como o foi, porque o autor cuidava mais de assuntos domésticos e familiares, exatamente como ocorre nas relações entre homens e mulheres, nas quais, esta em tese, cuida de assuntos domésticos, e no dia de eventual separação, ignorado pelo homem quão difícil é esse trabalho, tenta-se em relação à mulher também prejudicá-la na divisão patrimonial (e-STJ fl. 319).

    (...)

    Se não houve preocupação do falecido em redigir testamento e deixar tudo resolvido, isso se deu em face de sua morte prematura, e apesar de ter conhecimento da gravidade de sua doença, cuidava-se de pessoa com impressionante capacidade de vencer obstáculos e de acreditar na vida (e-STJ fl. 320).

    (...)

    Quando o réu afirma que o falecido ajudava o autor quando ele precisava, nada mais faz do que admitir a relação existente. Ajudavam-se sim, conforme quais (sic) conviventes em relação afetiva se ajudam, sejam do mesmo sexo ou não.

    Quando afirma o réu, que residiram com a curadora nos últimos anos, a criança, o autor e o falecido, mais claro fica que a relação era estável, e o porquê (sic) conviviam. Omite a Curadora, todavia, que a própria casa em que viviam foi adquirida pelo falecido enquanto vivo, à curadora, por ser sua irmã (...)

    Não se discute então a alma boa que tinha G., mas muito menos que a união foi estável, duradoura, com altos e baixos conforme qualquer outra, mas, sobretudo, com participação afetiva (sic) de ambos na formação do patrimônio (e-STJ fl. 323 �- com destaques conforme original e com adaptações).

    Relatório de estudo psicossocial: às e-STJ fls. 354/361.

    Audiência (e-STJ fls. 379/393): com termo de depoimentos do autor, da curadora especial, bem como oitiva de testemunhas.

    Sentença (e-STJ fls. 442/453): em contraposição ao parecer emitido pelo MP/MT (e-STJ fls. 427/440) e com base nos princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana, o pedido foi julgado procedente para:

    Reconhecer a união homoafetiva existente entre C. P. DA S. e G. F. DA S., de 1988 até 03/11/2006, data do falecimento do “de cujus” e assegurar ao autor 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio adquirido a título oneroso, durante a convivência, objeto do Inventário nº 1006-2006, em curso nesta Vara (e-STJ fl. 453 �- com adaptações).

    Acórdão (fls. 405/425): mais uma vez em contraposição ao parecer exarado pelo MP/MT (e-STJ fls. 534/539), o TJ/MT negou provimento aos recursos de apelação interpostos pelo menor representado pela curadora especial e pelo Ministério Público, nos termos da seguinte ementa:

    APELAÇÃO CÍVEL �- RELAÇÃO HOMOAFETIVA �- AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA �- PARTILHA DE BENS �- PROCEDÊNCIA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO �- ARTIGOS DA LEI NºS 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL �- ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO �- COMPETÊNCIA �- VARA DE FAMÍLIA �- UNIÃO ESTÁVEL �- COMPROVAÇÃO �- RECONHECIMENTO �- PARTILHA DE BENS �- APLICAÇÃO DA ANALOGIA PARA INTEGRAÇÃO DA LEGISLAÇÃO �- ART. DA LEI Nº 9.278/96 �- RECURSOS DESPROVIDOS.

    Inexistente vedação explícita no ordenamento jurídico para o reconhecimento da relação homoafetiva, não há falar em impossibilidade jurídica do pedido.

    Ainda que especializada em assuntos de família, considerada em si mesmo, a matéria tratada na Vara de Família é de natureza cível. Se não há, na organização judiciária matogrossense, juízo especializado para as questões homoafetivas, nada obsta às varas de família a competência para apreciar e julgar lides de reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, em se tratando de situações que envolvem relações de afeto.

    Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável formada por pessoas do mesmo sexo e adquiridos a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito (e-STJ fls. 553/554).

    Recurso especial (e-STJ fls. 576/586): interposto sob alegação de ofensa aos arts. , parágrafo único, da Lei n.º 8.971, de 1994, 1º da Lei n.º 9.278, de 1996; e 1.723 do CC/02; além de dissídio jurisprudencial.

    Contrarrazões: apresentadas às e-STJ fls. 602/663.

    Decisão (e-STJ fl. 683): o agravo de instrumento (Ag 1.277.545/MT), interposto pelo recorrente contra a decisão que inadmitiu o recurso especial (e-STJ fls. 673/676), foi provido.

    Parecer do MPF (fls. 494/502): da lavra do i. Subprocurador-Geral da República José Bonifácio Borges de Andrada, pelo provimento do recurso especial, “para afastar a hipótese de união estável por ilegal e inconstitucional, permitindo-se a divisão patrimonial com base no direito das obrigações conforme se apurar em liquidação por se tratar de uma sociedade de fato” (e-STJ fl. 712).

    Vieram conclusos os autos, com parecer, em 11.2.2011.

    É o relatório.

    VOTO

    MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

    I. Da delimitação da lide e de seus contornos fáticos.

    A matéria controvertida refere-se à possibilidade ou não de que sejam conferidos efeitos �- marcadamente patrimoniais �- idênticos aos do reconhecimento e dissolução de união estável às parcerias afetivas entre pessoas do mesmo sexo, com a peculiaridade de que o desenlace desta lide envolve direito de criança que foi adotada pelo falecido e que pretende por meio de sua curadora especial e também irmã do falecido, figurar como única herdeira do pai.

    Ao reconhecer a existência de “união estável” entre G. F. e C. P., o TJ/MT ressaltou que “se está na seara da analogia e não na da aplicação da lei para os casos estritos por ela regulados” (e-STJ fl. 569) e que “proceder (ou pensar) de outra maneira seria consagrar uma espécie de sectarismo, ou mesmo de exclusão” (e-STJ fl. 570). Para assim concluir, utilizou-se da seguinte base fática:

    No mérito, a alegação é de que a relação homoafetiva não está comprovada. Contudo, para concluir pelo reconhecimento, o MM. Juiz analisou com cuidado as provas dos autos.

    É o que revelam os excertos:

    “Desta forma, em busca da verdade real dos fatos alegados, em fase instrutória, pode-se extrair da oitiva da testemunha I. L. C., às fls. 327/328, a seguinte declaração:

    '(...) Que o autor frequentava o local de trabalho de G., que sempre fizeram reuniões de Natal e aniversário e o autor sempre (sic) fazia presente, que G. falava que tinha amor por C., que o relacionamento entre eles era bom, que o relacionamento entre os dois era sério, público mas discreto e duradouro, que durou de 1991 a 2006 (...) que na época da doença foi C. que acompanhava o falecido no hospital'.

    Ainda confirmando as alegações contidas na inicial, a testemunha J. C. M. DOS S. (fls. 330/331), afirmou que:

    'Que o relacionamento entre C. e o falecido era de convivência, moravam juntos, que não tinha como não perceber que os dois tinham uma relação homoafetiva, (...) que desde quando os conheceu, o relacionamento deles era público, contínuo e durou de 1995 quando o depoente os conheceu até a morte do G., no final de 2006 (...)'.

    (...)”

    Em outro ponto, assinalou o MM. Juiz:

    “... o acompanhamento psicológico (fls. 305) feito com o autor e com a criança sob sua tutela demonstra a necessidade da proteção judicial, a fim de garantirem a manutenção da vida familiar que lutam para manter, assim concluindo:

    'O menor C. E. F. da S. vem sendo atendido por mim desde novembro de 2006, quem sempre o traz as sessões é o seu tutor C., são pontuais e raramente faltam.

    C. era companheiro do pai adotivo de C. E., o trouxe a terapia porque estava preocupado com o menor, pois recentemente havia falecido seu pai adotivo G.

    C. E. é soro positivo para HIV e filho adotivo, porém não sabia disso até vir à terapia. C. foi orientado a falar a verdade para o menor sobre sua história familiar e saúde.

    Atualmente, o menor já sabe que é filho adotivo e reagiu bem a notícia. Sabe que vai ter que tomar remédio por toda a sua vida provavelmente. Estamos trabalhando no sentido de que primeiro tenha consciência da importância da medicação para sua saúde, para posteriormente informá-lo sobre o seu diagnóstico, porém ainda não possui maturidade e compreensão suficientes neste momento para tal.

    C. E. demonstra ter afeto, respeito e um bom relacionamento com C., diz que o tutor sempre brinca com ele, mesmo quando G. era vivo.

    Pouco fala da tia, não demonstra sentimentos de afeto por ela, apenas comenta as vezes quando passa o final de semana com a mesma, porém deixa claro que vai porque tem que ir, ou seja, não é por vontade própria.

    O paciente apresenta relacionamento interpessoal adequado, possui boa adaptação à mudança, tem noção dos limites que são impostos, é educado, alegre, carinhoso e comunicativo'.

    Frente às declarações consubstanciadas nos autos, forçoso é reconhecer que o relacionamento homoafetivo se perpetuou através dos anos, atingindo o status de união estável entre os conviventes, assumindo feição de família, não podendo o Judiciário se olvidar em prestar a tutela jurisdicional provocada.” (fls. 389/390).

    Assim, quanto ao reconhecimento da união estável, não merece reforma a sentença que entendo deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos. A união estável existiu, restou comprovada e realmente tinha feição de família.

    Quanto à alegação de inexistência de direito à meação por falta de comprovação pelo autor de sua contribuição individual para construção do patrimônio comum, a sentença também não merece reparo, já que demonstrado o esforço comum e a existência da relação de 1995 a 2006 (e-STJ fls. 563-566 �- com adaptações).

    Pela relevância da problemática, na qual se encontram embutidos os interesses de uma criança, sobreleva considerar os principais trechos das anotações contidas no relatório do estudo psicossocial determinado pelo i. Juiz, que seguem reproduzidos:

    Infere-se que realmente o sr. C. é quem cuida de C.E. afetiva e efetivamente. Tal realidade foi atestada tanto por esta profissional da psicologia como pela funcionária da escola em que a criança estuda.

    (...)

    O menor C. E. possui aparência saudável, desenvolvimento físico e mental compatível com a idade. O mesmo é soropositivo, fazendo uso do Coquetel duas vezes ao dia. Não possui plano de saúde, fazendo acompanhamento ambulatorial no Ambulatório DST Aids (SUS).

    Relata que ele e sr. C. sempre foram muito próximos e que se acha muito parecido com o mesmo, deixando evidenciado tanto a sua admiração como também a confiança que deposita nele. Em relação ao cotidiano, afirma que estuda no período vespertino, e no período da manhã faz as tarefas e assiste televisão “eu tenho vários DVD'S que C. me deu” (sic).

    Ao mencionar a respeito da tia M. A., informa que a mesma no momento está residindo em Jauru, e que neste final de ano que passou esteve lá, mas não se sentiu à vontade, pois praticamente não teve contato com a família paterna. Acrescenta que o contato maior é com a irmã do C. “eu sempre vou passear na casa dela” (sic).

    (...)

    Durante a entrevista a criança apresentou-se orientada, tranqüila e segura em suas colocações. Expressando verbalmente a afinidade e carinho que sente pelo C., não deixando dúvidas de que a relação entre ambos é muito positiva.

    Em relação ao C. observamos que este tem procurado proporcionar boa qualidade de vida para o menor, atendendo as necessidades de educação, alimentação, saúde e lazer. No momento a criança está cursando o 2º ano do ensino fundamental, e conforme relatos, tem apresentado bom desempenho escolar, e em relação à saúde, apesar de ser soropositivo, no momento está saudável, fazendo uso de medicações específicas. (...)

    O sr. C. transparece absoluta disposição para cuidar das necessidades de C.E., dizendo que hoje ele está em seu primeiro plano na sua vida. Observou-se que financeiramente hoje eles dependem da pensão que o sr. G. lhes deixou, que, apesar de ele demonstrar saber administrar bem o dinheiro, suas contas estão exatas, ou seja, pelos seus relatos evidencia que hoje eles estão precisando viver bastante dentro dos limites deste orçamento (e-STJ fls. 357/359 �- com destaques conforme original e com adaptações).

    Delimitado o debate �- considerada a imutabilidade da base fática descrita no acórdão impugnado �-, cabe adentrar na análise do tema em foco, com vistas a impedir que a insegurança a que já foi submetido o casal quando da adoção do pequeno C. E., diante do vazio legal e que por isso mesmo adotou a criança em nome de apenas um deles �- exatamente o que veio a falecer �-, seja mais uma vez perpetuada.

    II. Dos princípios fundamentais e do emprego da analogia como método integrativo para que se produzam os idênticos efeitos do reconhecimento de união estável a relação de afeto entre pessoas do mesmo sexo.

    Por se tratar de questão jurídica símil, utilizo como fundamentos aqueles já expendidos quando proferi voto no REsp 930.460/PR, nesta Terceira Turma, que seguem reproduzidos:

    Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela. Essa circunstância não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, que devem estar preparados para regular as relações contextualizadas em uma sociedade pós-moderna, com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais.

    Sob essa ótica, a proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida com os olhos fitos no respeito às diferenças interpessoais, no sentido de vedar condutas preconceituosas, discriminatórias e estigmatizantes, sob a firme escolta dos princípios fundamentais da igualdade, da dignidade e da liberdade do ser humano.

    De fato, só teria sentido identificar uma pessoa em função de sua orientação sexual se a atração pelo mesmo sexo fosse relevante a ponto de impor diferenças de tratamento, como se de “desvio de comportamento” se tratasse, quando na verdade as uniões homossexuais constituem um fato social incontestável, que remonta a períodos longínquos da história da humanidade.

    A inegável superação de antigos modelos do direito de família tem se operado pela gradativa evanescência da função “procriacional” a definir a entidade familiar, bem como, pela dissipação do conteúdo de cunho marcadamente patrimonialista, para dar lugar à comunhão de vida e de interesses pautada no cuidado e na afetividade, tendo como suporte a busca da realização pessoal de seus integrantes.

    É certo que o direito não regula sentimentos, mas define as relações com base neles geradas, o que não permite que a própria norma, que veda a segregação de qualquer ordem, seja revestida de conteúdo discriminatório. O núcleo do sistema jurídico deve, portanto, muito mais garantir liberdades do que impor limitações na esfera pessoal dos seres humanos.

    Assim, relações fundadas no afeto e na mútua assistência, consolidadas entre pessoas do mesmo sexo, têm sido, gradativamente, inseridas no âmbito do direito de família, especialmente pela doutrina e pela jurisprudência, o que deve conduzir a uma inevitável normatização do tema.

    Contudo, enquanto a norma não se amolda à realidade, considerando os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional a respeito do tema (Projetos de Lei n.ºs 1.151/95, 52/99, 580/07, 674/07 e 2.285/07. Disponíveis em: http://www.câmara.gov.br/sileg/default.asp. Acesso em janeiro de 2011), é dever do Juiz emprestar efeitos jurídicos adequados às relações já existentes e que estão a reclamar a manifestação do Poder Judiciário, a fim de evitar a velada permissão conferida pelo silêncio da lei para práticas discriminatórias, em face do exercício do direito personalíssimo à orientação sexual.

    Significa dizer: a ausência de previsão legal jamais pode servir de pretexto para decisões omissas, ou, ainda, calcadas em raciocínios preconceituosos, evitando, assim, que seja negado o direito à felicidade da pessoa humana.

    A União Européia, por meio de seus órgãos institucionais, como o Parlamento Europeu e a Corte Européia de Direitos Humanos, tem exortado os países integrantes no sentido de coibir práticas discriminatórias relativas aos homossexuais, bem como de legalizar uniões entre pessoas do mesmo sexo. Entre as várias iniciativas européias, destacam-se as seguintes:

    A Resolução do Parlamento Europeu relativa às discriminações no local de trabalho, de 13 de março de 1984; Resolução do Parlamento Europeu (A3-0028/94), de 8 de fevereiro de 1994, referente à igualdade dos direitos das pessoas homossexuais e lésbicas na Comunidade Européia; Resolução B4-824 e 0852/98, de 17 de dezembro de 1998, referente à igualdade de direitos para as pessoas homossexuais e lésbicas na União Européia; Art. 13 do Tratado de Roma, modificado pelo Tratado de Amsterdam; Diretiva 2000/78/CE, relativa à criação de uma estrutura geral favorável à igualdade em matéria de emprego e trabalho; Parecer nº. 216 (2000): Projeto de protocolo nº. 12 à Convenção Européia de Direitos Humanos, com proposição de proteção das pessoas homossexuais e lésbicas contra as discriminações baseadas na sua orientação sexual; Art. 21 da Carta de Direitos Fundamentais da União Européia (retomada pelo Projeto da Constituição Européia). Todos os textos podem ser acessados em http://europa.eu/documentation/index_pt.htm.

    Nessa perspectiva, são diversos os países europeus que possuem legislação reconhecendo os direitos oriundos de uniões entre pessoas do mesmo sexo. Entre eles, destacam-se a Dinamarca, a Holanda, a Noruega, a Suécia, a Finlândia, a Islândia, a França, a Espanha, a Bélgica, a Alemanha, a Croácia, a Grã-Bretanha, a Suíça e Portugal.

    Na América, parceiros de idêntico sexo têm seus direitos tutelados no Canadá, nos estados americanos de Vermont, Connecticut, Massachusetts, New Jersey, New York e Distrito de Columbia, entre outros, na cidade do México, na Argentina e no Uruguai.

    O contexto sociocultural mundial, portanto, vem acenando no sentido de que seja conferido tratamento paritário aos casais, sejam eles homo ou heterossexuais.

    O Brasil aderiu à Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, e à Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, que serviram de inspiração para o Decreto que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos �- PNDH, o qual se encontra em sua terceira versão, editado sob o n.º 7.037, de 2009.

    Um dos eixos orientadores desse Decreto consiste em “universalizar direitos em um contexto de desigualdades” (Eixo Orientador III), figurando como diretriz de n.º 10, a “garantia da igualdade na diversidade”, pontuada por 5 (cinco) objetivos estratégicos. O objetivo estratégico I trata da “afirmação da diversidade para construção de uma sociedade igualitária” e tem como uma de suas ações programáticas, “realizar campanhas e ações educativas para desconstrução de estereótipos relacionados com diferenças étnico-raciais, etárias, de identidade e orientação sexual, de pessoas com deficiência, ou segmentos profissionais socialmente discriminados”. O objetivo estratégico V, explicitado no Anexo do referido Decreto, prima pela “garantia do respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero” (frisa-se que os destaques não constam dos originais), por meio das seguintes ações programáticas:

    a) Desenvolver políticas afirmativas e de promoção de cultura de respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero, favorecendo a visibilidade e o reconhecimento social.

    b) Apoiar projeto de lei que disponha sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

    c) Promover ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos.

    d) Reconhecer e incluir nos sistemas de informação do serviço público todas as configurações familiares constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da heteronormatividade.

    e) Desenvolver meios para garantir o uso do nome social de travestis e transexuais.

    f) Acrescentar campo para informações sobre a identidade de gênero dos pacientes nos prontuários do sistema de saúde.

    g) Fomentar a criação de redes de proteção dos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), principalmente a partir do apoio à implementação de Centros de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia e de núcleos de pesquisa e promoção da cidadania daquele segmento em universidades públicas.

    h) Realizar relatório periódico de acompanhamento das políticas contra discriminação à população LGBT, que contenha, entre outras, informações sobre inclusão no mercado de trabalho, assistência à saúde integral, número de violações registradas e apuradas, recorrências de violações, dados populacionais, de renda e conjugais (Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm#art7. Acesso em janeiro de 2011 �- sem destaques no original).

    Extrai-se, ainda, do Anexo do Dec. 7.037, de 2009, quanto ao tema ora em debate, as seguintes e relevantes considerações:

    À luz da história dos movimentos sociais e de programas de governo, o PNDH-3 orienta-se pela transversalidade, para que a implementação dos direitos civis e políticos transitem pelas diversas dimensões dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Caso contrário, grupos sociais afetados pela pobreza, pelo racismo estrutural e pela discriminação dificilmente terão acesso a tais direitos.

    As ações programáticas formuladas visam enfrentar o desafio de eliminar as desigualdades, levando em conta as dimensões de gênero e raça nas políticas públicas, desde o planejamento até a sua concretização e avaliação. Há, neste sentido, propostas de criação de indicadores que possam mensurar a efetivação progressiva dos direitos.

    Às desigualdades soma-se a persistência da discriminação, que muitas vezes se manifesta sob a forma de violência contra sujeitos que são histórica e estruturalmente vulnerabilizados.

    O combate à discriminação mostra-se necessário, mas insuficiente enquanto medida isolada. Os pactos e convenções que integram o sistema regional e internacional de proteção dos Direitos Humanos apontam para a necessidade de combinar estas medidas com políticas compensatórias que acelerem a construção da igualdade, como forma capaz de estimular a inclusão de grupos socialmente vulneráveis. Além disso, as ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que buscam remediar um passado discriminatório. No rol de movimentos e grupos sociais que demandam políticas de inclusão social encontram-se crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas com deficiência, pessoas moradoras de rua, povos indígenas, populações negras e quilombolas, ciganos, ribeirinhos, varzanteiros e pescadores, entre outros.

    Definem-se, neste capítulo, medidas e políticas que devem ser efetivadas para reconhecer e proteger os indivíduos como iguais na diferença, ou seja, para valorizar a diversidade presente na população brasileira para estabelecer acesso igualitário aos direitos fundamentais. Trata-se de reforçar os programas de governo e as resoluções pactuadas nas diversas conferências nacionais temáticas, sempre sob o foco dos Direitos Humanos, com a preocupação de assegurar o respeito às diferenças e o combate às desigualdades, para o efetivo acesso aos direitos (Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm#art7. Acesso em janeiro de 2011 �- sem destaques no original).

    Conquanto a existência unicamente de normas de conteúdo programático, certo é que o cenário normativo brasileiro assinala no sentido de se ajustar à tendência mundial �- pelo menos a dos países ocidentais �-, de eliminar comportamentos segregatícios e acolher, dessa forma, sob as asas da proteção legal, os relacionamentos humanos afetivos, sejam eles entre homo ou heterossexuais.

    São muitas as facetas com as quais podem se revestir as entidades familiares pós-modernas: além da tradicional, fundada no casamento, ou da representada pela união estável �- ambas formadas pelos genitores e sua eventual prole �-, bem como a da família monoparental, constituída por apenas um dos genitores e seus filhos, não se pode deixar de mencionar aquela que se faz representar por duas pessoas unidas pelo amor que nutrem entre si e que optaram por não ter filhos. Todas elas, caracterizadas pela ligação afetiva entre seus componentes, fazem jus ao status de família, como entidade a receber a devida proteção do Estado. Todavia, acaso essa última modalidade seja composta por duas pessoas do mesmo sexo, instala-se a celeuma jurídica, sustentada pela heteronormatividade dominante.

    Da recente obra de Adilson José Moreira, que consiste na versão ampliada da tese de doutorado por ele defendida em 2007, extrai-se que ao abandonar a ideia de que a procriação é a função principal do grupo familiar, adota-se uma “compreensão funcionalista da família”, que significa reconhecer a entidade familiar não mais como um lugar de reprodução social, mas sim como “um espaço de trocas de afetos e suporte mútuo” (União homoafetiva: a construção da igualdade na jurisprudência brasileira. Curitiba: Juruá, 2010. p. 355 �- sem destaques no original).

    Anote-se que, apesar do fato de a maioria dos nascimentos ocorrerem dentro dos relacionamentos heterossexuais, é também verdade que muitos casais heterossexuais têm exercido a opção de não ter filhos, bem como há casais homossexuais que têm filhos por meio de reprodução assistida ou pela adoção. Dessa forma, excluir os casais homossexuais da tutela jurídica significa excluir, em igual medida, seus filhos da proteção legal.

    Além do mais, a possibilidade de viver um relacionamento depende de uma série de liberdades atualmente limitadas aos casais heterossexuais, tendo em vista a pontuada presença do preconceito contra homossexuais em nossa sociedade. No entanto, quando duas pessoas �- hetero ou homossexuais �- resolvem construir uma vida em comum, são movidas pela mesma força que motiva todos os seres humanos a estabelecer relações íntimas. Essas relações estão fundamentadas em diversos fatores, como conhecimento, confiança, comprometimento, interdependência, cuidado e afeto. Como os parceiros estabelecem planos a fim de estreitar os laços existentes, eles consideram a si mesmos como um casal e não como dois indivíduos. Essa unidade baseada na confiança recíproca permite a construção de um projeto de vida direcionado ao bem-estar comum, sob o espeque da honradez e da equidade, o que confere ao casal uma expectativa de estabilidade.

    A respeito do tema Adilson José Moreira refere o seguinte:

    Vários estudos realizados por pesquisadores norte-americanos com casais heterossexuais e homossexuais demonstram que os relacionamentos homossexuais são capazes de produzir os mesmos níveis de satisfação pessoal alcançados pelos casais heterossexuais. Os resultados dessas pesquisas comprovam que casais homossexuais e heterossexuais experienciam o mesmo nível de satisfação nos seus relacionamentos. Ao comparar as respostas do mesmo número de indivíduos de ambos os sexos e de diferentes orientações sexuais, essas pesquisas revelam que homens e mulheres homossexuais possuem o mesmo nível de compatibilidade, intimidade, satisfação e crescimento pessoal nos seus relacionamentos. O mesmo resultado foi observado em estudos comparando a qualidade do relacionamento de casais heterossexuais e homossexuais monogâmicos com e sem filhos. Casais heterossexuais e homossexuais possuem o mesmo nível de amor pelo parceiro, o mesmo nível de ajustamento psicológico e de satisfação com o relacionamento. Vemos então que as uniões homossexuais nascem da procura de se satisfazer uma necessidade humana básica e que as uniões homossexuais proporcionam a satisfação dessa necessidade da mesma forma que as uniões heterossexuais.

    As evidências científicas de que os seres humanos possuem uma necessidade inata de formar relações íntimas e que essa possibilidade está diretamente relacionada com o nosso bem-estar físico e psicológico serve como outra forte indicação da irracionalidade da exclusão dos casais homossexuais da proteção jurídica oferecida pela instituição da união estável. (op. cit. p. 359/360 �- sem destaques no original).

    A família, com efeito, deixou de ser vista apenas como uma unidade de reprodução biológica para traduzir a necessidade humana de pertencimento que leva as pessoas a estabelecer relações íntimas, a fim de satisfazer desejos de aceitação e afeto. Dessa nova percepção intui-se uma forte correlação entre os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana, no sentido de que a troca de afetos gerada pela formação de laços íntimos é condição sine qua non para uma vida digna e feliz.

    A existência de discriminação perversiva contra homossexuais ao longo dos tempos tem sido uma causa impeditiva para a construção de relacionamentos estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Não raras vezes, o preconceito social contra homossexuais faz com que eles adotem um comportamento heterossexual, levando uma vida sexual paralela e clandestina, que traz consequências invariavelmente nefastas para eles e para aqueles com os quais se relacionam. Ou, ainda, ao se verem emparedados pelo preconceito, desistem de seus sonhos e passam a adotar um estilo de vida contrário às suas disposições psicológicas.

    Ainda, os casais homossexuais, em sua maioria, acabam organizando suas vidas com uma rígida separação entre a vida pública e a privada, cerceados pelo medo das possíveis consequências da homofobia ou de outras manifestações de matiz discriminatório a que sejam expostos. Mantêm, assim, o relacionamento em segredo, ou, então, restrito ao círculo familiar e de amigos mais íntimos.

    Sob esse panorama, a construção da ideia de uma heterossexualidade compulsória, por meio da qual os homossexuais têm sido historicamente colocados à margem do sistema de direitos, serviu, ao longo dos tempos, como pano de fundo para manter esse grupo social estigmatizado. Em outras palavras, a heteronormatividade que impera na nossa cultura tem imposto severas limitações aos direitos de homens e mulheres homossexuais, com igualmente severas sequelas sociais. Desse modo, a restrição ao exercício de diversas formas de capacidades humanas tem provocado uma consequente limitação de emprego das mais variadas potencialidades dos homossexuais em áreas específicas de sua vida pessoal, comprometendo, em igual medida, o direito a uma existência digna e plena.

    Assim o é porque a negação de direitos que têm o condão de satisfazer a necessidade humana básica de se inter-relacionar é um elemento que viola o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos termos do art. , III, da CF/88.

    Da mesma forma, a negação aos casais homossexuais dos efeitos inerentes ao reconhecimento da união estável impossibilita a realização de dois dos objetivos fundamentais de nossa ordem jurídica, que é a erradicação da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme disposto no art. , III e IV, da CF/88.

    Os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam, portanto, o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar.

    O princípio da dignidade da pessoa humana, de sua parte, procura tutelar a autonomia dos seres humanos, tornando-os aptos a alcançar a liberdade para que façam suas escolhas pessoais. Nesse sentido, nas palavras de Adilson José Moreira, “o princípio da dignidade humana protege a autonomia de todos os membros da entidade familiar como também todas as formas de entidade familiar” (op. cit. p. 382 �- sem destaques no original).

    O princípio da igualdade, por sua vez, entendido como capacidade, reafirma o comprometimento de índole constitucional com o reconhecimento, a proteção e a aceitação de uma pluralidade de entidades familiares. Esse princípio apresenta em seu bojo uma natureza transformadora, ao aniquilar as formas de discriminação responsáveis pela marginalização de grupos sociais historicamente vulneráveis, tornando acessível a todos a paridade de participação, por meio da construção de uma sociedade igualitária a partir de um projeto que promova verdadeira inclusão social.

    Por tudo isso, e considerada a constitucionalização do direito de família, a legislação que regula a união estável deve ser interpretada de forma expansiva, para que o sistema jurídico possa oferecer a devida proteção às uniões homossexuais, o que consistirá em um resultado natural da evolução concebida no imaginário social, como necessária, útil e desejada pelas pessoas e comunidades.

    A limitação da incidência das regras atinentes à união estável ao âmbito dos casais heterossexuais viola inúmeros princípios constitucionais, que representam fundamental significância para a promoção das capacidades humanas, comprometendo tanto a liberdade do homossexual de alcançar o seu bem-estar, como também a sua liberdade de atuação como agente.

    Se ao contemplar o afeto e invocá-lo como elemento identificador da natureza familiar das uniões estáveis, por qual razão haveria de se apartar da tutela jurídica os parceiros de uniões homossexuais?

    Segundo lição de Dionizio Jenczak, em sua dissertação acadêmica de conclusão de mestrado publicada após a sua morte, a ausência de qualquer amparo normativo-positivo às uniões homossexuais impõe uma meta que extrapola a mera lógica racional para incluir a “igualação de oportunidades e a busca da felicidade”, visando o bem de todos, que é denominado por Miguel Reale como a “força ordenadora da Ética” (Aspectos das relações homoafetivas à luz dos princípios constitucionais. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 104 �- sem destaques no original).

    O professor Luiz Edson Fachin prossegue no mesmo sentido, “rente à história e preso à vida mutante”, considerando que

    não pode a Justiça seguir dando respostas mortas a perguntas vivas, ignorando a realidade social subjacente, encastelando-se no formalismo, para deixar de dizer o direito.

    (...)

    Na transformação da família e de seu Direito, o transcurso apanha uma “comunidade de sangue” e celebra (...) a possibilidade de uma “comunidade de afeto”. (...)

    Mosaico da diversidade, ninho de comunhão no espaço plural da tolerância. Tripé de fundação, como se explica. Diversidade cuja existência do outro torna possível fundar a família na realização pessoal do indivíduo que respeitando o “outro” edifica seu próprio respeito e sua individualidade no coletivo familiar. Comunhão que valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias de um renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consanguíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro plural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões.

    Eis, então, o direito ao refúgio afetivo (Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 123, 317/318. Sem destaques no original).

    Para o STF, o convívio entre pessoas do mesmo sexo, fundado no afeto e no companheirismo, também caracteriza uma entidade familiar (ADI 3.300, MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 9.2.2006).

    Em termos estritamente jurídicos, a problemática em torno da pretensa incompatibilidade da aplicação do regime de partilha de bens para a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo provém do contraste existente entre as disposições do CC/02 e da CF/88. A contraposição faz com que as regras constitucionais relativas à erradicação da marginalização, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. , III e IV, da CF/88) e as normas pertinentes à união estável (art. 1.723 e seguintes do CC/02) pareçam instintivamente incompatíveis.

    Essa suposta incongruência, no entanto, deve ser analisada também neste grau de jurisdição. É necessário explicitar o sentido das normas constitucionais que orientam o Direito de Família, sob pena de postergar o exercício e o alcance da garantia institucional contida no art. , XXXV, da CF/88 (princípio da inafastabilidade da jurisdição).

    Nesse sentido, não seria razoável admitir que, após o conhecimento do recurso especial, o STJ possa aplicar apenas normas infraconstitucionais à espécie. A própria competência desta Corte para o exame do recurso especial encontra fundamento em um dispositivo constitucional (art. 105 da CF/88). A realização de qualquer julgamento, em qualquer grau de jurisdição, depende sempre do cotejo analítico de todo o ordenamento jurídico, o que necessariamente pressupõe o exame, ainda que implícito, dos comandos normativos contidos na CF/88, fundamento de validade de toda a legislação federal.

    Ultrapassadas as considerações sobre a viabilidade do exame da matéria nesta sede, retorno ao cerne da controvérsia, destacando que o tema é bastante sensível e mereceu muita atenção no decorrer das ultimas décadas. A união homoafetiva já foi objeto de análise e sistematização por diversos sistemas jurídicos estrangeiros, entre os quais o da Alemanha, que em agosto de 2001 editou a “Gesetz zur Beendingung der Diskriminierung gleichgeschlechtlicher Gemeinschaften: Lebenspartnerschaftsgesetz - LPartG” (Lei para a erradicação da discriminação das parcerias homossexuais �- Lei da União Homoafetiva). Essa norma passou por duas grandes reformulações em 2005 e 2007, nas quais foram conferidas à parceria homoafetiva cada vez mais direitos, em tudo equiparáveis aos desfrutados pelos casais heterossexuais �- inclusive no que se refere a alimentos, à meação em caso de separação ou divórcio e aos direitos sucessórios.

    A Alemanha acabou por adotar um regime diferenciado para a tutela jurídica das uniões homoafetivas, deixando de consagrar legalmente a possibilidade do casamento das pessoas do mesmo sexo. Outros países como a Holanda, a Espanha e Portugal acabaram por redefinir o conceito de casamento, que passou a compreender também as uniões homossexuais.

    A LPartG foi submetida ao controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht - BVerfG), pois os Estados da Saxônia e da Bavária alegaram que a regulamentação da união homoafetiva violaria o art. da Constituição alemã (Grundgesetz �- GG). Esse artigo estabelece, em seu parágrafo primeiro, que “o casamento e a família encontram-se sob a especial proteção da ordem estatal”, razão pela qual os Estados autores consideraram temerária a edição da lei que pretenderia “nivelar o casamento a outras formas de parceria afetiva, por meio da criação de institutos jurídicos paralelos igualáveis ao casamento civil, acabando por subtrair a especial proteção que a constituição lhe conferiu” (BVerfG, 1 BvF 1/01 de 17/7/2002, Absatz-Nr. 1 - 147, http://www.bverfg.de/entscheidungen/ls20020717_1bvf000101.html - acesso em 3 de fevereiro de 2011, tradução livre). A controvérsia restringia-se a averiguar se o tratamento igualitário de realidades substancialmente desiguais violaria a obrigação de diferenciação do casamento, imposta pela Lei Fundamental alemã.

    O acórdão proferido pelo BVerfG (Supremo Tribunal Constitucional alemão) assinalou que “a constituição não garante o instituto do casamento abstratamente, mas na concepção que corresponde à visão dominante, expressa pelas regras jurídicas vigentes.” Segundo o BVerfG, não há absoluta equivalência entre as figuras jurídicas do casamento e da união homoafetiva, porque “da relação entre um homem e uma mulher unidos por muito tempo podem resultar filhos em comum, o que não pode acontecer numa união de pessoas do mesmo sexo.” Assim, é plenamente justificável e não ofende o princípio da igualdade o fato de que “os casais formados por pessoas de sexo diferente sejam remetidos para o casamento, quando queiram dar à sua comunhão de vida um vínculo jurídico duradouro”, e aos parceiros homossexuais seja reservado um instituto jurídico distinto.

    A existência de regimes legais distintos para as uniões homossexuais e heterossexuais, contudo, não impede o reconhecimento dos direitos patrimoniais decorrentes das parcerias homoafetivas, especialmente no que diz respeito à partilha dos bens após a dissolução do vínculo afetivo ou ao direito das sucessões. Recentes decisões do mesmo BVerfG assinalaram que é inconstitucional a diferenciação entre casais heterossexuais e homossexuais no que se refere à pensão por morte e à partilha da herança. Nesse contexto, “a discriminação dos casais homossexuais em relação aos casais heterossexuais sem filhos não pode ser justificada pelo fato de que os casamentos são geralmente caracterizados pela existência de filhos em comum. (...) As disposições relativas à Lei para a erradicação da discriminação das parcerias homossexuais regulam as uniões homossexuais, ao passo que as regras aplicáveis ao casamento disciplinam as parcerias heterossexuais. Se as parcerias homossexuais e o casamento heterossexual forem tratados diferentemente no que diz respeito aos direitos hereditários, será constatada uma injusta discriminação em razão da orientação sexual. (...) O tratamento privilegiado do casamento em detrimento de outras parcerias não permite afirmar que o art. 6º da Lei Fundamental determine a discriminação das outras uniões familiares. Esse privilégio constitucional conferido à instituição do casamento pela lei fundamental não justifica que outras formas de união sejam diferentemente estruturadas, de modo que a elas sejam outorgados menos direitos” (BverfG, 1 BvR 1164/07 de 7/7/2009, Absatz Nr. 1 �- 127 - http://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rs20090707_1bvr116407.html - acesso em 3 de fevereiro de 2011, tradução livre).

    De fato, entre os objetivos que as pessoas geralmente perseguem com o casamento está a realização pessoal no plano emocional e afetivo, por meio da comunhão íntima de vida. Desde sempre os indivíduos procuram a estabilidade em seus vínculos emocionais, sendo que o simbolismo que cerca o casamento atende não somente a esse anseio, mas também aos demais efeitos decorrentes de um verdadeiro consórcio amoroso, nos quais igualmente estão contidas disposições patrimoniais. Por essa razão, o BVerfG afirmou que qualquer medida legislativa discriminatória jamais encontraria suporte constitucional para justificar diferenças de tratamento entre pares do mesmo sexo e pares de sexo diferente que pretendessem viver juntos, especialmente no que se refere aos direitos sucessórios e patrimoniais decorrentes dos vínculos estabelecidos.

    Voltando ao Judiciário brasileiro, igualmente o TSE reconheceu um casal homossexual como uma entidade familiar, em decisão que confirmou a sentença de impugnação de candidatura de uma mulher que vivia em relação estável com a prefeita de uma cidade localizada na região norte do país (Tribunal Pleno, ED no RESPE 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2.10.2004).

    Muito embora inicialmente o STJ tenha assentado entendimento idêntico ao conferido pelo acórdão recorrido, de que as uniões entre pessoas do mesmo sexo deveriam ser compreendidas como sociedades de fato e não propriamente como entidades familiares (REsp 148.897/MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 6.4.1998; REsp 502.995/RN, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 16.5.2005; REsp 773.136/RJ, de minha relatoria, DJ 13.11.2006; REsp 648.763/RS, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 16.4.2007), tem esta Corte evoluído em sintonia com o dinamismo inerente à vida em sociedade. Dessa forma, na ausência de disposição legal a respeito do tema e, empregando-se a analogia como método integrativo da lei, os mais recentes precedentes do STJ acenam no sentido de que a parceria afetiva entre pessoas do mesmo sexo é capaz de gerar direitos e deveres, bem assim de produzir efeitos no universo jurídico, em identidade àqueles oriundos de diversa entidade familiar: a união estável (REsp 238.715/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 2.10.2006; REsp 820.475/RJ, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Ac. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 6.10.2008; REsp 971.466/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 5.11.2008).

    Assinale-se, ainda, em convergência com a evolução do entendimento desta Corte, precedente de minha lavra, no qual foi reconhecido, com base em idêntica fundamentação da acima declinada, o direito de companheiro homossexual sobrevivente à pensão post mortem deixada por integrante de previdência privada complementar (REsp 1.026.981/RJ, DJe 23.2.2010).

    Ressalte-se, todavia, que em algumas hipóteses, as particularidades inerentes a determinadas lides poderão conduzir a interpretações em sentido diverso daquele em relação ao qual acena a evolução jurisprudencial, sem, necessariamente, significar retrocesso ou reversão a posicionamentos ultrapassados. Assim ocorreu quando do julgamento do REsp 633.713/RS, Rel. Min. Vasco Della Giustina, DJe 2.2.2011, que definiu apenas como sociedade de fato a união homossexual havida entre as partes, consideradas as especificidades intrínsecas àquele processo.

    De qualquer forma, enquanto a lei civil permanecer inerte, as novas estruturas de convívio que batem às portas dos Tribunais devem ter sua tutela jurisdicional prestada com base nas leis vigentes e nos parâmetros humanitários que norteiam não só o direito constitucional brasileiro, mas a maioria dos ordenamentos jurídicos existentes no mundo. Especificamente quanto ao tema em foco, a busca de uma solução jurídica deve primar pelo extermínio da histórica supressão de direitos fundamentais �- sob a batuta cacofônica do preconceito �- a que submetidas as pessoas envolvidas em lides desse jaez.

    O art. da LICC permite a equidade na busca da Justiça. O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidades familiares, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização de entidade familiar diversa e que serve, na hipótese, como parâmetro diante do vazio legal �- a de união estável �- com a evidente exceção da diversidade de sexos.

    Assim sendo, as uniões entre pessoas do mesmo sexo podem ser consideradas como entidades familiares desde que preencham os requisitos da afetividade, da estabilidade e da ostensibilidade.

    Demonstrada, portanto, a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, sem a ocorrência dos impedimentos do art. 1.521 do CC/02, com exceção do inc. VI quanto à pessoa casada separada de fato ou judicialmente, haverá, por consequência, o reconhecimento dessa união como entidade familiar, com a respectiva atribuição de efeitos jurídicos dela advindos.

    Como se pode notar, as novas bandeiras do direito de família têm como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes.

    E nessa evolução de mentalidade, deve o juiz permanecer atento às manifestações de farisaísmo, de intolerância ou de repulsa porventura reveladas em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e desarmamento de possíveis espíritos em conflito.

    A defesa dos direitos em sua plenitude deve, portanto, fundar suas bases nos ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando inseriu no mundo jurídico os relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável, hoje com expressa previsão legal. A temática ora em julgamento igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso.

    Dessa forma, o uso da analogia para acolher as relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo no berço do direito de família, suprindo, assim, a lacuna normativa, com o consequente reconhecimento dessas uniões como entidades familiares, deve vir acompanhado da firme observância dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da autodeterminação, da intimidade, da não discriminação, da solidariedade e da busca da felicidade, respeitando-se, acima de tudo, o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual.

    Com as diretrizes interpretativas fixadas pelos princípios gerais de direito e por meio do emprego da analogia para suprir a lacuna da lei, legitimada está juridicamente a união de afeto entre pessoas do mesmo sexo, para que sejam colhidos no mundo jurídico os relevantes efeitos de situações consolidadas e há tempos à espera do olhar atento do Poder Judiciário.

    Sob essa ótica, intui-se o caráter de eticidade e de utilidade de uma normatização direcionada a responder aos anseios sociais de um novo tempo.

    (...)

    Para finalizar, ao afirmar que o afeto homossexual saiu da clausura, passando por guetos jurídicos, onde uma igualdade menos igual que a dos relacionamentos heterossexuais impera, o Professor Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros encerra sua obra, com as seguintes considerações:

    Família é afeto e sentimento.

    Independentemente da orientação sexual.

    Sentimento e direito, no atual estágio da travessia, saem do armário, reconhecendo, por força constitucional, que, de maneira livre, igual e digna, qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá (A constitucionalidade do casamento homossexual. São Paulo: LTr, 2008. p. 145. Sem destaques no original).

    III. Da solução da lide.

    No processo em apreciação, da situação fática descrita no acórdão impugnado, insuscetível, portanto, de reexame, ressai, incontroversa, a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, havida entre o recorrido e o falecido, pai adotivo do recorrente. O casal e a criança formavam, portanto, um núcleo familiar, marcado pelo afeto e cuidado recíprocos.

    A integração da lacuna legislativa por meio do uso da analogia, a permitir que os efeitos do instituto da união estável abarquem esta outra forma de entidade familiar e carente de normatização �- a relação de afeto entre pessoas do mesmo sexo �-, desde que preenchidas as características definidas em lei para aquela modalidade de família, conduz à assertiva de que não se exige a prova do esforço comum para a partilha do patrimônio adquirido a título oneroso na constância da relação.

    De toda forma, mesmo que fosse aplicado entendimento em sentido contrário, o recorrido faria jus, ainda assim, a metade do patrimônio deixado pelo companheiro falecido, eis que expresso no acórdão impugnado, a cujo reexame fático esta Corte é infensa, que houve a demonstração do esforço comum (conforme e-STJ fl. 566).

    Desse modo, comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento, em nome de apenas um ou de ambos, sem que se exija, para tanto, a prova do esforço comum, que nesses casos, é presumida.

    Assim como já o fazem os casais heterossexuais, quando regulados pelo instituto da união estável, na hipótese de os companheiros pretenderem dispor de forma diversa acerca do patrimônio construído pelo esforço comum ao longo da união, deverão formular estipulação escrita em sentido contrário, com as especificações que reputarem convenientes.

    Por fim, destaco da sentença que julgou procedente o pedido de adoção de C. E., porquanto elucidativo para espancar qualquer dúvida acerca da solução da lide, o seguinte trecho:

    (...) a criança estava crescendo abandonada na instituição. Ao que tudo indicava o futuro de E. seria crescer institucionalizado, uma vez que como bem salientou o Douto Promotor de Justiça recebeu um imenso legado de sua mãe, o vírus HIV. Por sorte a criança conseguiu uma família substituta e hoje está recebendo o que lhe é de direito, amor, carinho, atenção, saúde, escola e tudo o mais que toda criança deve ter.

    (...) E. encontra-se sob a guarda e responsabilidade do Sr. G. F. da S. desde 21/03/2002, e os laudos do Setor Interprofissional comprovam a perfeita adaptação da criança com o adotante, bem como comprovam ainda a real vantagem da adoção em prol do pequeno E., pois este enfim, encontrou um pai que o ama e garante a ele a segurança do apoio moral e material que lhe é necessário (e-STJ fl. 273 �- com adaptações).

    A dor gerada pela perda prematura do pai adotivo, consideradas as circunstâncias de abandono e sofrimento em que essa criança veio ao mundo, poderá ser minimizada com a manutenção de seus referenciais afetivos, que hoje, conforme atesta o acórdão recorrido, estão firmemente consolidados na figura de C. P. (conforme e-STJ fls. 564/565).

    Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial.

    VOTO-VISTA

    O EXMO. SR. MINISTRO SIDNEI BENETI:

    1.- O autor, ora Recorrido (C P da S), moveu “ação declaratória de reconhecimento de união estável homoafetiva e entidade familiar” (fls. 2) contra C E F da S, menor (nascido a 1.11.1999, fls. 325), ora recorrente, (representado por MAS, Curadora Especial nomeada, irmã do adiante indicado companheiro G F da S), alegando que viveu em união homossexual por dezoito anos com G F da S, pai adotivo do menor-réu, falecido a 3.11.2006 (fls. 325) pleiteando o autor, ora recorrido, na inicial (fls. 45/46):

    “Seja a presente em seu final julgada procedente, reconhecendo-se por sentença a união estável homoafetiva entre o Requerente G F da S (...) e que seja reservada quota-parte correspondente a 50% (...) do patrimônio inventariado nos autos do processo 1006/2006 (...) 5ª Vara Cível da Comarca de Cuiabá/MT, em consonância com o disposto nos artigos 1845, 1846 e 1846 (sic) do Código Civil.

    “Como pedido subsidiário, que seja julgada procedente ação para que seja reconhecida a sociedade patrimonial de fato entre o Autor e (...G F da S), e desta forma, seja reservada quota-parte correspondente a 50% (...) do patrimônio inventariado.”

    2.- A sentença, proferida pelo Juiz IRÊNIO LIMA FERNANDES (fls. 383/394) julgou procedente a ação:

    “para reconhecer a união homoafetiva existente entre Cláudio Pereira da Silva e Geraldino Ferreira da Silva, de 1988 até 03/11/2006, data do falecimento do “de cujus” e assegurar ao autor 50% (...) do patrimônio adquirido a título oneroso, durante a convivência, objeto do Inventário nº 1006/2006, em curso nesta Vara.

    “Após o trânsito em julgado, expeça-se Carta de Sentença ou certidão equivalente e arquive-se com as cautelas de estilo.”

    O Acórdão ora recorrido (fls. 489/507), de que relator o E. Des. JURACY PERSIANI, por votação unânime, acompanhado dos votos da revisora, a E. Desª GUIOMAR TEODORO BORGES, e do Vogal, o E. Des. JOSÉ FERREIRA LEITE, negou provimento à apelação.

    3.- O Recurso Especial (fls. 576/586) sustenta a violação dos arts. , parágrafo único, da Lei nº 8971, de 1994, art. da Lei nº 9278, de 1996, e art. 1723 do Cód. Civil de 2002, bem como a ocorrência de dissídio jurisprudencial.

    Indeferido o Recurso Especial, foi provido Agravo de Instrumento, determinando-se a subida (fls. 673/676).

    O parecer do Ministério Público Federal, emitido pelo E. Subprocurador-Geral JOSÉ BONIFÁCIO BORGES DE ANDRADA, opinou no sentido do provimento do Recurso Especial, afastando-se, por inconstitucional e ilegal a união estável homossexual, mas admitida a sociedade de fato e a partilha patrimonial (fls. 712).

    4.- A E. Relatora, Minª NANCY ANDRIGHI, nega provimento ao Recurso Especial.

    Meu voto, com o maior respeito e admiração pela extraordinária qualidade jurisdicional do voto, da E. Relatora, diverge e dá provimento em parte ao recurso, nos termos do parecer da D. Procuradoria-Geral, ou seja, afastando a configuração de união estável homossexual, mas reconhecendo a existência de sociedade de fato a gerar direitos obrigacionais mas não direitos de família, e determinando a partilha na ordem de 50% como estabelecido pela conclusão do julgamento de origem.

    Em caso anterior, que ora se encontra “sub judice” na C. 2ª Seção deste Tribunal, com julgamento já iniciado e alguns votos já proferidos, tive a oportunidade de expor os fundamentos pelos quais entendi impossível, na competência deste Tribunal, transpor o instituto da união estável, enquanto instituto do Direito de Família, para o caso de união homossexual, por mais que se respeitem os profundos sentimentos afetivos que nesta se mantenham.

    Reporto-me aos fundamentos constantes do aludido voto que proferi no julgamento do REsp 1085646-RS, que são, aliás, com retificações redacionais, os mesmos do voto por mim proferido, na 3ª Turma, no julgamento do REsp 930460-PR:

    “7.- Meu voto, “data venia”, diverge do voto da E. Relatora, frisando, embora, o brilho da manifestação jurisdicional, como do feitio de S. Exa, e acompanha a divergência instaurada pelo voto do E. Min. Massami Uyeda, afastando o reconhecimento de união estável homoafetiva e mantendo o reconhecimento de sociedade de fato �- isto em virtude da ausência de recurso por parte do Espólio ora Recorrido.

    “8.- Resistindo ao fascínio das digressões psicológicas, sociológicas, políticas e de outras naturezas, que a profunda questão humana enseja, mas que são mais apropriadas aos profissionais de cada uma das áreas do saber humano envolvidas, deve a análise jurisdicional da matéria neste Tribunal ater-se à área jurídica, infraconstitucional reservando-se aos profissionais aludidos o fornecimento de elementos aos legisladores para que manifestem, legislativamente, o sentir da sociedade nacional sobre a matéria e ao C. Supremo Tribunal Federal a análise em temas constitucionais.

    “Deve o presente julgamento ater-se ao âmbito infra-constitucional da matéria, refreando-se de invadir a competência do C. Supremo Tribunal Federal, constitucionalmente incumbido da interpretação da Constituição Federal.

    “Deve-se reservar, portanto, para o posicionamento da própria sociedade, por intermédio das Casas Legislativas, e para o julgamento do C. Supremo Tribunal Federal, o embate de argumentos relevantes, relativamente às condições de realização da felicidade humana, dignidade das pessoas, não-discriminação por preferências sexuais, igualdade de direitos, enfim, a variada gama de considerações que o debate da matéria chama ao debate.

    “9.- No âmbito da competência deste Tribunal, de natureza infra-constitucional, o julgamento obriga-se a respeitar o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, que diz:

    '§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento'.

    “Como se vê da letra da Constituição, somente se caracteriza como união estável a união entre o homem e a mulher, não havendo, no texto constitucional, abertura para que, por interpretação infra-constitucional, se reconheça a união homoafetiva na categoria jurídica da união estável.

    “Tanto é assim que, segundo o texto constitucional, é reconhecida a união estável como instituição que possa ser convertida em casamento (CF, art. 226, § 3º, parte final).

    “E o casamento, na disciplina do Código Civil/2002, sempre pressupõe, expressamente, a união de homem e mulher, não havendo espaço para interpretação de modo a abranger a união homossexual (CC/2002, arts. 1517 e 1565).

    “Por isso é que o art. 1723 do Cód. Civil/2002, regrando os requisitos da união estável no país, expressamente exige a diversidade de gênero,dispondo:

    “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”

    “O sistema finda, de forma expressa, exigindo, no art. da Lei 9278, de 10.5.1996, o relacionamento de homem e mulher para o reconhecimento da união estável como entidade familiar:

    “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”.

    “Como se vê, tecnicamente não há como, sem violência ao sistema jurídico, a partir do texto constitucional, que não compete a este Tribunal, reservado à interpretação da norma infra-constitucional questionar, concluir no sentido do reconhecimento da configuração do instituto jurídico da união estável por parte de união homoafetiva.

    “10.- Não se ignora que vários Estados adotaram a regra da admissão do casamento ou união estável homossexual, instituindo-o como modalidade de união situada no âmbito do Direito de Família. Mas o fizeram por lei, não por criação jurisprudencial, infraconstitucional em confronto com o texto constitucional expresso, quando existente.

    “É preciso atentar às peculiaridades do tratamento da matéria por esses países. Tomando-se a enumeração vinda no voto da E. Relatora, verifica-se que instituíram o casamento homossexual por lei, votada pelo Legislativo e promulgada pelo Executivo, não por interpretação judicial, a Dinamarca, a Holanda, a Noruega, a Suécia, a Finlândia, a Islândia, a Espanha, a Bélgica, a Alemanha, a Croácia, a Grã-Bretanha, a Suíça, Portugal, Cidade do México, Província de Buenos Aires na Argentina e Uruguai. No Canadá, ao que se noticia, a Corte Suprema admitiu a constitucionalidade de leis provinciais, como as do Quebec e de Ontário, não impondo, contudo, a modalidade a todas as províncias.

    “Atente-se a que o direito aos institutos jurídicos do casamento homossexual e da união estável homossexual não se sobrepõem aos textos constitucionais de cada um dos Estados, ao só fundamento do disposto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, nem de Diretivas e Resoluções da União Européia (Bruxelas), ou de seu Tribunal de Justiça (Luxemburgo), ou do Parlamento Europeu, ou, ainda, de julgamentos da Corte Européia dos Direitos Humanos (Estrasburgo).

    “Tanto é assim que o mais recente julgamento internacional sobre a matéria, recentíssimo julgamento do Conselho Constitucional da França, um dos países mais ativos no respeito aos direitos humanos do mundo, com admirável e destacada atuação de opinião pública, ativa quanto à matéria, veio a negar a judicialização da decisão a respeito da exigência da diversidade sexual para o reconhecimento jurídico da união, concluindo, expressamente, a Corte Constitucional do país, que o debate e o regramento do assunto deve reservar-se para o Poder Legislativo, sendo indevida a usurpação legislativa pelo Poder Judiciário, .

    “Com efeito, o Conselho Constitucional francês provocado pela Cour de Cassation (correspondente ao Superior Tribunal de Justiça, na organização judiciária francesa) julgou, na Decision 2010-92-QPC, de 28.1.2001,

    “(...)

    “5. Considérant qu´aux termes de l´article 34 de la Constitution, la loi fixe les règles concernant “l´état et la capacité des personnes, les régimes matrimoniaux, les successions et liberalités'; qu´il est à tout moment loisible au législateur, statuant dans le domaine de sa compétence, d'adopter des dispositions nouvelles dont il lui appartient d´apprécier l´opportunité et de modifier des textes antérieurs ou d´abroger ceux ci en leus substituant, le cas échéant, d´autres dispositions , dès lors que, dans l´exercice de ce pouvoir, il ne prive pas de garanties légales des exigences de caractère constitutionnel; que l´article 61-1 de la Constitution, à l´instar de l´article 61, ne confère pas au Conseil constitucionnel un pouvoir général d´appréciation et de décision de même nature que celui du Parlement; que cet article lui donne seulement compétence pour se prononcer sur la conformité d´une disposition législative aux droits et libertés que la Contitution garantit

    (...)

    “6. Considérant, en premier lieu, que l´article 66 de la Constitutions prohibe la détention arbitraire et confie à l´autorité judiciaire, dans les constitions prévues par la loi, la protection de la liberté individuelle; que la liberté du mariage, composante de la liberté personnelle, résulte des articles 2 et 4 de la Déclaration des droit de l´homme et du citoyen de 1789; que les dispositions contestées n´affectent pas la liberté individuelle; que, dès lors, le grief tiré de la violation de l´article 66 de la Constitutution est inopérant;

    “7. Considérant, en second lieu, que la liberté du mariage ne restreint pas la compétence que le législateur tient de l´article 34 de la Constitution pour fixer les conditions du mariage dès lors que, dans l´exercice de cette compétence, il ne prive pas de garanties légales des exigences de caractère constitutionnel;

    (...)

    “8.- Consideránd, d´une part, que le droit de mener une vie familiale normale résulte du dixième alinéa du Préambule de la Constitution qui dispose: 'La Nation assure à l´individu et à la famille les conditions nécerssaires à leur développement'; que le dernier alinéa de l'árticle 75 et l'árticle 144 du code civil ne font pas obstacle à la liberté des couples de même sexe de vivre em concubinage dans les conditions définies par l´article 515-8 de ce code ou de bénéficier du cadre juridique du pacte civil de solidarité régi par ses articles 515-1 et suivants; que le droit de mener une vie familiale normale n´implique que le droit de se marier pour les couples du même sexe; que, par suite, les dispositions critiquées ne portent pas attente au droit de mener une vie familiale normale;

    “9. Considérant, d'áutre part, que l´article 6 de la Déclaration de 1789 dispose que la loi ' doit être la même pour tous, soit qu'elle protège, soit qu´elle punisse'; que le principe de´egalité ne s´oppose ni à ce que le législateur règle de façon maintenant le principe selon lequel le mariage est l´union d´un homme et d´une femme, le législateur a, dans l´exercice de la compétence que lui attribue l´article 34 de la Constitution, estimé que la différence de situation entre les couples du même sexe et les couples composés d´un homme et d´une femme peut justifier une différence de traitement quant aux régles du droit de la famille; qu´il n´appartient pas au Conseil Constitutionnel de substituer son appréciation à celle du législateur sur la prise en compte, en cette matière, de ette différence de situation; que, par suite, le grief tiré de la violation de l´article 6 de la Déclaration de 1789 doit être écarté”

    (...)

    “DÉCIDE:

    “Art. 1er �- Le dernier alínea de lárticle 75 et lárticle 144 du code civil sont conformes à la Constitution”.

    “Outras Convenções e, entre nós, seus Decretos Regulamentadores, são apenas programáticos, louvavelmente obrigando os Estados deles participantes a instituir programas de anti-discriminação de gênero e garantia de acesso à ordem jurídica, nos termos da legislação, mas não fulminam, contudo, textos constitucionais e infra-constitucionais em substituição à autonomia legislativa, derivada da soberania de cada Estado.

    “12.- No mais, o que se tem entre nós nessa matéria são as numerosas manifestações de opinião, algumas das quais as mais abalizadas, inclusive em obras doutrinárias de respeito, entre as quais as citadas pelo substancioso voto da E. Relatora, não sendo, contudo, elas, texto de lei infraconstitucional ou constitucional, que disponha pela admissão, em termos de interpretação infraconstitucional no sentido da admissão de união estável homossexual.

    “Igualmente os precedentes, lembrados pela Recorrente e pelo voto da E. Relatora, relativos a questões previdenciárias, securitárias, e de guarda de crianças e adolescentes, não atingem o âmago da questão ora em julgamento �- que é, repita-se, a declaração da legalidade da união estável homossexual, constitucional e infra-constitucional equiparada ao casamento, de modo que não se pode, sem lei ou interpretação de natureza constitucional (que não compete ao Superior Tribunal de Justiça realizar), reconhecer-se como casamento ou união estável, instituto restrito à possibilidade jurídica de ser transformada em casamento - o que inviável no caso.

    “A matéria, decididamente, reserva-se ao debate e decisão legislativa e, no âmbito judiciário constitucional, ao julgamento do C. Supremo Tribunal Federal, não podendo ser decidida, salvo em sentido contrário, por este Superior Tribunal de Justiça.

    “O Poder Legislativo, aliás, está atento ao debate e caminha para a solução legislativa da matéria, registrando-se a existência de Projetos de Lei a respeito, entre os quais os Projetos de Lei 1151/95, 52/99, 580/07 e 2285/07, referidos pelo voto da E. Relatora.

    “É bom lembrar, ademais, que no âmbito legislativo serão oportunas as reflexões e a disposição legal a respeito de consequências e limites da eventual admissão da união estável homoafetiva, pois, a matéria, envolve não apenas a tese central da admissibilidade, ou não, da união estável homoafetiva, mas também de seus requisitos e consequências, inclusive, eventualmente, o alcance no tocante a direitos e deveres e a transmissão patrimonial “causa mortis”, sobre que, aliás, se controverte nestes autos- e desde quando, ou em que tempo gerados direitos.

    “Fica a pergunta: se o debate já está no Supremo Tribunal Federal e no Poder Legislativo, por quê atropelá-lo, no âmbito infra-constitucional? Melhor, sem dúvida, o aguardo, por esta Corte, para que, das instâncias últimas da normatividade legislativa constitucional, venha a segurança jurídica para toda a sociedade brasileira, especialmente para a garantia do maior respeito aos seres humanos diretamente atingidos por suas consequências concretas.

    “13.- Os paradigmas trazidos a contrastamento são diversos do caso presente �- bastando ver, aqui, a presença da questão sucessória, de modo que não há como amparar o Recurso Especial com fundamento na letra “c” do dispositivo constitucional.

    “14.- Pelo meu voto, rogando venia ao entendimento da E. Ministra Relatora, nega-se provimento ao Recurso Especial.”

    8.- Além dos fundamentos constantes em meu voto acima referido, de justiça ajuntar os fundamentos alinhados pelo parecer da Procuradoria, oferecido nestes autos pelo E. Subprocurador-Geral JOSÉ BONIFÁCIO BORGES DE ANDRADA, os quais afastam, com irrespondível segurança, os argumentos fundados em pretensa existência de lacuna na lei, quando, ao contrário, a lei, em vez de possuir lacuna, na realidade regula, expressamente, em sentido contrário à admissibilidade da união estável homoafetiva no Direito Brasileiro, além de aduzir outros fundamentos da maior relevância, inclusive a lição do Prof. MIGUEL REALE, coordenador da elaboração do vigente Código Civil, como segue (fls. 705/712):

    “4.- Para o recorrente, o Tribunal a quo violou os arts. 1723 do Código Civil, 1º da Lei 8.971/94 e 1º da Lei nº 9278/96, uma vez que reconheceu como união estável a união entre pessoas do mesmo sexo, sendo que os dispositivos trazem como requisito de seu reconhecimento a convivência familiar entre um homem e uma mulher.

    “5. Conforme alega o recorrente, de fato não é possível o enquadramento da união entre duas pessoas do mesmo sexo como união estável. Os arts. 226, § 3º, da Constituição Federal e 1723 do Código Civil são explícitos em exigir como um dos requisitos para o reconhecimento da união estável que esta se dê entre um homem e uma mulher, não havendo que se cogitar de lacuna na legislação quanto a este aspecto.

    "6. Com efeito, está previsto que as partes se o desejarem poderão ter a sua união estável convertida em casamento. Ora o Código Civil o tempo todo deixa claro e expresso que ambos os institutos só podem se dar entre homem e mulher. Assim está afirmado no art. 1.723: ... 'entre o homem e a mulher' ..., e repetido no art. 1.727 e quanto ao instituto do casamento, no qual a união estável se espelha no art. 1.514 a lei é textual: 'o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher, manifestam perante o juiz, a sua vontade' ... diante da lei em vigor e da constituição da república a união estável de pessoas do mesmo sexo é tão impossível juridicamente quanto o seu casamento.

    "7. Não há qualquer lacuna na lei, ao contrário há uma vontade expressa e clara da lei e do legislador de que tanto o instituto do casamento como o da união estável somente tenha lugar entre homem e mulher. O legislador não 'esqueceu' de tratar da união estável entre pessoas do mesmo sexo - diversamente não se está a falar do Código de 1917, mas do Código de 2002, quando votado e promulgado, estas questões foram bem debatidas e já eram bem conhecidas - o legislador fez esta opção, tanto o civil como o constituinte. Não há lacuna na lei. 8. Com efeito, apenas, para recordar algumas iniciativas legislativas rejeitadas neste sentido o deputado José Genoíno apresentou emenda neste sentido ao projeto de constituição de 1988 que fora rejeitado. Em 1995 a deputada Marta Suplicy não logrou aprovação do projeto de Lei 1.151; por ocasião da elaboração do Código Civil em vigor o tema voltou à discussão e foi rejeitado pelo Congresso. Mais recentemente o deputado Cândido Vaccarezza apresentou o projeto 647/2007, que visava instituir a união estável entre pessoas do mesmo sexo não logrando também aprovação. Apenas estes para citar a título de exemplo de quantas vezes esta matéria tem sido discutida e vencida no âmbito legislativo.

    9. Não há omissão do legislador que fez uma opção clara, data vênia. O fato de não se gostar da opção feita pelo legislador não permite dizer que ele foi omisso quando fez as escolhas com clareza e as inseriu na lei. O casamento e a união estável são os dois únicos contratos em que o constituinte e o legislador civil estabeleceram que só podem ser celebrados por duas pessoas de sexos diferentes: um homem e uma mulher. Em relação a todos os demais não estabeleceu nenhuma restrição desta natureza. Foi uma restrição afirmativa e intencional, data venia. Se se gosta ou não destas restrições é um outro tema. De resto houvesse a omissão legislativa um mandado de injunção já teria sido decidido pelo STF para exigir do legislador a regulamentação da matéria.

    10. O Prof. MIGUEL REALE - Supervisor e Coordenador da Comissão Elaboradora e Revisora do Novo Código Civil, em conferência proferida em 7 de abril de 2003 no Tribunal de Contas do Município de São Paulo - dá um verdadeiro testemunho histórico do processo legislativo e relata como tema foi proposto e rejeitado pelo Congresso Nacional nos trabalhos de redação do Código atual de modo a espancar qualquer sombra de dúvida a respeito da vontade do legislador e da lei:

    '... 'Graças a essa Resolução, e o Código se acelerou, repentinamente, com emendas sobretudo em matéria de Direito de Família, de maneira que quando, à boca pequena, se declara que o Código já nasceu velho está se dizendo uma grande tolice, como se durante os 26 anos de elaboração o Código tivesse permanecido parado, quando após as 1069 emendas da Câmara e as 400, mais ou menos, do Senado, incluindo as propostas por Josaphat Marinho, como Relator Geral, não tivesse a força de uma crescente atualização. Na medida em que o tempo passava nós íamos atualizando, graças ao contato direto de Josaphat Marinho com quem vos fala e com que o Ministro Moreira Alves, na parte relativa ao Direito, no tocante à Parte Geral do Código.

    Estamos assim já na fase final, em que houve várias sugestões, inclusive no sentido, por exemplo, de estender a união estável aos homossexuais masculinos ou femininos. Isso é um absurdo porquanto a Constituição é muito clara ao definir união estável como uma nova entidade familiar resultante da união de um homem e de uma mulher. Se a Constituição fala de união estável do homem e da mulher, o legislador ordinário nela não pode incluir os homossexuais, que eu tenho a impressão que para muita gente, o casamento é uma instituição superada.

    Saliento, todavia, que a própria Constituição declara que a união estável deve ser considerada pelo legislador sempre no sentido dela se transformar em casamento. A união estável não é, no mais das vezes, senão um casamento de experiência. É que os jovens de nossos dias não têm confiança em si mesmo ou no seu co-relacionamento e preferem ter um casamento experiencial e para depois transformá-lo em casamento, como aliás tem acontecido.”¹ ( A Reforma do Código Civil Repercussões na Administração Pública e no Controle Externo.)

    "11. Mais, recentemente na França, autoridade constitucional máxima do país, endossou a proibição do casamento de pessoas do mesmo sexo alegando que o veto segue as determinações do Código Civil e da Constituição. A legislação francesa, como a brasileira, considera o casamento de pessoas do mesmo sexo ilegal. O pronunciamento do órgão não permite que o Legislativo avalie uma lei de união de pessoas do mesmo sexo.

    "12. O Conselho Constitucional francês considerou que não existe discriminação na lei que estabelece que o matrimônio é a união de um homem e uma mulher e que cabe ao Parlamento modificar esta lei se considerar necessário legalizar a união de casais do mesmo sexo. Ou seja a matéria é de 'lege ferenda', como ocorre também no nosso ordenamento.

    "13. Em sua decisão, o Conselho Constitucional anotou que os parlamentares franceses concordaram que “ a diferença em situações de casais do mesmo sexo e casais formados por um homem e uma mulher pode justificar a diferença de tratamento concernente aos direitos da família”. O Conselho afirmou que não lhe cabe substituir a apreciação dos congressistas, mas apenas decidir se uma lei é ou não constitucional.

    "14. De resto também não há falar-se em violação de direitos humanos. A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” adotada pela ONU em 1948 é textual no seu Artigo XVI :

    '1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm como o direito de contrair matrimônio e fundar uma família.

    "15. Relevante notar que é o único artigo que se refere a “homem e mulher” para distinguir de todos os demais onde a mesma Declaração se refere de modo genérico a todo o gênero humano com as expressões"pessoa” ou “ninguém”. O artigo XVI da Declaração é o único que não se refere a “toda pessoa' mas especificamente ao homem e à mulher.

    "16. De igual modo o “Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”, de 1966, da ONU, e introduzido no direito brasileiro pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, é textual no seu artigo 23:

    "2. Será reconhecido o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, contrair casamento e construir família.

    "17. Da mesma forma este é o único dispositivo do Pacto que não se refere à generalidade humana com as expressões 'ninguém' ou 'toda pessoa'. Mas especifica e expressamente 'homem' e 'mulher'.

    "18. Tanto o Pacto como a Declaração em nenhum outro dispositivo voltam a falar em 'homem' e 'mulher' especifica e separadamente, para enumerar os direitos humanos.

    "19. No entanto, ainda que não se possa falar em união estável no caso, é possível o enquadramento da convivência de fato de duas ou mais pessoas �- sejam do mesmo sexo ou não, e independente das suas preferências sexuais �- como sociedade de fato, fazendo-se a divisão do patrimônio construído em comum, conforme foi decidido pelo Tribunal de origem. Nesse sentido, encontra-se o seguinte precedente dessa E. Corte:

    "DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES. GUARDA E RESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA. '1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações. '2.- A existência de filho de uma das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele 'munus', sem questionamento por parte dos familiares. 3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados �- arts. e da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família. '4. Recurso especial não conhecido. (REsp 502995/RN, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 26/04/2005, DJ 16/05/2005, p. 353)'

    "20. Verifica-se que, com base nas provas dos autos, o Tribunal a quo entendeu que restou demonstrado o esforço do recorrido para a aquisição do patrimônio comum. Nesse sentido, veja-se o seguinte trecho do acórdão recorrido.

    " Quanto à alegação de inexistência de direito à meação por falta de comprovação pelo autor de sua contribuição individual para construção do patrimônio comum, a sentença também não merece reparo, já que demonstrado o esforço comum e a existência da relação de 1998 a 2006. (fls. 564/565e)

    "21. Assim, deve ser provido o recurso para afastar a hipótese de união estável por ilegal e inconstitucional, permitindo-se a divisão patrimonial com base no direito das obrigações conforme se apurar em liquidação por se tratar de uma sociedade de fato.

    "22. Ou seja, a divisão do patrimônio comum ocorrerá porque ficou demonstrado nos autos a existência de uma sociedade de fato e não de uma união estável, já que este instituto exige presença e o acordo de vontades de um homem e de uma mulher para se configurar, na forma da lei e da constituição.

    "É o que parece, data venia.

    9.- A título de ilustração, veja-se que a Corte Constitucional alemã jamais reconheceu a validade de união estável homossexual, mas, ao contrário, interpretando o mandamento da igualdade (Gleichheitsgebot, Art. 3º GGz, a Constituição Alemã) a legislação especial de regência, concluiu que a espécie configura uma outra situação, diferente da união “tradicional”, relativa à união pelo casamento ou não entre o homem e a mulher, outorgando, à união homossexual, proteção no tocante a tributos e patrimônio, mas não afirmando a união estável homossexual equiparada a casamento (ver várias decisões da Corte Constitucional em http://www.bverfg/de/entscheidungen/ls20020717_1bvf000101.html e, ainda, cf. KARLHEINZ MUSCHELER, “Das Recht der Eingetragenen Lebenspartnerschaft”, Erich Schmidt Verlag, Berlin, 2001, p. 34, 51, passim).

    10.- Pelo exposto, pelo meu voto, nega-se provimento ao Recurso Especial, mantendo-se o afastamento de reconhecimento de união estável homoafetiva, como instituto de Direito de Família, mas confirmando a existência de sociedade de fato, como Direito Obrigacional, para efeitos patrimoniais, e determinando-se a partilha patrimonial à razão de 50%, nos termos da conclusão do julgado pelo Tribunal de origem, sem alteração quanto à sucumbência.

    MINISTRO SIDNEI BENETI

    VOTO

    O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):

    Srs. Ministros, essa matéria ficou bem concentrada na questão da qualificação jurídica dessa relação: se é união homoafetiva ou sociedade de fato.

    Há um recurso afetado, por esta Turma, à Segunda Seção, em que está se discutindo exatamente isso, e já iniciou a votação e pende, apenas, de pedido de vista do Sr. Ministro Raul, que ainda não o trouxe.

    E eu também tenho um pedido de vista nesta Turma, que é a mesma questão.

    Tenho que, enquanto não resolvida a questão na Segunda Seção, penso que não é possível concluirmos o julgamento nesse sentido, e exatamente por isso, estou pedindo vista dos autos.

    VOTO-VISTA

    O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO:

    Eminentes colegas.

    Pedi vista dos autos em função da afetação para a Segunda Secção do julgamento do Recurso Especial nº 1.085.646/RS, relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, em que se discutia o mesmo tema, tendo sido iniciado o julgamento no mês de fevereiro e concluído na sessão do dia 11 de maio de 2011, reconhecendo-se, por maioria, a união homoafetiva como entidade familiar e determinando-se a aplicação, por analogia, do mesmo regime jurídico da união estável até ulterior deliberação do Congresso Nacional.

    Acrescento apenas que este voto já estava pronto antes do julgamento pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal da ADI nº 4277/DF e da ADPF nº 132/DF, na sessão plenária de 05 de maio de 2011, em que, por unanimidade, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, superando o óbice do § 3º do art. 226 da CF/88.

    Esse histórico precedente, alcançado por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar, acaba por afirmar a existência de uma lacuna na legislação infraconstitucional, cuja supressão compete a esta Corte.

    Assim, a polêmica do presente processo situa-se exatamente em estabelecer o regime jurídico aplicável às uniões homoafetivas no Direito brasileiro.

    A matéria não é nova nesta Corte, tendo sido admitida, em tese, no julgamento do Recurso Especial n. 820.475/RJ.

    O presente caso, porém, vai além, pois busca estabelecer os efeitos concretos da proteção jurídica a ser conferida à união homoafetiva no que tange à partilha de bens.

    A controvérsia reside em estabelecer o regime jurídico a ser utilizado na partilha dos bens adquiridos na constância da união homoafetiva.

    Os excelentes votos que me antecederam aparentemente chegaram a um resultado semelhante quanto ao resultado final.

    Há uma profunda divergência, entretanto, quanto aos seus fundamentos, especialmente quanto ao regime jurídico a ser utilizado.

    A questão deve ser resolvida à luz do Direito Família, como pretende a Ministra Nancy, aplicando analogicamente o regime jurídico da união estável? Ou a questão deve ser resolvida com base nas regras gerais do Direito Civil relativas à sociedade de fato?

    O grande óbice à atribuição de efeitos à união homoafetiva no âmbito do Direito de Família, agora superado pela histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, seria o enunciado normativo do § 3º do art. 226 da CF/88, verbis:

    Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

    § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

    Concordo plenamente com a decisão de nossa Corte Constitucional.

    A interpretação literal desse enunciado normativo aparentemente conduziria à impossibilidade jurídica de reconhecimento da união homoafetiva no âmbito do Direito de Família.

    Pondere-se, porém, que, na hermenêutica jurídica, o método literal é apenas o início da interpretação de um enunciado normativo, devendo-se prosseguir com a utilização de outros métodos para se alcançar a regra de direito aplicável a um determinado caso.

    No caso, a construção dessa regra de direito deve partir de uma interpretação histórica, sistemática e teleológica da regra constitucional, já que a Constituição Federal é um sistema dinâmico de normas e valores, não se podendo parar o processo interpretativo no texto estático de apenas um dos seus enunciados elaborado há mais de vinte anos.

    Miguel Reale, em sua teoria tridimensional do direito, lembrava que o direito é fato, valor e norma, enfatizando que essa visão tridimensional aplica-se não apenas ao legislador, quando elabora as leis, mas também ao juiz quando as aplica.

    Mais, as regras colocadas no ordenamento jurídico não são estáticas, mas dinâmicas, devendo ser atualizadas para atender às novas demandas sociais, pois os fatos sociais insistem em não se amoldar à moldura rígida das normas jurídicas.

    A missão da jurisprudência é exatamente estabelecer essa sintonia entre os novos fatos e o direito ao longo do tempo sem exigir uma interferência constante do legislador.

    No caso em questão, deve-se ponderar que a noção de família, antes de ser um conceito jurídico, é um fato social em constante evolução no tempo e no espaço.

    Nesse ponto, quanto à evolução dos fatos e dos valores sociais acerca desse delicado tema, os minuciosos votos dos eminentes colegas praticamente esgotaram a matéria.

    A Ministra Nancy, em seu voto, chamou a atenção para a nossa atual realidade em que temos diversos modelos de famílias, convivendo harmonicamente dentro da sociedade.

    O Ministro Massami, em seu voto na Terceira Turma, chamou a atenção para os aspectos históricos das uniões homoafetivas.

    O Ministro Benetti centrou-se no Direito comparado, destacando decisão recente da Corte Constitucional francesa.

    Penso que, no aspecto histórico, é importante destacar, ainda, a evolução do Direito de Família nos últimos quarenta anos, abrangendo o período anterior e posterior à Constituição Federal de 1988, sendo, aliás, a dimensão temporal da nossa experiência jurídica.

    O CC/16 adotava uma posição bastante conservadora centrada na família tradicional, não admitindo nem mesmo o divórcio, apenas o chamado desquite, com todo o preconceito que envolvia as pessoas desquitadas.

    Em 1977, após a flexibilização do quórum legislativo para as emendas constitucionais, admitiu-se, mediante Emenda Constitucional do Senador Nelson Carneiro, o divórcio no Brasil.

    A introdução do divórcio no Brasil sempre teve grande resistência dos setores mais conservadores da sociedade, pois poderia determinar o esfacelamento da família brasileira.

    Em seguida, foi editada a chamada Lei do Divórcio (Lei n. 6515/77), que se constituiu em importante instrumento de modernização do Direito de Família brasileiro.

    A preocupação, então, passou a ser com o concubinato, ensejando acaloradas discussões jurisprudenciais, como a presente, acerca do regime jurídico a ser utilizado, culminando com a edição de súmula pelo STF (Súmula nº 380: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum).

    A Constituição Federal de 1988, buscando superar essas discussões, mediante o enunciado normativo do § 3º do art. 226, deixou claro que o concubinato, que passou a ser chamado posteriormente de união estável, era uma entidade familiar e deveria receber proteção do Estado semelhante à conferida ao casamento tradicional.

    Em seguida foi editada a Lei nº 8971/94, seguida da Lei nº 9278/96, regulando os efeitos jurídicos da união estável.

    Naturalmente, as discussões prosseguiram, afirmando-se que não havia mais necessidade do casamento, pois a união estável conferia mais direitos aos companheiros, entregando-se à jurisprudência a solução de delicadas questões relativas à união estável, que têm chegado, com frequência, a esta Corte.

    Nesse contexto, entrou em vigor o CC/2002, que não trouxe nenhuma contribuição significativa para a tema em questão.

    Tomei a liberdade de fazer esse breve retrospecto da histórica recente do Direito de Família brasileiro para relembrar que as discussões jurídicas, decorrente dos preconceitos sociais, têm sido uma marca nesse delicado campo, em face da carga ideológica que se liga à aceitação dos novos modelos de entidades familiares.

    Foi assim com o desquite, com o divórcio, com o concubinato, com a união estável e está sendo agora com a união homoafetiva.

    A discussão do momento é o regime jurídico da união homoafetiva, também marcada por uma imensa carga de preconceito social, que somente agora começa ser atenuado pela sociedade brasileira.

    Isso explica o silêncio da Constituição Federal de 1988 em relação às uniões homoafetivas.

    O importante, porém, é que a CF, em momento algum, proíbe a proteção a outras modalidades de entidades familiares, como as união homoafetivas.

    Mais, em uma interpretação sistemático-teleológica da Constituição Federal, especialmente à luz da tutela conferida aos direitos fundamentais, verifica-se que não há qualquer incompatibilidade com os seus princípios fundamentais.

    Pelo contrário, não se discute que a união homoafetiva é uma relação perfeitamente lícita em nosso sistema jurídico, havendo apenas uma lacuna em torno da sua regulamentação.

    A Constituição Federal, em seu Preâmbulo, já deixa claro os grandes valores balizadores da nossa ordem social, econômica e jurídica, verbis:

    Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

    Portanto, o legislador constituinte deixou claro que formamos um Estado Democrático de Direito, enfatizando tratar-se de uma sociedade democrática, fraterna, pluralista e sem preconceitos, devendo-se, consequentemente, respeitar as diferenças entre as pessoas e os grupos sociais.

    Esse preâmbulo ajuda a compreender o enunciado do art. 1º que, ao indicar os princípios fundamentais desse Estado Democrático de Direito, conferiu uma especial ênfase à dignidade da pessoa humana:

    Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

    I - a soberania;

    II - a cidadania;

    III - a dignidade da pessoa humana;

    IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

    V - o pluralismo político.

    E, em seu art. 5º, ao elencar a ampla gama de direitos e garantias individuais, assegurou a igualdade de todos perante a lei, vedando qualquer discriminação por idade, cor, sexo, religião etc.

    Assim, o enunciado do art. 226 deve ser interpretado à luz desses valores e princípios constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana.

    Em sede doutrinária, tive oportunidade de realizar breve estudo acerca do princípio da dignidade da pessoa humana por ocasião da pesquisa desenvolvida para minha Tese de Doutorado (Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 113).

    O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor maior de uma ordem jurídica é fruto de lenta evolução histórica que perpassou pelos planos religioso e filosófico até alcançar consagração no plano jurídico com a sua positivação como norma fundamental nas principais constituições contemporâneas.

    A dignidade da pessoa humana constitui, entretanto, conceito com contornos indefinidos, desafiando filósofos, teólogos e juristas a tentar estabelecer o seu conteúdo.

    Na religião, a idéia de dignidade humana está presente na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, pois, tendo sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus, possui um valor próprio, “que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento” (SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 103).

    Tércio Sampaio Ferraz afirma que “a personificação do homem foi uma resposta cristã à distinção, na Antigüidade, entre cidadãos e escravos”, acrescentando que, “com a expressão pessoa obteve-se a extensão moral do caráter de ser humano a todos os homens considerados iguais perante Deus” (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 155).

    Agostinho, com a filosofia patrística, estabelecendo uma síntese entre as culturas greco-romana e judaico-cristã, afirma a noção da pessoa como subjetividade, dotada de um valor em si mesma.

    Tomás de Aquino faz expressa referência a uma dignitas humana, como uma dignidade pessoal atribuída a cada indivíduo, ressaltando não apenas a sua relação com Deus, mas também a autodeterminação de cada pessoa, ou seja, a necessidade de que cada um tenha uma ação compatível com essa dignidade.

    Na Renascença, o filósofo e humanista italiano Giovanni Pico della Mirandola, embora ainda mantendo o vínculo religioso, passa a ligar a dignidade da pessoa humana à racionalidade do homem e à sua capacidade de autodeterminação (SARLET, Ingo Wolgang. (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 31-32).

    A palavra dignidade (dignitas) foi historicamente associada, desde Roma, à honra pública, ao mérito, ao prestígio ou ao cargo, mas faltava estabelecer a sua ligação com a humanitas.

    Coube a Kant fazer essa ligação, estabelecendo os fundamentos filosóficos da noção moderna de dignidade humana, com a introdução do princípio da humanidade e a sua afirmação como imperativo prático: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. Estabelece a autonomia ética do ser humano como fundamento da dignidade da pessoa humana, que não pode ser tratado como objeto nem mesmo com o seu próprio consentimento. Afirma o filósofo que, “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade”, prosseguindo: “Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade” (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 69). \

    Kant complementa essa distinção entre preço e dignidade: O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento; aquilo, porém, que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade. Por isso, o homem nunca deve ser tratado como meio, mas como um fim em si mesmo (P. 77).

    A filosofia kantiana teve grande influência sobre os juristas alemães do século XIX e, particularmente, sobre Savigny a quem Larenz atribuiu a sua transposição para o Direito (WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 422).

    A valorização efetiva da dignidade humana, como princípio jurídico, entretanto, opera-se apenas após a Segunda Guerra Mundial, em decorrência das atrocidades e das graves violações dos direitos humanos cometidas no seu curso.

    Além da afirmação constante no Preâmbulo da Carta das Nações Unidas (“dignidade e valor do ser humano”) e, posteriormente, no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), aprovada pela ONU (“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”), a Constituição italiana, de 1947 (“Art. 3º - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opinião, política e condições pessoais e sociais.”) e a Lei Fundamental de Bonn, de 1949 (1.1 �- A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.” ), entre outras, consagram, expressamente, a dignidade humana como valor intangível.

    No Direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988, além de consagrar a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), faz referência a ela, em vários momentos, como, na ordem social, a necessidade de ser ela respeitada nas políticas públicas relativas ao planejamento familiar (art. 226, § 6º) ou à proteção da criança e do adolescente (art. 227, caput), bem como, na ordem econômica, enfatizando que ela tem por finalidade assegurar uma existência digna (art. 170, caput).

    Essa consagração constitucional representa o reconhecimento pelo nosso ordenamento jurídico da dignidade da pessoa humana, na bela síntese de Judith Martins-Costa, “como valor-fonte que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico” (Pessoa, Personalidade, Dignidade: ensaio de uma qualificação. 2003. Tese (Livre- Docência) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003, p. 147 e 158).

    Assim, a dignidade da pessoa humana, fundada no homem como razão e vontade, é reconhecida definitivamente nos sistemas jurídicos modernos como valor-fonte, como fundamento, como conceito jurídico indeterminado e, finalmente, como princípio jurídico.

    Ressalte-se que não é o ordenamento jurídico que outorga o direito à dignidade humana, havendo apenas um reconhecimento da sua importância e da necessidade de sua proteção em sede constitucional.

    Por isso, não é apropriado dizer que exista um “direito à dignidade”, mas, sim, um “direito ao reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade, podendo falar-se de um direito a uma existência digna” (SARLET, Ingo Wolgang. (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 72).

    Assim, contrastando-se o enunciado do § 3º do art. 226 da CF/88 com os direitos fundamentais regulados pela própria Carta Magna, particularmente com a dignidade da pessoa humana, a conclusão é no sentido de que, na realidade, não se tem um óbice constitucional, mas uma lacuna em nossa legislação acerca do regime jurídico da união homoafetiva, conforme corretamente ponderado em seu voto pelo Min. Luis Felipe Salomão no julgamento da Segunda Seção.

    Assim, afastado o óbice constitucional, compete a esta Corte estabelecer, em sede infraconstitucional, como superar essa lacuna.

    Exige-se desta Corte a integração da ordem jurídica para evitar o chamado “non liquet”, fixando o regime jurídico aplicável às uniões homoafetivas.

    Na ausência de lei específica, a solução deve ser buscada mediante a utilização dos instrumentos de integração da ordem jurídica, insculpidos na Lei de Introdução ao Código Civil, que, em seu art. , estatui:

    Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

    A supressão dessa lacuna deve ser feita com a utilização da analogia, que, na dicção de Carlos Maximiliano, “consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. São Paulo; Saraiva, 1993, nº 238, p. 208).

    Aplica-se, em outras palavras, uma norma jurídica destinada a uma situação jurídica determinada para uma outra relação jurídica que não encontra positivação expressa no ordenamento jurídico.

    Na legislação brasileira, os diplomas normativos que permitem, por analogia, a regulamentação da união homoafetiva são exatamente aqueles que regulam a união estável, inicialmente a Lei nº 8971/94 e, posteriormente, a Lei nº 9278/96, além do art. 1723 do Código Civil de 2002.

    Não significa dizer que a união homoafetiva seja sinônimo de união estável.

    Pelo contrário, são modalidades distintas de entidades familiares em nossa sociedade, mas que têm como ponto comum o fato de estarem centradas no afeto entre os seus integrantes, conforme corretamente ponderado pelo Min. João Otávio de Noronha em seu voto no julgamento da Segunda Seção.

    Exatamente por isso é que não se pode utilizar simplesmente o regime jurídico da sociedade de fato para efeito de partilha dos bens, pois a união homoafetiva deve receber tratamento de entidade familiar, o que ela efetivamente é.

    Desse modo, os regimes jurídicos devem ser os mesmos até que o legislador brasileiro estabeleça uma legislação própria para a união homoafetiva.

    Assim, deve-se reconhecer que o regime jurídico atualmente aplicável às uniões homoafetivas é o mesmo da união estável até que o legislador brasileiro supra a lacuna existente em nosso ordenamento jurídico.

    Encerro lembrando a lição de Raymond Saleilles, em seu Prefácio à célebre obra de François Geny, um dos mestres da interpretação criativa do Código Civil francês, de 1804, quando, no final do Século XIX, preconizava que se deveria ir mais além do Código Civil, mas pelo Código Civil (SALEILLES, Raymond. Préface. In: GENY, François. Méthode D'interprétacion et Sources en Droit Privé Positif. Paris: Librairie Genérale de droit e jurisprudence, 1954. p. XXV).

    Saleilles, partindo da afirmação de Jhering (“Par le Code civil, mais au-delà du Code civil”), procurou cunhar uma frase que sintetizaria o pensamento de François Geny: “Au-delà du Code civil, mais par le Code civil” (“mais além do Código Civil, porém pelo Código Civil”).

    Plagiando a idéia, tenho que, passados mais de vinte anos de sua vigência, deve-se ir mais além da Constituição e de nossa legislação civil pela própria Constituição, utilizando-se como instrumento a sua própria doutrina de proteção dos direitos fundamentais, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana.

    Com essas considerações, pedindo vênia aos votos divergentes, acompanho integralmente o brilhante voto da eminente relatora.

    É o voto.

    VOTO

    O EXMO. SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) (Relator):

    Sr. Presidente, nessa linha, estou seguindo o posicionamento, com a vênia da sempre culta e brilhante Ministra Nancy Andrighi, do Sr. Ministro Beneti, lembrando, inclusive, o posicionamento do Sr. Ministro Massami Uyeda, de que há três categorias nessa matéria: categoria do casamento ou matrimônio, categoria da união estável e categoria da união homoafetiva, cada uma com suas características próprias.

    Faço minhas as palavras também do brilhante voto do eminente Ministro Sidnei Beneti, que trouxe legislação comparada, onde S. Exa. conclui que não há como se admitir a união homoafetiva nos mesmos termos da união estável, dado que a união estável compreende, segundo os termos constitucionais, a presença do homem e da mulher, o que não ocorre na união homoafetiva. E que essa matéria, ao ser decidida, finalmente, pelo parlamento, que é o normal, onde vai desaguar toda essa matéria, ou, eventualmente, pelo Supremo, como Corte constitucional.

    Assim que, nessa linha, pedindo novamente vênia à Sra. Ministra Nancy Andrighi, que trouxe, na sessão, um voto brilhantíssimo, não obstante a nossa divergência, estou acompanhando o eminente Ministro Sidnei Beneti.

    Em reforço a este posicionamento transcrevo aqui voto proferido quando do julgamento do REsp n.º 704.803/RS, de minha relatoria:

    "Consoante se infere dos autos, a Corte de origem, quando do julgamento de embargos infringentes, terminou por conferir, por meio de aplicação analógica à hipótese em apreço, reconhecimento de 'união estável' à relação homoafetiva havida entre o falecido E H K e o autor da demanda T M de S, ora recorrido, aplicando, por conseguinte, os efeitos patrimoniais daí decorrentes, notadamente aqueles relativos à partilha do patrimônio deixado por E H K.

    Ante a existência, in casu, de herdeiros necessários do falecido, coube, assim, ao autor, a meação do patrimônio acumulado em vida por E H K, restando dispensado o mesmo de comprovar terem sido, os bens em disputa, obtidos durante a união, como fruto do esforço comum dos supostos 'companheiros', haja vista o sabido fato de referida prova ser presumida quando se trata de união estável regida pela Lei n.º 9.278/96 e, atualmente regulada nos arts. 1.723 a 1.727 do Código Civil vigente.

    Cinge-se, assim, a controvérsia, a saber se, ao admitir, a Corte a quo, a aplicação analógica das normas que regem a União Estável (união entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família)à relação havida entre dois homens que, ao sentir daquele órgão julgador colegiado, guardaria com ela as mesmas peculiaridades, se estaria afrontando a inteligência dos arts. 1.363 do Código Civil de 1916 e 5.º da Lei n.º 9.278/96, bem como a interpretação dada por esta Corte Superior no julgamento de demandas semelhantes.

    Pugna, assim, o Ministério Público Estadual, ora recorrente, que se defina apenas como sociedade de fato a união homossexual supostamente havida na hipótese vertente. É exatamente neste particular que, como dito, tenho por merecedora de acolhida a tese sustentada pelo recorrente.

    Isto porque, esta Corte Superior, sob a ótica do direito das obrigações (art. 1.363 do CC/16) e da evolução jurisprudencial consolidada na Súmula 380 do STF, firmou entendimento, por ocasião do julgamento do REsp 148.897/MG, de relatoria do e. Min. Ruy Rosado de Aguiar, no sentido da possibilidade de ser reconhecida sociedade de fato havida entre pessoas do mesmo sexo, exigindo, para tanto, a demonstração do esforço comum para aquisição do patrimônio a ser partilhado. A repartição dos bens, sob tal premissa, deve acontecer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada um dos integrantes de dita sociedade. Confira-se a ementa do referido julgado:

    "SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM. O PARCEIRO TEM O DIREITO DE RECEBER A METADE DO PATRIMONIO ADQUIRIDO PELO ESFORÇO COMUM, RECONHECIDA A EXISTENCIA DE SOCIEDADE DE FATO COM OS REQUISITOS NO ART. 1363 DO C. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ASSISTÊNCIA AO DOENTE COM AIDS. IMPROCEDENCIA DA PRETENSÃO DE RECEBER DO PAI DO PARCEIRO QUE MORREU COM AIDS A INDENIZAÇÃO PELO DANO MORAL DE TER SUPORTADO SOZINHO OS ENCARGOS QUE RESULTARAM DA DOENÇA. DANO QUE RESULTOU DA OPÇÃO DE VIDA ASSUMIDA PELO AUTOR E NÃO DA OMISSÃO DO PARENTE, FALTANDO O NEXO DE CAUSALIDADE. ART. 159 DO C. CIVIL. AÇÃO POSSESSORIA JULGADA IMPROCEDENTE. DEMAIS QUESTÕES PREJUDICADAS. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E PROVIDO." (REsp 148897/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 10/02/1998, DJ 06/04/1998, p. 132)

    Em julgado mais recente, a Eg. 3.ª Turma desta Corte Superior, emprestou à demanda análoga a que ora se afigura a mesma solução encontrada pela 4.ª Turma desta Corte superior quando do julgamento do feito supra mencionado, destacando que 'a aplicação dos efeitos patrimoniais advindos do reconhecimento de união estável a situação jurídica dessemelhante, viola texto expresso em lei, máxime quando os pedidos formulados limitaram-se ao reconhecimento e dissolução de sociedade de fato'. Referido aresto, da lavra da e. Min. Nancy Andrighi, então relatora do feito, recebeu a seguinte ementa:

    'Direito civil. Ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo. Efeitos patrimoniais. Necessidade de comprovação do esforço comum.

    - Sob a ótica do direito das obrigações, para que haja partilha de bens adquiridos durante a constância de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, é necessária a prova do esforço comum, porque inaplicável à referida relação os efeitos jurídicos, principalmente os patrimoniais, com os contornos tais como traçados no art. da Lei n.º 9.278/96.

    - A aplicação dos efeitos patrimoniais advindos do reconhecimento de união estável a situação jurídica dessemelhante, viola texto expresso em lei, máxime quando os pedidos formulados limitaram-se ao reconhecimento e dissolução de sociedade de fato, com a proibição de alienação dos bens arrolados no inventário da falecida, nada aduzindo a respeito de união estável.

    Recurso especial conhecido e provido.' (REsp 773136/RJ, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2006, DJ 13/11/2006, p. 259)

    Também nesta esteira, faz-se oportuna a colação, à guisa de exemplo, dos seguintes precedentes oriundos desta Corte Superior:

    'RECURSO ESPECIAL. RELACIONAMENTO MANTIDO ENTRE HOMOSSEXUAIS. SOCIEDADE DE FATO. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE. PARTILHA DE BENS. PROVA. ESFORÇO COMUM.

    Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pessoas do mesmo sexo configura sociedade de fato, cuja partilha de bens exige a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado.

    Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.' (REsp 648763/RS, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 07/12/2006, DJ 16/04/2007, p. 204)

    'DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES. GUARDA E RESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA.

    1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações.

    2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele munus, sem questionamento por parte dos familiares.

    3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados - arts. e da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família.

    4. Recurso especial não conhecido.' (REsp 502995/RN, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 26/04/2005, DJ 16/05/2005, p. 353)

    Destarte, sendo certo que a situação do autor da demanda e de seu suposto companheiro falecido, quando muito, configuraria constituição de sociedade de fato, não se lhe podendo, assim, estender os efeitos decorrentes da União Estável e, resultando evidente dos autos que, sob esta ótica, não foi a demanda apreciada pela Corte de origem no tocante à comprovação de esforço comum na formação do patrimônio supostamente amealhado por ambos, impõe-se o retorno dos autos àquela Corte."

    É como voto.

    • Publicações9072
    • Seguidores218
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações4118
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/jurisprudencia-stj-direito-civil-familia-acao-de-reconhecimento-de-uniao-homoafetiva-post-mortem-divisao-do-patrimonio-adquirido-ao-longo-do-relacionamento/2894770

    Informações relacionadas

    Jus Petições, Estudante de Direito
    Modeloshá 3 anos

    [Modelo] Reconhecimento União Estável post mortem

    Freelancer Jurídico, Advogado
    Modeloshá 2 anos

    [Modelo] Ação de Reconhecimento e Dissolução de União Estável Cumulada com Partilha de Bens

    Petição Inicial - TJSP - Ação Declaratória de Reconhecimento Post Mortem de Paternidade Socioafetiva com Efeitos Pessoais e Patrimoniais - Inventário

    Tribunal de Justiça de Goiás
    Notíciashá 16 anos

    Juíza nega pedido de vínculo socioafetivo pós-morte

    Flávia Ortega Kluska, Advogado
    Notíciashá 7 anos

    Reconhecimento de união estável após a morte: como fazer?

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)