Busca sem resultado
Alienação Fiduciária de Bens Imóveis - Vol. X - Ed. 2022

Alienação Fiduciária de Bens Imóveis - Vol. X - Ed. 2022

Capítulo 4. Elementos Estruturantes da Propriedade Fiduciária

Entre no Jusbrasil para imprimir o conteúdo do Jusbrasil

Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro

Sumário:

4.1. Relação jurídica complexa

Como em toda relação jurídica, na alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, é fundamental conhecer quais são os seus elementos estruturantes, a saber: sujeitos, objeto e forma.

Há de considerar, primeiro, que a alienação fiduciária de bens imóveis é diuturnamente utilizada no mercado imobiliário sob uma situação jurídica modelo: o proprietário (vendedor) aliena o imóvel para o adquirente (comprador); este comprador, para pagar o preço da compra e venda, recorre a terceira pessoa (normalmente uma instituição financeira) para levantar o montante necessário à aquisição imobiliária, ou seja, entabulam novo contrato, no caso, o financiamento (mútuo).

Note-se a complexidade do negócio arquétipo: tem-se a presença simultânea de três contratações típicas: a compra e venda, o mútuo, e a alienação fiduciária.

Evidentemente, por se tratar de contratos típicos, apesar de apresentarem-se no mesmo contexto de negociação, conquanto umbilicalmente ligados, são relações jurídicas autônomas. Assim, a compra e venda rege-se pelas regras dos arts.  481 a 504 do Código Civil , o mútuo pelos arts.  586 a 592 do Código Civil e a alienação fiduciária imobiliária pelos arts.  22 e seguintes da Lei 9.514/1997 . 1

Ainda em sede preambular, é fundamental compreender que a alienação fiduciária de bens imóveis não necessariamente estará sempre vinculada à aquisição imobiliária. É perfeitamente possível que determinada pessoa simplesmente almeje levantar financiamento perante determinada instituição financeira e aliene fiduciariamente um imóvel de sua propriedade em garantia do empréstimo.

Nada impede, assim, que a propriedade fiduciária incida sobre bens que, mesmo antes do financiamento, já pertenciam ao próprio devedor. Para ilustrar, concretamente, seria a hipótese de um empresário que necessita de recursos para prosseguir em sua atividade, mas não quer obtê-lo pela via habitual do sistema financeiro. Assim, poderá utilizar-se do instituto da alienação fiduciária, transferindo ao credor a propriedade de determinado imóvel, sem que com isso prescinda da posse imediata da coisa, que antes lhe pertencia e, assim, poderá obter juros mais atraentes em razão da segurança jurídica fornecida ao credor, já que em caso de inadimplemento, bastará ao fiduciário executar a garantia, alienando o bem que passou a lhe pertencer.

Em relevante julgado, o Superior Tribunal de Justiça bem esclareceu a questão em que se discutia a “possibilidade ou não de constituição de alienação fiduciária de bem imóvel para garantia de operação de crédito desvinculada da função de financiamento imobiliário”. 2

Curiosamente, sobre a celeuma, o Tribunal de origem havia concluído que o “instituto da alienação fiduciária de bens imóveis somente poderia ser utilizado em crédito destinado à aquisição, edificações ou reformas do imóvel oferecido em garantia”. Isso porque, no seu entender, a finalidade da Lei 9.514/1997 é proteger o sistema imobiliário e o de habitação como um todo, de modo que a constituição de garantia fiduciária sobre bem imóvel deve estar em sintonia com o objetivo da lei, que é o incentivo ao financiamento imobiliário.

Em precioso voto, o relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou que o entendimento do Tribunal não encontra respaldo nos dispositivos legais que disciplinam a matéria (arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004):

Lei nº 9.514/1997

Art. 22. [...]

§ 1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI , podendo ter como objeto, além da propriedade plena:

Lei 10.931/2004 Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil , as obrigações em geral também poderão ser garantidas , inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel . (destacamos)

Explicou o ministro que “da leitura dos artigos em destaque, sem maior esforço hermenêutico, é possível afirmar que a lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio imóvel. Ao contrário, é legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros”. 3

Não há dúvidas de que, muito embora a alienação fiduciária de imóveis tenha sido introduzida no ordenamento jurídico pela Lei 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema Financiamento Imobiliário (SFI), seu alcance ultrapassa os limites das transações relacionadas à aquisição de imóvel.

Em sintonia, esta também é a exegese extraída por Melhim Namem Challub :

Presumivelmente, a aplicação da propriedade fiduciária de bens imóveis em garantia há de se fazer com mais frequência no mercado de produção e de comercialização de imóveis com pagamento parcelado, dado que é aí que se verifica a concessão de crédito imobiliário em maior escala. Isso não obstante, a lei que regulamenta essa garantia não tem sentido restritivo , permitindo, ao contrário, que a propriedade fiduciária de bem imóvel seja constituída para garantia de quaisquer obrigações , pouco importando o fato de ter sido regulamentada no contexto de uma lei na qual prepondera a regulamentação de operações típicas de mercados imobiliário, financeiro e de capitais. São nesse sentido as disposições do § 1º do art. 22 da Lei nº 9.514/1997, pelo qual a alienação fiduciária pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no sistema de financiamento imobiliário, e o art. 51 da Lei nº 10.931/2004, que permite a constituição da propriedade-fiduciária para garantia de quaisquer obrigações, em geral. 4

Resta indubitável, portanto, que a finalidade do instituto é o de fomentar o sistema de garantias do direito brasileiro, dotando o ordenamento jurídico de instrumento que permite sejam as situações de mora, tanto nos financiamentos imobiliários como nas operações de créditos com garantia imobiliária, recompostas em prazos compatíveis com as necessidades da economia moderna. 5

Desse modo, no caso concreto, o fato de a avença ter sido firmada com propósito de mútuo bancário, por si só, não torna ilegítima a instituição da garantia fiduciária de bem imóvel, pois não existe nenhuma vedação legal que impeça a utilização de tal modalidade de garantia em contratos que não dizem respeito à aquisição, à construção ou à reforma de imóvel, tampouco seria justa causa para a suspensão do processo extrajudicial de que cuidam os arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997.

Demais disso, cumpre enfatizar que é pacífico no Superior Tribunal de Justiça , por meio da Súmula 28 , que “o contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor”.

Admitem-se, destarte, quaisquer operações em que se possa transmitir a propriedade de coisa imóvel para garantia de operação de crédito de toda natureza, e não somente para garantia do financiamento utilizado na aquisição do imóvel, tal como ocorre, por exemplo, com um empréstimo comum com garantia hipotecária. Nessa situação, o conjunto de contratos de empréstimo e de alienação fiduciária terá somente duas partes: o devedor e o credor, pois aquele alienará fiduciariamente um imóvel que já era de sua propriedade ao tempo em que tiver tomado o empréstimo.

Por último, é de se admitir também a possibilidade de alienação fiduciária efetivada por terceiro, alheio à operação principal de empréstimo, como nas hipóteses em geral de prestação de garantia por terceira pessoa que não o devedor.

4.2. Sujeitos

Considerando a situação mais comum, qual seja, a alienação fiduciária de bens imóveis para constituição de garantia de financiamento, deverão figurar como sujeitos da relação jurídica contratual o devedor fiduciante, proprietário do imóvel a ser transmitido com escopo de garantia, e o credor fiduciário, aquele que tem um crédito contra o devedor fiduciante e, em garantia do pagamento, receberá a propriedade fiduciária do imóvel.

Eventualmente, é possível figurar ainda um terceiro, na condição de garantidor, como é o caso do fiador.

Negócio jurídico que é, o contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis deve seguir todos os planos da análise do negócio jurídico, estruturados na parte geral do Código Civil .

Mais do que isso.

Tratando-se de negócio jurídico que encerra a transmissão da propriedade imobiliária do devedor fiduciante ao credor fiduciário, e, em sequência, realizada a condição (rectius : a quitação da dívida), a reversão da propriedade para o fiduciante, 6 as partes devem possuir capacidade e legitimação para alienar. Em outras palavras, o fiduciante – o tomador do empréstimo, ou seja, aquele que aliena o imóvel ao fiduciário, com escopo de garantia – deve ser proprietário do imóvel, com poder de disposição, capacidade e legitimação para alienar. Por envolver disposição imobiliária, aplicam-se todas as regras pertinentes à alienação de imóvel.

Quanto à legitimidade para contratar a alienação fiduciária em garantia, deve-se deixar claro que a Lei 9.514/1997 autoriza a contratação da alienação fiduciária por toda e qualquer pessoa: ou seja, de modo generalizado, atribui-se legitimidade para contratação para qualquer pessoa física ou jurídica, sem qualquer restrição (art. 22, § 1º).

Aqui se deve assentar a intenção do legislador de fomentar o mercado imobiliário, em toda sua plenitude, de relevante instrumento de dinamização do crédito imobiliário e das atividades correlatas, fortalecendo o tráfico imobiliário e, ao fim e ao cabo, movimentando a economia.

Há ainda o nítido objetivo da Lei 9.514/1997 de dinamizar o funcionamento do mercado secundário de crédito imobiliário, padronizando as operações e tornando universal o seu acesso.

Equivale dizer, autorizou-se, fincando-se no desenvolvimento do mercado imobiliário – primário e secundário –, que qualquer operação de comercialização de imóveis, com pagamento diferido no tempo, parcelado, se submeta às mesmas condições autorizadas para as entidades que operem no Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). Colocou-se ao alcance dos particulares, assim, a contratação de seguros, a capitalização dos juros e os critérios e índices de reajuste monetário, entre outros mecanismos de fomento da atividade econômica.

Sabiamente, buscou-se equalizar o mercado imobiliário, traçando-se uma linha média. Harmonizaram-se as linhas de operação, viabilizando a homogeneidade dos créditos, permitindo-se, assim, a circulação com mais facilidade, agilidade, sem perder a segurança jurídica, sobretudo ao colocar à disposição de todos, célere procedimento extrajudicial de execução da garantia perante o importante e eficiente serviço de Registro de Imóveis.

A partir da concretização efetiva desses ideais, permitiu-se a captação de recursos em larga escala, potencializando o setor imobiliário como uma das principais pilastras da economia nacional. 7

4.2.1. O fiduciante

O fiduciante é o tomador do empréstimo, ou seja, aquele que aliena o imóvel ao fiduciário, com escopo de garantia.

Em princípio, deve o fiduciante ser o proprietário do imóvel, com poder de disposição, capacidade e legitimação para alienar. Por envolver disposição imobiliária, aplicam-se todas as regras pertinentes à alienação de imóvel. Desse modo, todas as regras atinentes ao contrato de compra venda podem ser transportadas, no que forem compatíveis, à contratação da alienação fiduciária em garantia.

Assim, por exemplo, o ascendente somente poderá alienar fiduciariamente determinado imóvel ao seu descendente se houver o consentimento expresso dos outros descendentes e do cônjuge do alienante, sob pena de anulabilidade (art.  496 do Código Civil).

Da mesma sorte, somente será lícita a alienação fiduciária entre cônjuges com relação a bens excluídos da comunhão (art.  499 do CC).

Assim, em linhas gerais, é perfeitamente possível considerar a aplicação do art.  1.420 do Código Civil 8 – dispositivo inserido no regime jurídico geral dos direitos reais de garantia – à alienação fiduciária de bens imóveis. Nessa senda, em termos de legitimidade, só aquele que pode alienar poderá dar o imóvel em alienação fiduciária em garantia.

4.2.1.1. O fiduciante casado

Como cediço, o casamento repercute diretamente na esfera jurídica patrimonial dos indivíduos que integram esse tradicional arranjo familiar. Nessa toada, o ordenamento jurídico nacional condiciona o exercício de certos atos da vida civil por um cônjuge à autorização do outro consorte.

A isso se denomina vênia ou outorga conjugal , gênero cujas espécies são a outorga uxória , 9 quando concedida pela mulher, e outorga marital , quando conferida pelo marido. A restrição, por óbvio, aplica-se a ambos os cônjuges, sem qualquer distinção entre marido e mulher, ensejando interpretação restritiva por se tratar de norma que limita o exercício de direito.

À guisa de reminiscência histórica, sabe-se que o instituto foi difundido, a priori , como outorga uxória, estando presente no ordenamento nacional desde os seus primeiros idos, mas sempre foi utilizada como forma de evitar a dilapidação do patrimônio do casal pelo marido. Ocorre que, nas sociedades paternalistas da época, como era o marido que dirigia os atos e negócios da família, a autorização era sempre da esposa. À evidência, após a Constituição de 1988, com a igualdade de direitos de homens e mulheres, tal diferenciação encerrou-se, e hoje o correto é tratar o tema em seu gênero, vênia conjugal, sendo, as espécies (uxória e marital, restritas aos gêneros a que se referem).

Feita a ressalva terminológica, cumpre, em passo seguinte, debruçar sobre o conteúdo do art. 1.647, I, do Código Civil que sentencia: “ressalvado o disposto no art. 1.648 [que trata do suprimento judicial da autorização], nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis”. 10

De pronto, pode-se observar que houve abrandamento no Código Civil de 2002 se comparado com o seu antecessor, já que, sob a égide do Código Civil de 1916, toda e qualquer pessoa casada, independentemente do regime de bens, necessitava da autorização do outro cônjuge para alienar bens imóveis.

Hoje, porém, há duas grandes exceções.

A primeira é a pessoa casada sob o regime da separação absoluta de bens, não necessitando esta de qualquer autorização de seu cônjuge para alienar ou gravar bens imóveis, conforme se denota do próprio caput do dispositivo em testilha.

A dicção legal “separação absoluta ” quer se referir à separação convencional de bens, regulada nos arts.  1.687 e 1.688 do Código Civil . Portanto, não se aplica ao regime da separação obrigatória (legal), afinal neste continua sendo aplicável a Súmula 377 do STF . 11 Em suma: a vênia conjugal é exigível no regime de separação obrigatória e dispensável na separação convencional (ou absoluta). 12

Convém ressalvar ad cautelam que, mesmo que casados sob o regime da separação absoluta, se a aquisição imobiliária tiver sido feita por ambos os cônjuges (rectius : ambos são proprietários tabulares), é fundamental que em caso de alienação ou oneração desse imóvel, ambos compareçam ao instrumento negocial como outorgantes (aqui não há falar em mancomunhão – mas sim condomínio ordinário – nem vênia conjugal).

A segunda exceção é a da pessoa casada sob o regime da participação final nos aquestos, quando, na escritura antenupcial, houver expressa disposição liberando um ao outro da anuência conjugal para alienação de bens particulares na constância do matrimônio. 13 Cuida-se de típica manifestação da autonomia privada.

O dispositivo ora enfocado incide apenas em relação à alienação (em sentido lato, abrangendo não só a venda, como toda e qualquer disposição patrimonial, por exemplo, doação, 14 permuta, cessão, dação em pagamento etc.) ou oneração ( constituição de hipoteca, servidão, usufruto, alienação fiduciária etc.) de bens imóveis, mesmo que pertençam a um dos cônjuges somente, não integrando a comunhão de bens. 15

Em verdade, a aludida vênia é uma casuística evidente de legitimação também denominada de autorização, capacidade negocial ou privada.

Explica-se.

São casos em que, mesmo tendo o sujeito capacidade jurídica geral ou plena, a norma exige uma autorização específica para a prática do ato da vida civil. A legitimação, outrossim, encontra-se no plano da validade dos negócios jurídicos.

Não há dúvidas de que o bem jurídico tutelado pela norma é a proteção da família. O objetivo primeiro é a proteção do patrimônio familiar. Tratando-se de atos de disposição do patrimônio familiar, nada mais coerente do que se exigir a manifestação de ambos os cônjuges responsáveis que são, igualmente, pelo planejamento familiar.

Há, pois, restrição da autonomia privada, fundamentada na tutela de um bem jurídico maior. Ademais, justifica-se a exigência pelo fato de os imóveis serem considerados bens de raiz, que dão segurança à família e garantem o futuro dos filhos, malgrado o patrimônio mobiliário possa atingir valor pecuniário muitas vezes maior que o imobiliário. Justo, assim, que o outro cônjuge seja ouvido a respeito da conveniência ou não da alienação.

Sobreleva anotar ainda que a necessidade da vênia conjugal remanesce mesmo que o bem não integre a comunhão. Essa questão ganha relevo especial no arranjo da comunhão parcial de bens, assentada em quatro fundamentos cristalinos.

De saída, o caput do art. 1.647 não excepcionou a situação como o fez expressamente com a separação absoluta. Do mesmo modo, não há qualquer dispositivo que expressamente assinale nesse sentido, como o fez o art. 1.656 do Codex para a participação final nos aquestos.

Sem prejuízo, parece que a ética e a boa-fé relacional, as quais impõem o dever de informação no casamento, implicam na ciência do outro cônjuge (o anuente) da situação de disposição patrimonial daquele que aliena.

Vale ainda destacar dois aspectos normativos depurados a partir de inafastável interpretação sistemática do Código Civil : a possibilidade jurídica de comunicabilidade das benfeitorias e frutos dos bens particulares na comunhão parcial de bens (art. 1.660, IV e V do Código Civil) e a vocação hereditária estabelecida pela Lei Civil (art.  1.829 do Código Civil), já que o cônjuge tem direitos sucessórios sobre os bens particulares do outro.

Agasalhando esses fundamentos, o Enunciado 340 do Conselho da Justiça Federal sentencia que “no regime da comunhão parcial de bens é sempre indispensável a autorização do cônjuge, ou seu suprimento judicial, para atos de disposição sobre bens imóveis”.

Em realidade, e na melhor técnica jurídica, a anuência do cônjuge somente ocorrerá nos casos de alienação de bens particulares, de modo que, integrando o bem imóvel a comunhão (v.g. , bem adquirido onerosamente por um dos cônjuges casados na comunhão parcial de bens), marido e mulher deverão figurar na alienação como outorgantes, alienantes, e não um deles como mero interveniente anuente, afinal, com o registro da propriedade – ainda que apenas em nome de um dos cônjuges –, havendo comunhão em virtude das regras de regime de bens, haverá copropriedade. Trata-se de condomínio especial, denominado de condomínio de mão única ou mancomunhão. 16

Sob a ótica do Registrador Imobiliário a questão que se impõe é se seria motivo legítimo para qualificação negativa do título, o fato de o comparecimento no instrumento de alienação ter ocorrido de modo diverso do esperado pela lei. Em outras palavras, se o consorte compareceu como alienante, quando deveria ter atuado como interveniente anuente, é motivo para devolução do título (ou vice-versa)?

A boa técnica recomenda que o cônjuge compareça como “outorgante ou alienante” quando o bem esteja em regime de comunhão, ainda que apenas um deles conste como proprietário na tábua registral. Isso porque, permitindo o regime de bens eleito a comunhão, basta a aquisição da propriedade – leia-se o registro, no caso de bens imóveis – por qualquer deles que haverá ope legis comunicação desse acervo patrimonial, passando o bem o estado de mancomunhão.

De outra sorte, caso o bem figure apenas no patrimônio particular de um dos cônjuges, ou seja, não seja abarcado pela comunhão oriunda do regime de bens eleito, é tecnicamente correto que o cônjuge manifeste sua autorização, nos casos em que a lei a exija, como anuente e não como outorgante.

De qualquer modo, trata-se de questão formal que não interfere na substância do negócio jurídico avençado, devendo a qualificação registral fundar-se no art.  112 do Código Civil , segundo o qual “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. É que, na espécie, tendo o cônjuge efetivamente comparecido ao ato, tendo plena consciência de que aquele imóvel estava sendo alienado, não há motivo para justificar uma qualificação negativa.

Nesse sentido, já decidiu o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo :

Inexiste ofensa aos princípios registrários da disponibilidade e continuidade, tendo em vista que ambos os titulares do registro compareceram na escritura prenotada, não obstante o tenha feito a mulher apenas como anuente. Não há ilicitude na concretização da vontade das partes, ou risco de prejuízo a terceiros. O ato de alienação foi, portanto, formalizado de maneira válida, contando com a efetiva participação, nos limites expressos na lei civil, de cada um dos titulares do domínio, não subsistindo a uma análise sistemática a afirmativa de que apenas o marido tivesse alienado o bem comum. A propriedade imobiliária, como necessário, está sendo transmitida pelo casal, ou seja, por ambos os titulares do domínio, o que viabiliza o ingresso do título no fólio real. 17

Em síntese, ambos os consortes devem comparecer e assinar o contrato de alienação fiduciária em garantia (seja escritura pública ou instrumento particular). Na espécie, mesmo que o instrumento formalize o status de comparecimento do casal no negócio de forma equivocada, isso, per se , não impede o registro do título, devendo o Registrador Imobiliário sempre atentar-se à finalidade da norma e não exclusivamente às formalidades. Deve-se, por princípio, extrair dos títulos que são apresentados a registro a melhor interpretação possível que traga segurança jurídica às partes, não cause prejuízo a terceiros, e permita o acesso do título ao fólio real. No caso, tendo o cônjuge comparecido ao ato, seja a que título for, há plena consciência de que aquele imóvel estava sendo alienado. Resguardada a objetividade jurídica da norma, não há qualquer motivo para justificar uma qualificação negativa.

A outro giro, certifique-se que nas hipóteses em que indispensável, a negativa injustificada por um dos cônjuges, ou a impossibilidade de consentir – casos como ausência, coma etc. – poderá ser suprida pelo magistrado conforme art.  1.648 do CC . Diante dessa situação, será possível o ajuizamento de uma ação judicial de suprimento de consentimento . O dispositivo em exame diz que “cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la”.

Em abstrato, não há como conceituar o que seja “ motivo justo”, tratando-se, pois, de cláusula aberta ou conceito indeterminado. Assim, cumpre ao magistrado, no caso concreto, diante das peculiaridades de cada situação, avaliar a relevância do motivo da recusa do consentimento. O dispositivo, de qualquer maneira, obsta o abuso do direito do consorte que se nega, imotivadamente, a dar a outorga ao outro.

Com efeito, a impossibilidade de concessão do consentimento é situação objetiva: toda vez que um dos cônjuges não puder dar o consentimento em razão de impossibilidade física, permanente ou temporária, poderá o magistrado suprir a outorga. É o que pode ocorrer quando um dos cônjuges estiver gravemente enfermo ou desaparecido, por exemplo.

Em ambos os casos o juiz ouvirá o Ministério Público e avaliará a conveniência da celebração do negócio jurídico para a economia do casal, atento aos interesses do cônjuge que não pôde, ou não quis dar o seu consentimento.

Baseia-se, em suma, o suprimento no prudente arbítrio do magistrado a ser averiguado casuisticamente.

Segundo o Código Civil , a ausência de outorga gera a anulabilidade do ato, a qual pode ser pleiteada no prazo decadencial de dois anos, contados do término da sociedade conjugal (art.  1.649, CC). Assim, o referido prazo inicia-se do nascimento da pretensão – leia-se: no momento em que o ato é praticado sem a respectiva outorga – e se estende até 02 (dois) anos após o término do casamento.

Verificada a anulabilidade pela ausência da vênia conjugal, a legitimidade para pleitear a anulação do negócio é do cônjuge prejudicado ou de seus herdeiros, na dicção do art.  1.650 do Código Civil . Lembre-se que, por se tratar de ato anulável, a legitimidade é restrita, não podendo o juiz conhecê-la de ofício.

Como consequência da anulabilidade prevista em lei, o ato praticado sem a vênia conjugal será desconstituído, retornando as partes ao status quo ante e cessando sua eficácia.

Anulado o negócio jurídico, o terceiro prejudicado teria direito de regresso contra o cônjuge que praticou o ato eivado de vício, ou seus herdeiros, como prevê o art.  1.645 do Código Civil , que alude às hipóteses previstas nos incisos III, IV e V do art. 1.642, recaindo sobre os particulares ou em sua meação. A indenização somente atingirá a meação do outro cônjuge se o culpado não tiver bens particulares ou o valor superar sua meação, e desde que o lesado demonstre que o ato trouxe proveito ao casal.

Lembre-se, uma vez mais que, se tratando de hipótese legal em que o ato é anulável (ou mesmo ineficaz, no que tange a fiança ou aval), admite-se a ratificação do ato pelo cônjuge preterido. A convalidação deve ser por escrito, com reconhecimento de firma, se não for em instrumento público.

Em coerência com a parte geral do Código Civil , no particular quanto ao princípio da conservação do negócio jurídico, no viés da ratificação ou saneamento, o parágrafo unicodo artt . 1.649 admite posterior aprovação pelo cônjuge inicialmente prejudicado (que não havia autorizado), nos seguintes termos: “A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou particular, autenticado”.

Nesse descortino, o cônjuge que não tenha sido chamado a dar autorização no ato da alienação, nos termos do art.  220 do Código Civil , poderá comparecer a posteriori para convalidar o negócio jurídico celebrado. É a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos no viés da ratificação (art.  172 do CC): “o negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro”.

Por último, cumpre verificar, sob o prisma do Registrador Imobiliário, se a ausência da vênia conjugal em alienação imobiliária é motivo bastante para qualificação negativa do título.

Como já referido, ante a ausência de vênia conjugal, a lei comina pena de anulabilidade, sendo que se verifica a existência de duas possíveis teses para solucionar o questionamento.

A primeira tese, – fundada em compreensão mais restritiva da qualificação registral – entende que sendo função administrativa aquela desempenhada pelo Oficial de Registro de Imóveis, devem obstar o registro apenas os vícios que geram nulidade (absoluta), de modo que, no caso de anulabilidade – em que a seara de tutela do ordenamento jurídico refere-se à ordem privada, particular, não seria dado ao registrador interferir, até porque é possível a convalidação posterior do ato. Se nem ao juiz é dado reconhecer de ofício os vícios de anulabilidade em sua atuação jurisdicional, a fortiori não seria legítimo o Registrador fazer esse reconhecimento em sede de qualificação registral, em esfera meramente administrativa. A encampar-se esse entendimento, a ausência de vênia conjugal, quando a lei exigir, não seria matéria possível de ser enfrentada na qualificação registral.

O melhor entendimento, no entanto, aponta em sentido contrário. Não se trata de analisar uma causa de anulabilidade do negócio jurídico. É que a vênia conjugal tem natureza de legitimação para a prática de atos de alienação imobiliária, razão pela qual está umbilicalmente ligada aos princípios registrários da disponibilidade e da especialidade objetiva, que não podem ser desconsiderados pelo Oficial de Registro de Imóveis. Nessa linha, seria lícito ao Registrador emitir juízo de desqualificação e exigir a vênia conjugal, ainda que se refira à mera anulabilidade do negócio jurídico, mormente em razão do cariz protetivo à família e à ordem pública da norma em testilha.

É este o entendimento prevalecente na jurisprudência administrativa da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo :

A questão da necessidade da outorga conjugal diz respeito, isto sim, às regras de tutela da entidade familiar, impedindo a realização de alienação de bens imóveis particulares por qualquer um dos cônjuges, salvo as exceções legais, sem que o cônjuge não proprietário concorde com o ato ou, sua recusa seja formalmente suprida por decisão judicial. Assim a regra do art. 1.647, I do Código Civil , ao impedir a alienação de bens imóveis por qualquer um dos cônjuges, salvo o caso de adoção do regime da separação absoluta de bens ou da participação final nos aquestos, autorizada previamente a alienação em relação a bens imóveis particulares (art.  1.656, CC). [...] Isto porque a norma visa, em termos finais, a proteção da entidade familiar e seu patrimônio mínimo para fins de consecução de seus objetivos, colocando a norma tal entidade em local privilegiado em relação aos direitos particulares do cônjuge. Isso se justifica na medida em que, embora a pessoa casada possa, livremente, praticar os atos necessários à mantença do casal, alguns negócios jurídicos são tão relevantes para o patrimônio do casal e manutenção do núcleo familiar que, bem por isso, dependem da expressa anuência do outro cônjuge. Assim, independentemente da aquisição da propriedade imóvel ter se dado antes do casamento no regime da comunhão parcial de bens, a anuência do cônjuge do alienante é requisito fundamental para a validade do ato, sem o qual não se admite seu ingresso no registro imobiliário. 18

4.2.1.2. O fiduciante convivente em união estável

Bem delimitado o alcance e os limites da vênia conjugal no casamento, cabe agora investigar se o instituto teria aplicação para a união estável. Dito de outro modo, o fiduciante que eventualmente convive em união estável deve estar autorizado pela convivente quando celebrar o contrato de alienação fiduciária em garantia?

O tema sempre despertou muita polêmica em razão da ausência de lei expressa regulando o assunto.

Em linha de princípio, tendo em vista que o art.  1.647 do Código Civil apenas se refere ao casamento , assim como se se considerar que é norma limitativa de direito – por mitigar a livre disposição patrimonial –, a exigir interpretação restritiva, tender-se-á a concluir pela não aplicabilidade na união estável. É assim que entende parte da doutrina e da jurisprudência. 19 Agrega-se, ainda, a esse raciocínio argumento dos mais perspicazes: como não é exigível ato público para caracterização da união estável, não há como o terceiro proteger-se de eventuais prejuízos, ou seja, diferentemente do casamento, não é requisito para a constituição de união estável que esta seja formalizada e levada a registro, por exemplo. 20 Cuida-se de situação de fato, a que a lei empresta efeitos jurídicos.

Há, porém, aqueles que advogam tese contrária.

Os que se orientam em sentido diverso sustentam que a necessidade e os efeitos jurídicos da outorga conjugal se aplicam, por técnica de interpretação ampliativa e diante da simetria, à união estável. Ademais, a teor do art.  1.725 do Código Civil , à união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, “[...] aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Ora, entre as regras atinentes à comunhão parcial de bens se insere aquela do art.  1.647 do Código Civil . Vale dizer, os efeitos patrimoniais da união estável são semelhantes aos do casamento em comunhão parcial de bens, se não houver estipulação em contrário no contrato de convivência.

Em trabalho específico sobre o tema, colhe-se oportuna passagem de Mairan Gonçalves Maia Júnior :

A aplicação da regra do art. 1647, caput , decorre diretamente da disposição do art. 1.725, ao prescrever ser aplicável à união estável as regras do regime da comunhão parcial de bens, sendo consequência inerente à incidência daquelas próprias normas. Ora, a disposição do art. 1.647, como já salientado, constitui o cerne da disciplina jurídica relativa aos atos de disposição e oneração de bens, assim como à constituição de obrigações que possam comprometer a integridade do patrimônio familiar. Como é cediço, e já destacado anteriormente, referidos atos, por sua natureza podem afetar profundamente o patrimônio da família, daí por que permitir a lei a limitação da autonomia da vontade, instituindo restrição à capacidade negocial para a realização dos atos jurídicos que prevê. Como salientado, a necessidade da outorga do cônjuge ou convivente tem por finalidade proteger os interesses da família. assim, não deve haver diferença entre a proteção da família formada pelo casamento ou pela união estável. 21

Passando em revista a jurisprudência dos Tribunais nacionais, ainda se verifica certa vacilação sobre o tema em foco.

O Superior Tribunal de Justiça , em um primeiro momento, inclinou-se pela desnecessidade da vênia na união estável. O caso posto a desate cuidava da aferição da eficácia do contrato de fiança, em hipótese na qual a aludida união estava formalizada por escritura pública. Veja-se, nessa linha, trecho do voto do ministro-relator:

Toda e qualquer diferença entre casamento e união estável deve ser analisada a partir da dupla concepção do que seja casamento – por um lado, ato jurídico solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico, e, por outro, uma entidade familiar, dentre várias outras protegidas pela Constituição. Ainda que a união estável esteja formalizada por meio de escritura pública, é válida a fiança prestada por um dos conviventes sem a autorização do outro. Isso porque o entendimento de que a “fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia” (Súmula 332 do STJ), conquanto seja aplicável ao casamento, não tem aplicabilidade em relação à união estável. 22

Em outro momento, porém, é possível perceber que a Corte da Cidadania adotou entendimento diverso, fixando a necessidade de vênia na união estável, caso houvesse inscrição do contrato de convivência ou da decisão declaratória de união estável no ofício de Registro de Imóveis.

Cite-se, em resumo, o decidido nesta outra oportunidade:

A necessidade de autorização de ambos os companheiros para a validade da alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável é consectário do regime da comunhão parcial de bens, estendido à união estável pelo art.  1.725 do CCB, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união, na forma do art. 5º da Lei 9.278/96. A invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida a união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente. Hipótese dos autos em que não há qualquer registro no álbum imobiliário em que inscrito o imóvel objeto de alienação em relação a copropriedade ou mesmo à existência de união estável, devendo-se preservar os interesses do adquirente de boa-fé, conforme reconhecido pelas instâncias de origem. 23

Muito embora, como mencionado alhures, o tema incite suntuosa divergência em razão da ausência de regramento expresso, a melhor interpretação parece essa fornecida pelo Superior Tribunal Justiça no julgado acima mencionado: estando o contrato de convivência inscrito no Registro Imobiliário, as regras e os efeitos jurídicos da outorga conjugal aplicam-se àquela união estável devidamente formalizada e publicizada, falando-se, assim, em outorga convivencial .

Não se deve esquecer que a união estável é uma situação de fato e, no mais das vezes, não há entre os companheiros qualquer instrumento escrito que estabeleça as regras patrimoniais daquele casal. Em outros casos, até há um instrumento materializado pelos companheiros, mas que não foi levado ao registro público competente. Essas circunstâncias impedem a oponibilidade da união estável perante terceiros. É dizer, muito embora efetivamente exista a união estável, terceiros de boa-fé que eventualmente contratarem com qualquer dos conviventes não têm como ter conhecimento da existência daquela família convivencial por outro modo senão através da indicação dos próprios companheiros quando da entabulação do negócio jurídico.

Em virtude desse cenário, é sempre recomendável que, na instrumentalização de negócios jurídicos em que o alienante esteja em estado civil que autorize, 24 aos olhos do direito legislado, a constituição de uma união estável, haja declaração de que aquele contratante não vive em união estável com outrem. 25 De outra sorte, caso o alienante acuse a existência de união estável – salvo se existir contrato de convivência que dispense a outorga do outro convivente – 26 é de boa cautela exigir a vênia do outro convivente, ainda que se cuide de bem particular daquele que está alienando.

Todo esse diagnóstico é alterado quando houver contrato de convivência devidamente inscrito no Ofício de Registro de Imóveis. Nesses casos, a anuência do outro companheiro passa a ser obrigatória, indispensável, exceto, é claro, se o pacto entre os conviventes a dispensar, nas hipóteses autorizadas pela lei.

O registro imobiliário é, assim, o divisor de águas .

Não havendo o registro imobiliário do contrato de união estável, não há oponibilidade erga omnes dos efeitos patrimoniais daquela união. Apesar de ser recomendável, como já mencionado, que na instrumentalização da avença o alienante declare se vive ou não em união estável. Essa menção é frágil e não blinda a negociação com a devida segurança jurídica.

Convém examinar agora a obrigatoriedade ou não do registro do contrato de convivência. Não há qualquer lei (em sentido estrito) que exija a necessidade de se inscrever no Registro Imobiliário o contrato de união estável. A Lei dos Registros Públicos silencia sobre a matéria e prevê, apenas, o registro (art. 167, I, 12) das convenções antenupciais – no Livro 3, Registro Auxiliar – e sua respectiva averbação (art. 167, II, 1) nas matrículas – no Livro 2, Registro Geral – referentes a imóveis, ou a direitos reais pertencentes a qualquer dos cônjuges, inclusive os adquiridos posteriormente ao casamento.

Alguns Estados, porém, em suas normatizações administrativas, preveem o registro dos contratos de convivência à semelhança do pacto antenupcial. É o caso de São Paulo. As Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça paulista determinam que seja objeto de inscrição no Registro Imobiliário, nos mesmos moldes do pacto antenupcial, 27 as escrituras públicas que regulem regime de bens dos companheiros na união estável. Além do registro no Livro 3 (Registro Auxiliar), exige a normativa, a averbação desses instrumentos nas matrículas referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer dos companheiros, inclusive os adquiridos posteriormente ao contrato ou ao reconhecimento judicial da união estável. 28 Essas inscrições, de acordo com a dicção do texto normativo, seriam obrigatórias.

Todavia, há de se ponderar que tais atos normativos – administrativos que são – não obrigam os particulares, apenas regulamentam os serviços notariais e de registros e a forma de atuação dos titulares das delegações. É dizer, apenas a lei, em sentido estrito, teria o condão de impor a obrigatoriedade do registro.

Apesar dessa ressalva, é conveniente e oportuno que os contratos de convivência sejam levados à registro perante o Cartório de Registro de Imóveis. Essa providência só gera segurança jurídica ao tráfico imobiliário, dada a qualidade da publicidade propiciada pela instituição registral.

Nesses moldes, é possível concluir que somente com o registro do contrato de convivência perante o Registro de Imóveis é que será possível emprestar os mesmos efeitos jurídicos da outorga conjugal à união estável.

Não se pode descurar, ainda, que o art.  1.647 do Código Civil , que exige a anuência do outro consorte, é norma de proteção e não de exclusão. A ratio legis é a proteção da família, não se admitindo, aqui, que haja distinção entre casamento e união estável, ambas são entidades familiares constitucionalmente tuteladas.

Some-se a isso que a necessidade da autorização do companheiro para atos enumerados no dispositivo em testilha evitará a dilapidação do patrimônio e danos a terceiros. Há, portanto, na exigência da outorga convivencial, um adendo de função social que não pode ser desconsiderado.

4.2.1.3. O terceiro garantidor (garantia real)

Propõe-se aqui uma leitura extensiva da condição jurídica de fiduciante, no sentido de abranger não exclusivamente o devedor, mas também o terceiro que aliene fiduciariamente coisa própria para garantir débito de outrem.

Na hipótese do terceiro garantidor, algumas dificuldades podem aparecer na hipótese de não pagamento pelo devedor, caso em que a propriedade do imóvel alienado (pelo terceiro garante), transferir-se-á, em definitivo, ao credor fiduciário.

Nesse sentido, aliás, é salutar que do contrato de alienação fiduciária conste cláusula que imponha a notificação ao fiduciante e ao devedor, para efeito de constituição em mora.

Se o pagamento do débito for feito pelo fiduciante, na condição de terceiro interessado no pagamento, opera-se, como sói acontecer , a sub-rogação legal. Em outras palavras, passará ele à condição e aos direitos daí decorrentes. A mesma condição jurídica será reservada à hipótese de a propriedade consolidar-se na pessoa do credor fiduciário.

4.2.2. O Fiduciário

Com relação à condição de credor fiduciário, na relação jurídica inerente à alienação fiduciária em garantia, estão legitimados para serem as pessoas físicas ou jurídicas, ainda que não integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). Não há, dessa forma, qualquer restrição àqueles que possam figurar na condição de credor (e devedor) na alienação fiduciária em garantia de bem imóvel.

É o que determina o art. 22, § 1º, da Lei 9.514/1997, segundo o qual “a alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI [...]”.

Deve-se bem compreender a questão em cotejo com as prescrições dos arts. 2º e 4º da Lei 9.514/1997.

Note-se que para o art. 2º “poderão operar no SFI as caixas econômicas, os bancos comerciais, os bancos de investimento, os bancos com carteira de crédito imobiliário, as sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo, as companhias hipotecárias e, a critério do Conselho Monetário Nacional – CMN, outras entidades”.

Já o art. 4º sentencia que “as operações de financiamento imobiliário em geral serão livremente efetuadas pelas entidades autorizadas a operar no SFI, segundo condições de mercado e observadas as prescrições legais”.

É de ver que as restrições de legitimidade enumeradas nesses dispositivos se referem àquelas operações que, pelo empréstimo, integrarão o SFI. Vale dizer, possibilita-se não só a operação de crédito em si, como também a captação dos recursos necessários à sua mobilização e posterior securitização dos créditos imobiliários, através de certificados de recebíveis imobiliários, junto às companhias securitizadoras.

Nesse caso, sim, a legitimidade para operar nesse sistema integrado é restrita àquelas pessoas que poderão se valer de quaisquer das garantias arroladas no art. 17 da Lei, entre as quais a alienação fiduciária. 29

Quadra frisar, assim, que a alienação fiduciária, como garantia real, está disponível a todas as pessoas. Nota bene! A despeito de qualquer pessoa, física ou jurídica, ter legitimidade para contratá-la, se se tratar de parte não integrante do Sistema Financeiro Imobiliário, não poderá captar recursos desse sistema e repassar os créditos, por meios dos instrumentos disponíveis, como os certificados de recebíveis.

Certeira, nessa linha, a redação do item 224 , do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo :

A alienação fiduciária, regulada pela Lei 9.514/1997, e suas alterações, é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência da propriedade resolúvel de coisa imóvel ao credor, ou fiduciário, que pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, e não é privativa das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) .

Quanto ao seu status jurídico , com o registro do contrato que serve de título à alienação fiduciária em garantia no Oficial de Registro de Imóveis, o fiduciário torna-se proprietário resolúvel do imóvel enquanto vigente a fidúcia. Satisfeita a obrigação, automaticamente, ope legis , resolve-se a propriedade em favor do devedor fiduciante.

4.2.2.1. Alienação fiduciária de imóvel rural a pessoa física ou jurídica estrangeira

A Lei 5.709/1971 e seu Regulamento (Decreto 74.965/1974) estabelecem restrições à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, por pessoas jurídicas autorizadas a funcionar no Brasil, e por pessoas jurídicas brasileiras das quais participem pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, que tenham a maioria de seu capital social e residam ou tenham sede no exterior. 30

Apesar de a referida legislação estar em vigor há muito tempo, ainda hoje remanescem grandes discussões a respeito de sua incidência em determinadas situações concretas, dificultando sobremaneira o labor dos Registradores Imobiliários. 31

Com efeito, deve-se considerar que as mencionadas restrições se escoram atualmente na regra do artigo 190 da Constituição Federal que impôs limitação à contratação privada – e, portanto, à livre-iniciativa. Tais limitações inspiram-se, contudo, na soberania nacional, fundamento da República e princípio da ordem econômica (artigos , I , e 170, I , da CF/1988), com a finalidade de garantir o desenvolvimento nacional, um dos objetivos do País (artigo , II , da CF/1988).

Verifica-se concretamente que a incidência dessas restrições encerra certa polêmica, em especial se se considerar que a Emenda Constitucional 6, de 15 de agosto de 1995 , revogou o artigo 171 da Carta Magna, de modo a eliminar a distinção anteriormente existente entre pessoa jurídica nacional com controle estrangeiro, e pessoa jurídica nacional com controle nacional. Levantou-se, nessa medida, a discussão quanto à recepção ou não da Lei 5.709/1971 pela CF/1988 . 32

Nesse peculiar, a interpretação mais coerente parece aquela que, balanceando os preceitos constitucionais em conflito, privilegia o desenvolvimento da economia nacional, na medida em que as restrições impostas pela legislação na aquisição de terras por estrangeiros podem reduzir e/ou inviabilizar os investimentos produtivos no setor agropecuário brasileiro, reconhecidamente o escudo dourado da economia nacional nos últimos anos de recessão. 33

Veja-se, nessa linha de raciocínio, que o Estado de São Paulo, para garantir segurança jurídica na atuação dos Registradores Imobiliários, havia consolidado o entendimento de que “a pessoa jurídica brasileira – constituída sob as leis brasileiras, com sede e administração no Brasil –, não se sujeita ao regime estabelecido pela Lei 5.709, de 7 de outubro de 1971, e pelo Decreto 74.965, de 26 de novembro de 1974 , ainda que a maioria de seu capital social e o poder de controle, em qualquer uma de suas manifestações, pertença a estrangeiros residentes fora do Brasil ou a pessoas jurídicas estrangeiras sediadas no Exterior”.

Tal entendimento fora consagrado no Parecer 461/2012-E , 34 aprovado pelo então Corregedor-Geral da Justiça, Des. José Renato Nalini , tendo sido, inclusive, o referido entendimento incorporado ao texto das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo (NSCGJ-SP, Cap. XVI, item 70.1).

No entanto, o ministro Marco Aurélio , do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar na Ação Cível Originária (ACO) 2463 , para suspender os efeitos do referido parecer da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, ao argumento de que a Lei 5.709/1971 não foi declarada inconstitucional pelo STF em processo objetivo. Em outras palavras, garantiu-se a presunção de constitucionalidade das leis regularmente aprovadas pelo Poder Legislativo. Para o ministro é impróprio sustentar a não observância de diploma presumidamente conforme a Constituição Republicana com alicerce em pronunciamento de Tribunal local em processo subjetivo (in casu , mandado de segurança). Alegou, ademais, que referido parecer afastou a incidência, em apenas um estado da federação, de preceito de lei federal por meio da qual regulamentado tema inserido na competência da União (art.  190 da CF), atentando contra o pacto federativo. 35

Observe-se, portanto que a incidência e os limites de aplicação da Lei 5.709/1971 ainda hoje são terrenos férteis para uma série de discussões e questões controvertidas, impactando, sobretudo, nas atividades de Notários e Registradores que possuem destacada responsabilidade civil e criminal pela correta observância da referida legislação. 36

É nesse cenário de incertezas e dubiedades que exsurge sensível questionamento a respeito da incidência ou não das limitações da Lei 5.709/1971 na contratação de alienação fiduciária sobre imóveis rurais em favor dessas pessoas estrangeiras, já que por esse contrato, o fiduciário (adquirente), estaria investido na propriedade do imóvel.

Na hipótese, entretanto, algumas acomodações interpretativas devem ser feitas.

É oportuno relembrar que na complexa relação jurídica do instituto da alienação fiduciária de bens imóveis, tem-se negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

Denota-se, aqui, que ambos os players ostentam direito real sobre a coisa, ou seja, o credor fiduciário terá a propriedade resolúvel do imóvel, ao passo que o devedor fiduciante titulariza direito real de (re) aquisição do bem.

Demais disso, sob o cariz possessório, recorde-se que, com a constituição da propriedade fiduciária – o que somente ocorre mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título – dar-se-á o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário, possuidor indireto da coisa imóvel.

Infere-se, pois, que na alienação fiduciária, definitivamente não há a transmissão do domínio pleno ou útil ao credor fiduciário, com os atributos do art.  1.288 do Código Civil , a conferir a faculdade de explorar o potencial econômico do imóvel em proveito próprio.

Ao reverso.

Na alienação fiduciária em garantia há a afetação do bem ao cumprimento da obrigação ( Código Civil , art. 1.419), e não à pessoa do adquirente (fiduciário). Dito de outro modo, limita-se à atribuir ao fiduciário o direito sobre o produto da expropriação do imóvel em caso de inadimplemento da obrigação garantida, negando-lhe, por força da vedação ao pacto comissório, qualquer direito de apropriação do produto da exploração econômica do bem.

Exatamente nesse jaez, a Lei 13.043/2014 alterou de modo relevante o art.  1.367 do Código Civil , em sua parte final, e inseriu a ressalva de que “a propriedade fiduciária em garantia [...] não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231”. Essa ressalva demonstra a intenção legislativa de visualizar de modo claro e evidente o divórcio necessário entre “propriedade fiduciária” e “propriedade plena”. De mais a mais, apesar de certa divergência na seara doutrinária sobre a natureza jurídica da alienação fiduciária de bem imóvel, tem prevalecido o entendimento de que a propriedade fiduciária é direito real de garantia sobre coisa própria .

Partindo-se das premissas anteriormente aventadas é seguro concluir que na constituição de alienação fiduciária sobre imóvel rural em favor de credor estrangeiro (rectius : para o registro do contrato que lhe serve título no Registro de Imóveis), não se faz necessário observar qualquer restrição diante da não incidência da Lei 5.709/1971 quando da instituição da propriedade fiduciária.

Entretanto, situação diversa ocorrerá quando da eventual consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, que se concretiza mediante ato de averbação na matrícula do imóvel, à vista da prova do pagamento do imposto de transmissão inter vivos (ITBI) e, se for o caso, do laudêmio, consoante art. 26, § 7º, da Lei 9.514/1997. É dizer: para ultimar a consolidação da propriedade no caso vertente, será indispensável a observância pelo Registrador de Imóveis das restrições da Lei 5.709/1971.

A propósito, colhe-se da experiência pretoriana o didático precedente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em que foi reconhecida a plena validade e eficácia de alienação fiduciária em garantia de bem imóvel rural em benefício de um credor estrangeiro, com as acomodações necessárias. Confira-se:

A alienação fiduciária de bem imóvel rural em garantia em favor de pessoa física ou jurídica estrangeira, ou a esta equiparada, não se submetem às restrições estabelecidas pela Lei 5.709/1971, sendo, portanto, válida a garantia prestada na hipótese dos autos. [...] Todavia, os requisitos previstos na Lei 5.709/71 devem ser observados para a consolidação da propriedade no patrimônio dessas pessoas estrangeiras, em caso de inadimplemento da obrigação garantida e de consequente excussão do bem, ou para dação do direito eventual do fiduciante em pagamento da dívida garantida, o que não restou cumprido na espécie. Dessa forma, in casu , não é possível a consolidação da propriedade do imóvel rural em nome dos credores estrangeiros, por não terem restado satisfeitos os requisitos exigidos pela Lei 5.709/71 para tanto, conforme acima explanado, motivo pelo qual impossível a observância do procedimento previsto na Lei 9.514/97 em sua integralidade. 37

Percebe-se, sem dificuldade, que as restrições aos estrangeiros, impostas pela Lei 5.709/1971, passam a ter relevância apenas no momento da consolidação da propriedade, mormente quando da consagração da propriedade plena ao credor estrangeiro. Em palavras mais singelas, a dispensa de observar as restrições da Lei 5.709/1971 cinge-se ao momento da constituição da propriedade fiduciária, sendo outro o cenário nos desdobramentos jurídico-registrais quando operado o inadimplemento do contrato pelo devedor fiduciante.

Não se pode esquecer, no entanto, que as indigitadas restrições não incidirão se o credor fiduciário for instituição financeira estrangeira (leia-se : pessoa jurídica). Isso porque a instituição financeira estrangeira possui expressa autorização quanto à dispensa em receber o assentimento prévio do Conselho de Segurança Nacional para a consolidação de imóvel rural em faixa de fronteira.

Ocorre que a Lei 6.634/1979, com a redação dada pela Lei 13.986/2020, dispensa a autorização para oneração, de terras situadas na faixa de fronteira – legalmente consideradas como indispensáveis à segurança nacional –, quando o credor for instituição financeira estrangeira. Tal dispensa legal da autorização se estende ao recebimento do imóvel objeto da garantia em liquidação do empréstimo ao qual está vinculado. 38 Nesse caso, a dispensa se justifica porque as instituições financeiras, em geral, são obrigadas por lei a vender os bens recebidos em liquidação de empréstimos (Lei 13.506/2017, art. 3º, § 2º, II). 39

Digno de nota que a Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo agasalhou esse entendimento conforme se extrai do conclusivo parecer da lavra da Juíza Assessora Stefânia Costa Amorim Requena : “[...] reputo ser possível afirmar que não há óbices, no ordenamento jurídico pátrio, ao registro da alienação fiduciária de imóvel rural em garantia de empréstimo concedido por instituições financeiras de controle estrangeiro.” 40

A partir dessa intelecção, por lógica, a dispensa legal de autorizações aplicar-se-á também à consolidação da propriedade em favor da instituição financeira estrangeira, afinal, mesmo após frustrados os leilões previstos nos § § 1º e 2º do art. 27 da Lei 9.514/1997, não há a aquisição da propriedade plena do caput do art.  1.228 do Código Civil . Frise-se uma vez mais: conforme as leis e atos normativos que regem as instituições financeiras, tal propriedade será sempre precária e condicionada à alienação do imóvel.

Por último, é de grande relevância considerar que a Lei 13.986/2020 – oriunda da conversão da Medida Provisória 897/2019 , batizada de “MP do Agro ” – ao tratar de relevantes institutos jurídicos para o fomento do crédito rural, acabou por promover importante alteração na Lei 5.709/1971 no que pertine à dispensa de observação daquele regime jurídico restritivo em situações específicas.

Em conformidade com o que foi aqui exposto, a vigente redação do art. 1º, § 2º, da Lei 5.709/1971 determina que as restrições estabelecidas nesta Lei não se aplicam:

i)  aos casos de sucessão legítima, ressalvado se o imóvel estiver localizado em área considerada indispensável à segurança nacional;

ii)  às hipóteses de constituição de garantia real, inclusive a transmissão da propriedade fiduciária em favor de pessoa jurídica, nacional ou estrangeira;

iii)  aos casos de recebimento de imóvel em liquidação de transação com pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, ou pessoa jurídica nacional da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e que residam ou tenham sede no exterior, por meio de realização de garantia real, de dação em pagamento ou de qualquer outra forma.

Verifica-se, assim, que a Lei 13.986/2020, ao trazer essas regras excepcionais, objetivou fomentar o agronegócio, autorizando, no que interessa mais de perto ao tema da alienação fiduciária em garantia, a plena possibilidade de sua contratação sobre imóvel rural de titularidade de estrangeiros, inclusive em favor de pessoas jurídicas estrangeiras, sem restrições.

Na mesma linha, a partir da atual redação do art. 1º, § 1º da Lei 5.709/1971, devidamente constituída a garantia fiduciária sobre imóvel rural, havendo inadimplemento, quaisquer dos mecanismos de realização da garantia previstos na Lei 9.514/1997, que rege a matéria, serão passíveis de serem observados mesmo que o credor fiduciário seja pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, ou pessoa jurídica nacional da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e que residam ou tenham sede no exterior. Equivale dizer, esses credores poderão valer-se dos procedimentos de execução extrajudicial previstos no art. 27 da Lei 9.514/1997, admitindo-se sua atuação para reaver o crédito concedido, sem qualquer restrição, podendo celebrar, obedecida a autonomia privada, negócios jurídicos com efeitos liberatórios, como a dação em pagamento (art. 26, § 8º, da Lei 9.514/1997), entre outras avenças com esse objetivo (v.g., pacto marciano).

4.2.2.2. A nova instituição financeira na hipótese de portabilidade do financiamento

Hipótese interessante verifica-se diante da ocorrência da chamada portabilidade do financiamento . 41 Essa situação ocorre quando o devedor fiduciante encontra no mercado instituição financeira que apresenta condições contratuais mais atraentes para o financiamento e pretende migrar sua alienação fiduciária para essa nova instituição.

Nessa operação, o que efetivamente acontece é a quitação do financiamento inicialmente contratado. Essa quitação será realizada pela nova instituição credora – que se sub-roga na condição de nova credora fiduciária –, podendo, para tanto, repactuar as condições contratuais.

Frise-se, assim, que na hipótese de transferência de financiamento para outra instituição financeira, mediante requerimento do mutuário, e obedecidos os ditames dos arts. 33-A a 33-F da Lei 9.514/1997, o pagamento da dívida à instituição credora original poderá ser feito, a favor do mutuário, pela nova instituição credora (art. 31, parágrafo único, da Lei 9.514/1997).

4.2.3. O fiador

Além da possibilidade de a propriedade fiduciária, enquanto garantia real, ser prestada por terceira pessoa em favor do devedor, é possível também que o credor fiduciário exija garantia pessoal ou fidejussória, como é o caso da fiança.

Assim, é perfeitamente possível fracionar garantias de naturezas diversas no mesmo crédito, de modo a ficar parte dele garantido por alienação fiduciária, e parte por fiança. Também é viável que as garantias incidam sobre o crédito como um todo. Em suma, é plenamente possível cobrir o débito inteiro ou determinada parte dele com garantias simultâneas, ou cobrir somente uma parte do débito com uma delas, e outras, com outra. 42

Seja como for, o fiador insere-se na relação jurídica como coobrigado .

Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra. Trata-se de relação jurídica acessória regulada pelos arts.  818 a 839 do Código Civil .

Importa salientar que, não havendo limitação, a fiança compreenderá todos os acessórios da dívida principal, inclusive as despesas com o procedimento de execução extrajudicial.

Admite-se, também, que a fiança possa ser de valor inferior ao da obrigação principal, e contraída em condições menos onerosas, e, quando exceder o valor da dívida, ou for mais onerosa que ela, não valerá senão até ao limite da obrigação afiançada.

Recorde-se, outrossim, que se o fiador se tornar insolvente ou incapaz, poderá o credor exigir que seja substituído.

Entre os principais efeitos da fiança decorre o direito do fiador de exigir o chamado benefício de ordem , que consiste na necessidade de o credor executar primeiro o devedor principal pelo pagamento da dívida.

A alienação fiduciária, por toda sua eficácia, mormente em razão da afetação do imóvel à garantia da dívida, relativiza a relevância da responsabilidade do fiador, a menos que o fiador no contrato de alienação fiduciária tenha renunciado expressamente ao benefício de ordem, ou tenha se obrigado como principal pagador ou devedor solidário ( CC , art. 828, I e II).

De qualquer sorte, como coobrigado, o fiador deverá ser intimado na hipótese de inadimplemento do devedor, nos autos do procedimento de execução extrajudicial da garantia fiduciária. Notadamente, se o fiador pagar integralmente a dívida ficará sub-rogado nos direitos do credor. O fiador terá, inclusive, em virtude da sub-rogação, direito aos juros do desembolso pela taxa estipulada na obrigação principal. Nessa linha, o art. 31 da Lei 9.514/1997 é incisivo ao determinar que o fiador ou o terceiro interessado que pagar a dívida ficará sub-rogado, de pleno direito, no crédito e na propriedade fiduciária.

Demais disso, parece razoável admitir que, na condição de terceiro interessado, nos termos do art.  834 do Código Civil , quando o credor, sem justa causa, demorar a execução iniciada contra o devedor, poderá o fiador promover-lhe o andamento. É modo legítimo de o fiador mitigar o seu prejuízo, evitando que a dívida aumente.

Mencione-se, por fim, que a obrigação do fiador passa aos herdeiros; mas a responsabilidade da fiança se limita ao tempo decorrido até a morte do fiador, e, à evidência, não pode ultrapassar as forças da herança.

4.2.4. Os Fundos de Investimentos

Tema da mais alta complexidade e ainda pouco experimentado na doutrina e na jurisprudência pátrias diz respeito aos fundos de investimentos. São figuras cada vez mais difundidas na economia nacional, que procura espelhar no mercado interno a boa aceitação que os referidos fundos têm tido nas grandes potências econômicas, como nos Estados Unidos da América.

De saída, convém esclarecer que a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) houve por bem trazer um regime jurídico geral para os fundos de investimento, tendo feito importante inclusão da matéria no Código Civil , entre os arts. 1.368-C a 1.368-F.

De modo geral, entende-se por fundo de investimento a comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. O grande objetivo de um fundo de investimento é a comunhão de recursos afetados ao interesse comum de seus participantes (denominados “cotistas”) de promover aplicação em ativos financeiros de qualquer natureza, sejam imóveis, direitos creditícios em geral, títulos de crédito especiais, com ou sem lastro imobiliário, entre outros.

O regime jurídico do Código Civil , acima referido, funciona como verdadeira teoria geral dos fundos de investimentos, tendo, pois, aplicação supletiva. É dizer, a depender da natureza do fundo de investimento é possível que suas normas sejam regidas por lei especial, como é o caso dos Fundos de Investimentos Imobiliários (FII’s), disciplinados pela Lei 8.668/1993 . 43

No que interessa mais de perto ao tema da alienação fiduciária de bens imóveis, grassa acirrada controvérsia doutrinária a respeito de quem deve titularizar a relação jurídico-real (seja como devedor fiduciante, seja como credor fiduciário), isto é, o próprio fundo de investimento ou a entidade que o administra.

A redação do art. da Lei 8.668/1993 – que, frise-se uma vez mais, trata dos fundos de investimentos imobiliários (FII’s) – sempre foi perfeitamente entendida no sentido de que a aquisição e alienação de bens imóveis e direitos a eles relativos seriam mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição financeira (rectius : a administradora do fundo). Ocorre, em verdade, que os bens, por ela adquiridos, formam um patrimônio segregado e afetado aos objetivos do fundo e a estereotipação dessa afetação seria objeto de averbação no Registro de Imóveis competente (§ 2º do referido art. 7º).

Determinou-se objetivamente ainda que a alienação dos imóveis “será efetivada diretamente pela instituição administradora, constituindo o instrumento de alienação documento hábil para cancelamento, perante o Cartório de Registro de Imóveis, das averbações pertinentes às restrições e destaque de que tratam os § 1º e 2º do art. 7º”. 44 Nesse quadrante, aliás, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de que titularidade da propriedade fiduciária é da administradora. 45

Há, no entanto, quem mesmo diante da clareza do direito legislado advogue a tese de que os fundos de investimentos imobiliários, por sua finalidade, teriam aptidão para tornar-se titulares de direitos reais sobre imóveis. A falta de personalidade jurídica, não impediria que o ente despersonalizado seja titular de direitos, inclusive no fólio real. Esse é o entendimento sustentado pelo civilista Carlos Eduardo Elias de Oliveira :

Fundo de investimento não é pessoa jurídica, seja por não ter sido assim catalogado pelo art. 44 do CC , seja pelo fato de o art. 1.368-C do CC lhe ter vestido da condição de “condomínio de natureza especial”. Daí decorre que o Fundo de Investimento não possui personalidade jurídica. Apesar da falta de personalidade jurídica, isso não significa que o fundo de investimento não seja um sujeito de direito. (...) Como é consabido, o ordenamento jurídico admite sujeitos de direito despersonalizados, a exemplo do espólio e do condomínio edilício. Trata-se de entes que, apesar de não deterem personalidade jurídica, podem ter direitos e deveres. O fundo de investimento se enquadra nesse contexto: ele é um sujeito de direito despersonalizado. Por isso, ele pode ser parte em contratos ou em ações judiciais, pode ser figurar como proprietário de bens nos registros públicos; enfim, pode praticar todos os atos da vida civil com as limitações próprias dos entes despersonalizados. O próprio Código Civil é expresso nesse sentido ao afirmar a autonomia obrigacional dos fundos de investimento, estabelecendo que eles respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais que assumirem (art. 1.368-E do CC). 46

A controvérsia fica ainda mais acirrada quando se trata de FIDC’s (Fundo de Investimento em Direitos Creditórios). Segundo o Código Civil , o fundo é um condomínio de natureza especial (art. 1.368-C), sem personalidade jurídica própria, que tem por finalidade a “aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza”. Gize-se: o fundo de investimento não tem personalidade jurídica própria. É um ente despersonalizado, condomínio de natureza especial. Os entes sem personalidade jurídica têm capacidade postulatória (personalidade funcional – judiciária), mas não podem adquirir bens imóveis. Nos termos do art. 1.368-F do CC o “fundo de investimento constituído por lei específica e regulamentado pela …

Uma nova experiência de pesquisa jurídica em Doutrina. Toda informação que você precisa em um só lugar, a um clique.

Com o Pesquisa Jurídica Avançada, você acessa o acervo de Doutrina da Revista dos Tribunais e busca rapidamente o conteúdo que precisa dentro de cada obra.

  • Acesse até 03 capítulos gratuitamente.
  • Busca otimizada dentro de cada título.
Ilustração de computador e livro
jusbrasil.com.br
22 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/451-valor-do-principal-da-divida-prazo-condicoes-de-pagamento-e-a-taxa-de-juros-e-encargos-incidentes-45-requisitos-do-contrato/1643176437