Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
26 de Maio de 2024
  • 2º Grau
Entre no Jusbrasil para imprimir o conteúdo do Jusbrasil

Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro

Supremo Tribunal Federal
há 2 anos

Detalhes

Processo

Órgão Julgador

Tribunal Pleno

Partes

Publicação

Julgamento

Relator

RICARDO LEWANDOWSKI

Documentos anexos

Inteiro TeorSTF_ADI_6595_ebda6.pdf
Entre no Jusbrasil para imprimir o conteúdo do Jusbrasil

Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro

Inteiro Teor

23/05/2022 PLENÁRIO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI FEDERAL 13.967/2019. VEDAÇÃO DE MEDIDA PRIVATIVA E RESTRITIVA DE LIBERDADE. NORMA QUE VERSA SOBRE REGIME JURÍDICO DE POLICIAIS MILITARES E CORPOS DE BOMBEIRO MILITARES. INICIATIVA LEGISLATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. PRECEDENTES. PRINCÍPIOS DA HIERARQUIA E DISCIPLINA INFORMADORES DA VIDA CASTRENSE. NÃO CABIMENTO DE HABEAS CORPUS CONTRA PRISÕES ADMINISTRATIVAS DE MILITARES. PREVISÃO EXPRESSA DOS ARTS. , LXI, E 142, § 2º, DA CF. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.

I - A iniciativa legislativa para estabelecer normas sobre o regime jurídico dos integrantes das Forças Armadas é privativa do Presidente da República, a teor do 61, § 1º, II, f, da Constituição Federal.

II - De outra parte, a Lei Maior, no art. 22, XXI, outorga à União a competência para legislar acerca de "normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares".

III - Tal competência, porém, "há que ser interpretada restritivamente, dentro de princípios básicos da organização federativa: ela só se justifica em termos da imbricação dos prismas gerais da estruturação das polícias militares com o seu papel de ́forças auxiliares e reserva do Exército ́"( ACO XXXXX/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes).

IV - Por isso, quando se trata de regular o regime jurídico de servidores militares estaduais, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de assentar que a iniciativa é privativa do Chefe do Executivo estadual, por força do princípio da simetria.

V - Nesse sentido, o § 6º do art. 144 da CF é expresso ao consignar que "as polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios". VI - As polícias militares e os corpos de bombeiros militares constituem forças auxiliares e reserva do Exército, sendo responsáveis, segundo o art. 144 da CF - juntamente com as polícias de natureza civil - pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, inclusive mediante o uso da força, se necessário.

VII - Consideradas as especificidades das respectivas carreiras, os servidores militares submetem-se a regime jurídico diferenciado, cujos valores estruturantes repousam, conforme os arts. 42 e 142, da CF, na hierarquia e disciplina, precisamente para que possam desempenhar, de forma expedita e rigorosa, o delicado múnus público que lhes é cometido. VIII - Não por outra razão, a própria Constituição Federal, de maneira clara e inequívoca, estabelece, em seu art. 142, § 2º, que "[n]ão caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares".

IX- Tal preceito deita raízes no art. , LXI, da CF, com a seguinte dicção: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,"salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".

X - Por tais motivos, a presente ação direta é julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal 13.967/2019.

ACÓRDÃO

Acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão virtual do Plenário, na conformidade da ata de julgamentos, por unanimidade, julgar procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal 13.967/2019, nos termos do voto do Relator.

Brasília, 23 de maio de 2022.

RICARDO LEWANDOWSKI - RELATOR

18/12/2021 PLENÁRIO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

RELATÓRIO

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro em face do art. , inc. VII, da Lei Federal nº 13.967, de 26 de dezembro de 2019, por violação aos arts. , , LXI, 18, 22, XXI, 42, § 1º, combinados com os arts. 61, § 1º, II, f , e 142, § 3º, X, todos da Constituição da Republica (p. 1 do doc. eletrônico 1).

Eis o diploma normativo atacado:

"LEI Nº 13.967, DE 26 DE DEZEMBRO DE 2019

Altera o art. 18 do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º - Esta Lei altera o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, que reorganiza as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal.

Art. 2º - O art. 18 do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 18 - As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina, aprovado por lei estadual ou federal para o Distrito Federal, específica, que tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Disciplina Militares, observados, dentre outros, os seguintes princípios:

I - dignidade da pessoa humana;

II - legalidade;

III - presunção de inocência;

IV - devido processo legal;

V - contraditório e ampla defesa;

VI - razoabilidade e proporcionalidade;

VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade.

(NR)

Art. 3º - Os Estados e o Distrito Federal têm o prazo de doze meses para regulamentar e implementar esta Lei.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".

O requerente sustenta, primeiramente, a inconstitucionalidade formal da Lei por vício de iniciativa, uma vez que ela é de autoria parlamentar (Projeto de Lei nº 7.645/2014, dos Deputados Federais Subtenente Gonzaga (PDT/MG) e Jorginho Mello (PR/SC), circunstância que subtrairia"do Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de inaugurar o processo legislativo das normas que cuidam do regime jurídico dos militares estaduais, invad[indo] indevidamente a esfera discricionária deste Poder, ao arrepio do Texto Constitucional"(p. 6 do doc. eletrônico 1).

Aduz, ainda, que o

"[...] dispositivo incluído pela Lei nº 13.967, de 26 de dezembro de 2019, consubstanciou inequívoca invasão da competência legislativa dos Estados para dispor sobre direitos, deveres, prerrogativas e outras situações especiais dos militares estaduais ( CRFB; art. 42, § 1º c/c art. 142, § 3º, X).

É fato que o inciso XXI do artigo 22 estipula que ‘compete privativamente à União legislar sobre [...] normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares’.

No entanto, a ‘vedação de medida privativa e restritiva de liberdade’, aqui debatida, vai muito além de estipular um princípio geral, que orientará a elaboração dos Códigos de Ética e Disciplina.

Observe-se que a noção de normas gerais se relaciona ao estabelecimento de diretrizes e de princípios fundamentais orientadores da disciplina de dado tema, sem ser possível ao legislador federal avançar sobre peculiaridades ou especificidades regionais e descer, indevidamente, a minúcias normativas mais condizentes com a atividade do legislador estadual"(págs. 8-9 do doc. eletrônico 1).

Afirma, nessa esteira, que o

"[...] Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que cabe à lei estadual disciplinar as disposições do art. 142, § 3º, inciso X, da Constituição da Republica em relação a Policiais e Bombeiros Militares. Conquanto essa conclusão tenha sido firmada em julgamentos sobre o regime de aposentadoria, é possível aplicar o mesmo entendimento às sanções disciplinares, na medida em que também se cuida de matéria extraída do artigo 142, § 3º, inciso X, da Constituição da República"(p. 11 do doc. eletrônico 1).

Argumenta, na sequência, que a tal Lei afronta o princípio

federativo, uma vez que

"[...] compete privativamente à União legislar sobre [...] normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares’, ex vi do disposto no inciso XXI do artigo 22 da Constituição da Republica, sendo certo que a ‘vedação de medida privativa e restritiva de liberdade’ estipulada pelo dispositivo impugnado não consubstancia norma geral a justificar o trato da matéria no bojo de uma Lei editada pelo Congresso Nacional"(p. 14 do doc. eletrônico 1).

Sustenta, mais, que

" [...] o reconhecimento da competência dos Estados para legislar sobre aplicação de sanções administrativas aos Policiais e Bombeiros Militares está em harmonia com o federalismo, no qual cada ente, dentro de sua esfera de competência, atua de forma autônoma para dar concretude às disposições constitucionais "(p. 14 do doc. eletrônico 1).

Aponta, por outro lado, para a existência de inconstitucionalidade material, porquanto a proibição, por lei federal, da aplicação de medidas privativas e restritivas de liberdade colide com o disposto no art. , LXI, do texto constitucional, que prevê a prisão de integrantes daquelas corporações nos casos de transgressão militar ou de crime propriamente militar, definidos em lei.

Sustenta, assim, que a prisão disciplinar,"para além de estar autorizada pelo texto constitucional, é instituída no interesse dos destinatários dos serviços de segurança pública e defesa civil", entendimento reforçado pelo não cabimento de habeas corpus em relação a punições disciplinares a que alude o § 2º do art. 142, da CF (págs. 19-20 do doc. eletrônico 1).

Salienta, também, o requerente que,

"[...] ao determinar, no inciso X do art. 142, que o regime jurídico militar observará ‘as peculiaridades de suas atividades’, a Constituição da Republica reconhece a singularidade do referido regime e estabelece uma margem para que a legislação regulamentadora assegure a observância do princípio fundamental da organização militar: a hierarquia e disciplina.

Neste sentido, lei que estabeleça diretrizes gerais para a organização e operação das Corporações Militares estaduais deverá necessariamente promover o maior grau possível de tais valores, e não comprometê-los.

A necessidade da prisão disciplinar e sua absoluta compatibilidade com a ordem constitucional vigente é reafirmada no § 2º do art. 142

[...]

Ora, se não cabe habeas corpus em tais casos, é evidente que sanções militares podem restringir a liberdade de locomoção dos seus apenados.

Mais do que isto, ao afastar a incidência do remédio heroico sobre tais ações disciplinares, o Constituinte originário deixou claro entender o caráter indispensável de medidas rigorosas para a manutenção da higidez e da integridade das corporações militares"(págs. 19-20 do doc. eletrônico 1).

Como fundamento para a concessão da medida cautelar, assevera que

"[...] o dispositivo impugnado vem servindo de fundamento para a impetração de habeas corpus perante os órgãos jurisdicionais fluminenses contra penalidades disciplinares de detenção e, por conseguinte, de fundamento para a soltura dos pacientes, produzindo, assim, embaraço na condução dos procedimentos disciplinares no âmbito das

Corporações Militares do Estado do Rio de Janeiro"(p. 22 do doc. eletrônico 1).

Cita, nessa linha, decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no HC º XXXXX-15.2020.8.19.0000, que assim se pronunciou:

" Por unanimidade de votos foi concedida a ordem, outorgando-se salvo-conduto a todos os Policiais Militares do Estado do Rio de Janeiro, no sentido de que, ainda se reconhecida a responsabilidade em processo administrativo disciplinar, que se respeite integralmente as garantias fundamentais e não seja imposta, a título de sanção, a prisão administrativa, bem como para declarar a nulidade das prisões administrativas já impostas e ainda não cumpridas "(p. 22 do doc. eletrônico 1).

Diz, ademais, que

"[...] os Estados possuem a obrigação de regulamentar a Lei nº 13.967/2019, segundo estabelece o seu artigo , até 26 de dezembro de 2020.

Isto é, aproxima-se a data em que o Estado do Rio de Janeiro, além de outros entes estaduais, deverá editar Código de Ética e Disciplina para reger a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar fluminenses com observância à inconstitucional vedação de medida privativa e restritiva de liberdade"(p. 23 do doc. eletrônico 1).

Ao final, requer:

"(i) a concessão de cautelar inaudita altera parte , suspendendo-se a vigência do dispositivo VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade contido no artigo da Lei nº 13.967, de 26 de dezembro de 2019, por violação aos artigos ; 5º, inciso LXI; 18; 22, inciso XXI; 42, § 1º c/c 142, § 3º, inciso X; e 61, § 1º, inciso II, alínea f; todos da Constituição da

República;

[...]

(v) [...] seja declarada a inconstitucionalidade do dispositivo VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade contido no artigo º da Lei nº 13.967 7, de 26 de dezembro de 2019, por violação aos artigos º;5ºº, inciso LXI;188;222, inciso XXI;422,§ 1ºº c/c1422,§ 3ºº, inciso X; e 61, § 1º, inciso II, alínea f; todos da Constituição da República"(p. 24 do doc. eletrônico 1).

Adotei o rito abreviado do art. 12 da Lei 9.868/1999.

A Presidência da República prestou informações (doc. eletrônico 13) anotando que

"[a] lei ordinária da União poderá dispor sobre alistamento e elegibilidade de militar; aposentadoria ou reforma de militar; e cabimento de habeas corpus e punições disciplinares militares; e (b) a lei estadual específica poderá dispor sobre o ingresso nas Forças Militares, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades".

O Senado Federal também se manifestou em sentido semelhante (doc. eletrônico 19), porém a Câmara dos Deputados deixou de apresentar alegações (doc. eletrônico 21).

A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela constitucionalidade formal e material do diploma normativo sob ataque (doc. eletrônico 41), em parecer assim ementado:

"Administrativo. Artigo da Lei nº 13.967/2019, na parte em que altera o artigo 18, inciso VII do Decreto-Lei nº 667/1969,

‘[...] para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal [...]’. Alegada ofensa aos artigos ; , incisos LIV e LXI; 18; 22, inciso XXI; 42, § 1º; 61, § 1º, inciso II, alínea ‘f’; 142, § 2º e § 3º, inciso X e 144, § 6º, todos da Constituição da Republica. A norma sob invectiva não regula diretamente o regime jurídico dos militares estaduais, mas tem caráter principiológico para a fixação das sanções administrativas, a ser realizada pela legislação estadual. A competência dos Estados prevista no artigo 42, § 1º, da Constituição Federal não inibe o exercício da competência privativa da União para dispor sobre a organização e garantias das polícias militares e corpos de bombeiros militares (artigo 22, inciso XXI, da Carta de 1988).

Inexistência de mandamento constitucional que imponha a previsão de penas restritivas de liberdade no âmbito administrativo militar. Matéria sujeita à discricionariedade legislativa. O princípio veiculado na disposição questionada tem âmbito restrito de aplicação e não representa obstáculo ao respeito da hierarquia e da disciplina. Manifestação pela improcedência do pedido formulado".

O Procurador-Geral da República, de seu turno, opinou pela procedência do pedido para que seja declarada inconstitucional a Lei 13.967/2019, nos termos abaixo (doc. eletrônico 47):

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 13.967/2019. PRISÃO DISCIPLINAR. POLÍCIAS MILITARES E BOMBEIROS MILITARES. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO DE INICIATIVA ( CF, ART. 61, § 1º, II, ‘C’ E ‘F’). HIERARQUIA E DISCIPLINA. PRISÃO DISCIPLINAR. REGIME ESPECIAL DE SUJEIÇÃO. ARTS. 42, § 1º, E 142, §§ 2º E , DA CONSTITUIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL. INTERDEPENDÊNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE POR ARRASTAMENTO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Lei de iniciativa parlamentar que trate sobre regime jurídico-disciplinar dos militares estaduais padece de inconstitucionalidade formal, pois a deflagração do processo legislativo em tal matéria sujeita-se à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo ( CF, art. 61, § 1º, II, ‘c’ e ‘f’). Precedentes. 2. Por força do art. 42, § 1º, da Constituição Federal, aplicam-se aos militares dos estados- membros, do Distrito Federal e dos territórios as disposições do art. 142, § 2º, da Lei Maior, do qual decorre o caráter administrativo da prisão disciplinar, uma vez que não admitida a impetração de habeas corpus contra punições disciplinares a militares. 3. Disciplina e hierarquia são vetores constitucionais estruturantes das instituições militares e pilares que as distinguem das demais organizações civis ou sociais, sendo conformadores de regime jurídico especialíssimo que diferencia, em termos de exercício de direitos individuais, os militares dos servidores públicos civis e dos demais cidadãos. Precedentes. 4. A prisão por transgressão disciplinar ( CF, art. , LXI)é instituto que concretiza a hierarquia e a disciplina, vetores essenciais à vida na caserna, em razão das particularidades do serviço público militar. 5. Lei Federal que promove a extinção da prisão administrativa disciplinar a militares estaduais - Força Auxiliar e Reserva do Exército ( CF, art. 144, § 6º)-, esvazia a simetria e o teor dos preceitos constitucionais aplicáveis a polícias militares e bombeiros militares, que também se submetem à organização com base na hierarquia e na disciplina ( CF, art. 42, caput). 6. É inconstitucional lei federal que, a pretexto de exercer competência para edição de normas gerais de caráter principiológico ( CF, art. 22, XXI, e 177, § 7º), impeça a incidência de normas constitucionais originárias, a caracterizar discrímen sem respaldo jurídico-normativo. - Parecer pela procedência do pedido, a fim de que seja declarada inconstitucional a Lei 13.967/2019".

Por entender que os autos estavam suficientemente instruídos, indeferi os pedidos de ingresso na condição de amici curiae de todas as entidades postulantes, a saber: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (doc. eletrônico 22), Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (doc. eletrônico 28), Federação Nacional das Entidades Representativas de Praças Policiais e Bombeiros Militares Estaduais - ANASPRA (doc. eletrônico 30) e Estado do Mato Grosso do Sul (doc. eletrônico 45).

O Desembargador Maurício Caldas Lopes, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, comunicou que determinou"a suspensão do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade supramencionado, no aguardo do pronunciamento a propósito do tema por essa Egrégia Corte Suprema na ADI nº 6.595-DF, em ordem a que evite decisões eventualmente conflitantes"(doc. eletrônico 27).

18/12/2021 PLENÁRIO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595 DISTRITO FEDERAL

VOTO

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Bem examinados os autos, tenho que é caso de declarar inconstitucional o diploma normativo em questão, quando mais não seja, por evidente vício de iniciativa.

Com efeito, a Lei Federal 13.967/2019, ora impugnada, na prática, extinguiu a pena de prisão disciplinar no âmbito das policias militares e dos corpos de bombeiros militares,"ao argumento de conferir caráter humanista e garantista, voltado para outros instrumentos de controle interno, adequando a legislação disciplinar militar aos patamares civilizatórios atuais"(p. 6 do doc. eletrônico 47).

Esse diploma legal foi editado com o escopo de alterar o artigo 18 do Decreto-Lei 667, de 1969 - que reorganizava tais corporações - cuja redação original era a seguinte:

"Art 18. As Polícias Militares serão regidas por Regulamento Disciplinar redigido à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada Corporação".

O novo texto legal, todavia, no ponto que constitui o objeto central da controvérsia, consigna, repito, o quanto segue:

"Art. 18. As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina, aprovado por lei estadual ou federal para o Distrito Federal, específica, que tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Disciplina Militares, observados, dentre outros, os seguintes princípios:

[...]

VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade "(grifei).

A norma questionada resultou - segundo antes destacado - da aprovação do Projeto de Lei 7.645/2014, de autoria parlamentar. Ocorre, porém, que a iniciativa para o exercício dessa competência não é do Poder Legislativo. Com efeito, a orientação desta Suprema Corte aponta no sentido de que, no tocante ao regime jurídico dos integrantes das Forças Armadas, a iniciativa de lei é reservada ao chefe do Poder Executivo Federal, por força do artigo 61, § 1º, II, f, da Constituição.

No entanto, quando se trata do regime jurídico de servidores militares estaduais e distritais, a jurisprudência do STF é pacífica ao concluir pela reserva da iniciativa do Chefe do Executivo local, por força do princípio da simetria.

Destaco, por oportuno, algumas ementas de julgados nessa linha:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL QUE DISPÕE SOBRE REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES MILITARES DO ESTADO DE RONDÔNIA. PROJETO ORIGINADO NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VÍCIO RECONHECIDO. VIOLAÇÃO À RESERVA DE INICIATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I - A luz do princípio da simetria, a jurisprudência desta Suprema Corte é pacífica ao afirmar que, no tocante ao regime jurídico dos servidores militares estaduais, a iniciativa de lei é reservada ao Chefe do Poder Executivo local por força do artigo 61, § 1º, II, f, da

Constituição. II - O vício formal não é superado pelo fato de a iniciativa legislativa ostentar hierarquia constitucional. III - Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 148-A da Constituição do Estado de Rondonia e do artigo 45 das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta local, ambos acrescidos por meio da Emenda Constitucional 56, de 30 de maio de 2007"( ADI 3.930/RO, de minha relatoria - negritei).

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 7.203/2010 DO ESTADO DE ALAGOAS, DE INICIATIVA PARLAMENTAR. CRIAÇÃO DE LICENÇA PARA OS POLICIAIS E BOMBEIROS MILITARES ESTADUAIS EM RAZÃO DO DESEMPENHO DE MANDATO CLASSISTA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO PARA A ELABORAÇÃO DE LEIS QUE DISPONHAM SOBRE REGIME JURÍDICO E REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES MILITARES ESTADUAIS (ARTIGO 61, § 1º, II, A, C E F, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDA E JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO. 1. A reserva legal e a iniciativa do processo legislativo são regras básicas do processo legislativo federal, de observância compulsória pelos demais entes federativos, mercê de implicarem a concretização do princípio da separação e independência dos Poderes. Precedentes: ADI 2.873, rel. min. Ellen Gracie, Plenário, DJe de 9/11/2007; ADI 637, rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 1º/10/2004; e ADI 766, rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 11/12/1998. 2. A iniciativa das leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores estaduais, bem como sobre a remuneração dos servidores civis e militares da administração direta e autárquica estadual, compete aos Governadores dos Estados-membros, à luz do artigo 61, § 1º, II, a, c, e f, da Constituição Federal, que constitui norma de observância obrigatória pelos demais entes federados, em respeito ao princípio da simetria . Precedentes: ADI 3.295, rel. min. Cezar Peluso, Plenário, DJe de 5/8/2011; ADI 3.930, rel. min. Ricardo Lewandowski, Plenário, DJe de 23/10/2009; e ADI 3.555, rel. min. Cezar Peluso, Plenário, DJe de 8/5/2009. 3. In casu , a Lei 7.203/2010 do Estado de Alagoas, de origem parlamentar, ao instituir modalidade de licença para os policiais e bombeiros militares estaduais em razão do desempenho de mandato classista, usurpou a iniciativa do chefe do Poder Executivo para a elaboração de leis que disponham sobre regime jurídico e remuneração dos servidores militares estaduais. 4. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida e julgado procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade da Lei 7.203/2010 do Estado de Alagoas"( ADI XXXXX/AL, Rel. Min. Luiz Fux - grifei).

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INC. IV DO ART. 48 DA CONSTITUIÇÃO DO PARÁ E LEI ESTADUAL 5.652/1991. INSTITUIÇÃO DE ADICIONAL DE INTERIORIZAÇÃO A SERVIDORES MILITARES. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. COMPETÊNCIA DE GOVERNADOR PARA INICIATIVA DE LEI SOBRE REGIME JURÍDICO E REMUNERAÇÃO DE MILITARES ESTADUAIS. PRINCÍPIO DA SIMETRIA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO"( ADI XXXXX/PA, Rel. Min. Cármen Lúcia).

Como se pode ver, a norma contestada, promulgada sob os auspícios da União, dispõe sobre o regime jurídico dos policiais militares e bombeiros militares dos Estados e do Distrito Federal.

Pois bem. A Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso XXI, outorgou à União a competência privativa para legislar sobre"normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares"(grifei).

Logo, não há duvida de que, muito embora o art. 42 da Carta Magna consigne que os membros das polícias militares e corpos de bombeiros constituam servidores das distintas unidades federadas, o estabelecimento de normas gerais concernentes a estes ficou ao encargo da União.

Convém registrar, todavia, que esta Suprema Corte, em julgamento recentíssimo, num feito relatado pelo Ministro Alexandre de Moraes, estabeleceu a correta delimitação do conceito de normas gerais quando se trata da organização das polícias militares e corpos de bombeiros militares , conforme se constata a partir da leitura do excerto do voto a seguir transcrito:

"Com efeito, nos termos do artigo 22, XXI, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares.

Por outro lado, o legislador constituinte delegou aos Estados a competência legislativa para tratar das especificidades atinentes aos temas previstos no artigo 142, § 3º, X, da Constituição em relação aos militares que lhes preste serviço. É o que se depreende da leitura do art. 42, § 1º, abaixo destacado:

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.

O artigo 142, § 3º, X, por sua vez, dispõe que a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.

De fato, a concepção de normas de caráter geral relaciona-se ao estabelecimento de diretrizes e de princípios fundamentais regentes de determinada matéria, sem ser possível ao legislador federal lançar mão de disciplina relativa a peculiaridades ou especificidades locais, descendo indevidamente a minúcias normativas mais condizentes com a atividade do legislador estadual ou municipal . A compreensão da terminologia diretrizes e princípios fundamentais não pode ser ampliada a ponto de tolher a capacidade de produção normativa conferida pela Constituição aos demais entes federativos, sob pena de se vulnerar o pacto federativo.

Nesse sentido, é necessário considerar, tal como oportunamente destacado pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que problema sério, na questão da competência concorrente, é a demarcação do âmbito normativo das chamadas ́normas gerais ́. E, nesse ponto, como assinalou o Ministro NELSON JOBIM, essa competência federal do art. 22, inciso XXI, para legislar sobre ́normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares ́ , há que ser interpretada restritivamente, dentro de princípios básicos da organização federativa: ela só se justifica em termos da imbricação dos prismas gerais da estruturação das polícias militares com o seu papel de ́forças auxiliares e reserva do Exército ́ "( ACO XXXXX/DF, Rel. Min. Alexandre de

Moraes, grifei).

Essa delimitação se explica porque, embora o art. 144, § 6º, da CF, pontue que as polícias militares e os corpos de bombeiro configurem forças auxiliares e reserva do Exército, o mesmo dispositivo constitucional também consigna que elas se subordinam aos Governadores de Estado e do Distrito Federal , pois a segurança pública dos entes federados é matéria que se coloca sob sua competência destes 1 .

Diante do entendimento doutrinário e jurisprudencial acima exposto, não há como deixar de concluir que, na espécie, está-se diante de patente usurpação da iniciativa legislativa dos Governadores. Mesmo que se entenda - a meu ver equivocadamente - que a Lei atacada dispõe sobre"normas gerais", ainda assim estar-se-ia diante de um incontornável vício de inconstitucionalidade formal , porquanto o Congresso Nacional, ao aprovar a Lei 13.967/2019, de origem parlamentar, quando menos, invadiu a esfera de competência privativa do Chefe do Executivo Federal, de nada valendo a sanção presidencial para sanar tal mácula. Transcrevo abaixo, para reforçar tal compreensão, trecho do parecer ministerial:

"[...] a circunstância de a Lei 13.967/2019 ter objetivado estabelecer disciplina geral por lei nacional acerca do regime disciplinar de policiais militares e bombeiros militares ( CF, art. 22, XXI, e 144, § 7º) não afasta a iniciativa reservada do Presidente da República para dispor sobre a matéria. É que, conforme esclarece José Afonso da Silva, ‘iniciativa reservada é a que compete a um só dos titulares do poder de iniciativa, com exclusão de qualquer outro titular’. Além disso, a sanção da Lei 13.967/2019 pelo Presidente da República não tem o efeito de convalidar o vício de iniciativa".

Mesmo que fosse possível superar esse óbice de natureza formal, não há como deixar de constatar que o diploma normativo também padece do vício de inconstitucionalidade material. Sim, porque, embora as polícias militares e corpos de bombeiros militares dos entes federados subordinem-se ao aos Governadores, elas também configuram forças auxiliares e reserva do Exército, nos termos dos arts. 42 e 144, § 6º, da Constituição, acionáveis, como tal, em circunstâncias excepcionais, a exemplo de uma situação de guerra. Tais corporações, juntamente com as demais polícias de natureza civil, têm a incumbência de - portando armas letais - preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Não por outra razão é que os servidores militares estaduais e distritais, à semelhança dos integrantes das Forças Armadas, submetem- se a um regime jurídico diferenciado , o qual se distingue daquele concernente aos servidores civis," desde a forma de investidura, até as formas de inatividade ", segundo José Afonso da Silva 2 .

É que tais servidores têm como valores estruturantes de sua atividade a hierarquia e a disciplina , a teor dos arts. 42, caput, e 142, caput , da CF, exatamente para que desempenhem o seu delicadíssimo múnus público dentro dos parâmetros da mais rigorosa legalidade. José Afonsa da Silva, acima mencionado, citando Seabra Fagundes, assim descreve esses dois pilares das organizações castrenses:

"Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento , pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, às ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores . A disciplina é, assim, um corolário de toda a organização hierárquica"(grifei) 3 .

Não foi outra a conclusão a que chegou esta Suprema Corte quando do julgamento do RE XXXXX/MG, de minha relatoria, ao assentar que"o regime a que submetem os militares não se confunde com aquele aplicável aos servidores civis, visto que aqueles têm direitos, garantias, prerrogativas e impedimentos próprios"(grifei).

É que, dada a alta relevância de sua importante missão, afigura-se perfeitamente compreensível que o constituinte de 1988 lhes tenha reservado um regime dotado de peculiaridades próprias, condizentes com o exercício da sensível função de" braço armado "estatal, diferenciando-se, portanto, da categoria dos servidores civis, os quais não respondem - ao menos diretamente - pela manutenção da paz e ordem social.

Não se pode olvidar, ademais, que os direitos e deveres dos militares são definidos nos respectivos regulamentos, observados os dispositivos constitucionais aplicáveis, a saber, art. 44, §§ 1º e , da CF, para os entes federados, e art. 142, § 3º, também da Lei Maior, para as Forças Armadas, destacando-se a proibição de sindicalização e greve.

Essa última restrição é explicada pelo Ministro Alexandre de Moraes, em sede acadêmica, da seguinte maneira:

"Não me parece outra a razão da previsão do Pacto de São José da Costa Rica, que autoriza, inclusive, a privação do exercício do direito de associação aos membros de carreiras policiais. No mesmo sentido, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, que autoriza restrições à liberdade de reunião, associação e sindicalização às carreiras policiais, visando à garantia da segurança pública, à defesa da ordem e à prevenção do crime. E, ainda, o Pacto Internacional de Direitos Civis e

Políticos, que, em seu artigo 22, estabelece expressamente a possibilidade de restrições legais ao exercício do direito de associação aos membros de carreiras policiais, no sentido de proteger a segurança e ordem públicas"4 .

E aqui cabe pontuar que a própria Constituição Federal , de forma clara e inequívoca, autoriza a prisão de militares, por determinação de seus superiores hierárquicos , caso transgridam regras concernentes ao regime jurídico ao qual estão sujeitos, dispondo o art. , LXI, quanto a essa particularidade, o seguinte:"ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,"salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar , definidos em lei"(grifei).

Esse regime peculiar, inclusive, autoriza, no concernente aos militares, que se restrinja o alcance do denominado "remédio heroico", amplamente assegurado às demais pessoas. Veja-se o que o texto constitucional consigna, a propósito, em seu art. 142, § 2º: "Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares" (grifei).

Não bastasse a interpretação literal dos mencionados dispositivos constitucionais - incontornável, considerada a antiga máxima hermenêutica in claris cessat interpretatio -, a leitura sistemática da Carta Magna também leva à conclusão de que as limitações impostas aos servidores militares visam a atender à supremacia do bem coletivo em detrimento de interesses particulares, até pela força, se necessário.

Essa é a razão pela qual o eixo estruturante do regime especial a que estão submetidos os servidores militares leva em conta a natureza peculiar de suas atribuições, o qual gira em torno da subordinação hierárquica e da submissão disciplinar aos respectivos comandantes. Essas características têm por finalidade a salvaguarda de valores basilares da vida castrense, dentre os quais avulta o pronto e estrito cumprimento das missões que lhes são cometidas, sem quaisquer desvios ou tergiversações, sobretudo considerada a potencial letalidade de suas ações, que cresce exponencialmente quando executadas fora dos lindes da legalidade.

Isso posto, voto pela procedência do pedido para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal 13.967/2019.

18/12/2021 PLENÁRIO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

EMENTA: CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI FEDERAL 13.967/2019 E ALTERAÇÃO NO REGIME JURÍDICO DOS MILITARES ESTADUAIS. DESRESPEITO À COMPETÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS PARA REGULAMENTAÇÃO DE SUAS FORÇAS DE SEGURANÇA (ART. 42, § 1º, C/C ART. 142, § 3, X, DA CF). INICIATIVA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. INCONSTITUCIONALIDADES FORMAIS. PERFIL CONSTITUCIONAL DAS INSTITUIÇÕES MILITARES APLICÁVEIS À POLICIA MILITAR. EXPRESSA PREVISÃO CONSTITUCIONAL DE PRISÃO DISCIPLINAR E NÃO CABIMENTO DE HABEAS CORPUS (ART. 42, § 1º C/C ART. 142, § 2º E ART. 5º, LXI). INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA VEDAÇÃO DE MEDIDAS DISCIPLINARES DE RESTRIÇÃO DA LIBERDADE. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.

1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse.

2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos União,

Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União ( CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios ( CF, arts. 24 e 30, inciso I).

3. A Constituição atribuiu aos Estados a competência para tratar do regime jurídico e disciplinar dos militares estaduais, conforme o art. 42, § 1º, c/c art. 142, § 3º, X, da CF; estabelecendo expressamente que "não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares". Inconstitucionalidade formal.

4. Processo legislativo iniciado por parlamentar, quando a Constituição Federal (art. 61, § 1º, II, c e f) reserva ao chefe do Poder Executivo estadual a iniciativa de leis que tratem do regime jurídico de servidores desse Poder ou que modifiquem a competência e o funcionamento de órgãos administrativos. Inconstitucionalidade formal.

5. A Constituição Federal expressamente tratou do prisão disciplinar dos militares estaduais, excetuando-a da exigência de autorização judicial (art. , LXI, da CF) e do cabimento de habeas corpus (art. 42, § 1º c/c art. 142, § 2º, da CF), a revelar aspecto característico da instituições fundadas na hierarquia e disciplina, que não pode ser mitigado pelo legislador. Inconstitucionalidade material.

6. Ação Direta julgada procedente.

VOTO

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Em complemento ao relatório lançado pelo Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, anoto que o caso trata de Ação Direta proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro em face do art. da Lei Federal 13.967/2019, que conferiu nova redação ao art. 18 do Decreto-lei 667/1969, diploma normativo que trata da organização das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros

Militares dos Estados e do Distrito Federal.

O referido art. 18 passou a vigorar com a seguinte redação.

Art. 18. As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina, aprovado por lei estadual ou federal para o Distrito Federal, específica, que tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Disciplina Militares, observados, dentre outros, os seguintes princípios:

I - dignidade da pessoa humana;

II - legalidade;

III - presunção de inocência;

IV - devido processo legal;

V - contraditório e ampla defesa;

VI - razoabilidade e proporcionalidade;

VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade.

Suscita a inconstitucionalidade do objeto controlado, por vício de iniciativa, uma vez que o projeto de lei que o concebeu fora apresentado por parlamentar, ofendendo a separação de poderes (art. 2º), assim como a iniciativa privativa do Presidente da República para regular o regime jurídico dos militares das Forças Armadas (art. 61, § 1º, II, f).

Por outro lado, ao regulamentar medidas disciplinares, a lei federal teria ofendido a competência legislativa dos estados-membros para disciplinar, por lei própria, matérias relacionadas direitos, deveres e prerrogativas de seus respectivos servidores militares estaduais (arts. 42, § 1º, e 142, § 3º, X), violando igualmente sua autonomia (art. 18).

Ainda que considerada norma geral, editada sob competência legislativa federal para regular determinadas matérias afeitas aos servidores militares estaduais (art. 22, XXI), o objeto teria desvirtuado o paradigma permissivo que autoriza a "restrição de liberdade como sanção a ser imposta em desfavor de militares pelo cometimento de infrações disciplinares" (art. 5º, LXI), em contradição com o preceito que veda a concessão de habeas corpus para punições disciplinares militares (art. 142, § 2º), proibição expressamente estendida aos estados-membros pela Constituição. (art. 42, § 1º).

Aduz que as polícias militares, enquanto forças auxiliares e reserva do Exército (art. 144, § 6º), não poderiam sofrer disciplina sem "penalidade essencial à garantia da disciplina em situações mais graves", ao passo que os próprios integrantes do Exército continuariam submetidos ao regime mais gravoso.

Por fim, aponta para a vulneração do princípio da hierarquia e disciplina que conforma a função militar (arts. 42 e 142), do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV) por comprometer o exercício do poder disciplinar e da proteção constitucional dada à prisão disciplinar militar (art. 5º, LXI, e art. 142, § 2º).

Requer cautelarmente a suspensão da "vigência do dispositivo ‘VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade’ contido no artigo da Lei nº 13.967, de 26 de dezembro de 2019" e, definitivamente, "seja declarada a inconstitucionalidade do dispositivo ‘VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade’ contido no artigo da Lei nº 13.967, de 26 de dezembro de 2019".

O Senado Federal prestou informações (doc. 19), defendendo o objeto impugnado pois "objetivo principal da legislação é, portanto, consolidar normas que estabeleçam instrumentos de controle interno eficazes, com punições rígidas e rigorosas, sem que sejam excessivas, desproporcionais". Salienta, ainda, que o art. , LXI, da Constituição, é norma de eficácia contida, capaz de sofrer limitação pela legislação infraconstitucional, caracterizando a prisão disciplinar como mera faculdade e não obrigação do Estado.

A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela improcedência do pedido (doc. 42) pois a norma controlada "não se imiscui no regime jurídico dos servidores militares estaduais, mas estabelece norma organizacional de cunho geral", pautada na competência da União para legislar sobre a organização e as garantias das polícias militares. Eis o teor da ementa:

Administrativo. Artigo da Lei nº 13.967/2019, na parte em que altera o artigo 18, inciso VII do Decreto-Lei nº 667/1969, para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal (...)". Alegada ofensa aos artigos ; , incisos LIV e LXI; 18; 22, inciso XXI; 42, § 1º; 61, § 1º, inciso II, alínea f; 142, § 2º e § 3º, inciso X e 144, § 6º, todos da Constituição da Republica. A norma sob invectiva não regula diretamente o regime jurídico dos militares estaduais, mas tem caráter principiológico para a fixação das sanções administrativas, a ser realizada pela legislação estadual. A competência dos Estados prevista no artigo 42, § 1º, da Constituição Federal não inibe o exercício da competência privativa da União para dispor sobre a organização e garantias das polícias militares e corpos de bombeiros militares (artigo 22, inciso XXI, da Carta de 1988). Inexistência de mandamento constitucional que imponha a previsão de penas restritivas de liberdade no âmbito administrativo militar. Matéria sujeita à discricionariedade legislativa. O princípio veiculado na disposição questionada tem âmbito restrito de aplicação e não representa obstáculo ao respeito da hierarquia e da disciplina. Manifestação pela improcedência do pedido formulado.

A Procuradoria-Geral da República opinou pela procedência do pedido (doc. 47), para que seja declarado inconstitucional o dispositivo hostilizado, por vício de iniciativa e por esvaziar o regime pautado em disciplina e hierarquia, em parecer assim ementado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 13.967/2019. PRISÃO DISCIPLINAR. POLÍCIAS MILITARES E BOMBEIROS MILITARES. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO DE INICIATIVA ( CF, ART. 61, § 1º, II, C E F). HIERARQUIA E DISCIPLINA. PRISÃO DISCIPLINAR.

REGIME ESPECIAL DE SUJEIÇÃO. ARTS. 42, § 1º, E 142, §§ 2º E , DA CONSTITUIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL. INTERDEPENDÊNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE POR ARRASTAMENTO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. Lei de iniciativa parlamentar que trate sobre regime jurídico-disciplinar dos militares estaduais padece de inconstitucionalidade formal, pois a deflagração do processo legislativo em tal matéria sujeita-se à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo ( CF, art. 61, § 1º, II, c e f). Precedentes.

2. Por força do art. 42, § 1º, da Constituição Federal, aplicam-se aos militares dos estados-membros, do Distrito Federal e dos territórios as disposições do art. 142, § 2º, da Lei Maior, do qual decorre o caráter administrativo da prisão disciplinar, uma vez que não admitida a impetração de habeas corpus contra punições disciplinares a militares.

3. Disciplina e hierarquia são vetores constitucionais estruturantes das instituições militares e pilares que as distinguem das demais organizações civis ou sociais, sendo conformadores de regime jurídico especialíssimo que diferencia, em termos de exercício de direitos individuais, os militares dos servidores públicos civis e dos demais cidadãos. Precedentes.

4. A prisão por transgressão disciplinar ( CF, art. , LXI)é instituto que concretiza a hierarquia e a disciplina, vetores essenciais à vida na caserna, em razão das particularidades do serviço público militar.

5. Lei Federal que promove a extinção da prisão administrativa disciplinar a militares estaduais - Força Auxiliar e Reserva do Exército ( CF, art. 144, § 6º)-, esvazia a simetria e o teor dos preceitos constitucionais aplicáveis a polícias militares e bombeiros militares, que também se submetem à organização com base na hierarquia e na disciplina ( CF, art. 42, caput).

6. É inconstitucional lei federal que, a pretexto de exercer

competência para edição de normas gerais de caráter principiológico ( CF, art. 22, XXI, e 177, § 7º), impeça a incidência de normas constitucionais originárias, a caracterizar discrímen sem respaldo jurídico-normativo.

- Parecer pela procedência do pedido, a fim de que seja declarada inconstitucional a Lei 13.967/2019.

Iniciado o julgamento virtual, o Ministro Relator apresenta voto em que conclui pela inconstitucionalidade da norma, entendendo que: (a) a matéria seria de iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo; (b) a competência da União para legislar sobre normas gerais de organização e funcionamento das polícias e corpos de bombeiros militares (art. 22, XXI, da CF) não permitiria a alteração do regime jurídico de militares estaduais; (c) a vedação à aplicação de medidas disciplinares de restrição da liberdade seriam materialmente inconstitucional, em vista dos arts. , LXI, 42 e 142 da Constituição.

É o relato do essencial.

De início, indico que ACOMPANHO INTEGRALMENTE o voto proferido pelo eminente Ministro Relator.

A alegação de inconstitucionalidade formal merece ser acolhida, tanto em relação aos desrespeito às regras de distribuição de competência, quanto em relação à iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo.

A Lei 13.967/2019 pretendeu dispor sobre o regime de militares com abrangência nacional, impondo o regime disciplinar editado para o Distrito Federal a todos os demais entes federativos. Assim o fazendo, o legislador federal exorbitou de sua competência constitucional, uma vez que, além de o desempenho das atividades de segurança pública ser atribuição material também conferida aos Estados, incumbindo-lhes a edição de atos normativos que regulem o exercício dessa atividade, o texto constitucional consignou regra específica a respeito da competência legislativa para a regulamentação do estatuto dos militares estaduais, sujeitos à direção superior dos Governadores

Conforme dispõe o art. 22 , XXI, da CF, é competência da União legislar sobre"normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares", como também sobre a"competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais".

No entanto, a norma atacada não encontra fundamento válido na competência legislativa prevista no art. 22, XXI, da CF, pois não é dotada de generalidade: regula o regime jurídico dos militares estaduais. Com proibição da aplicação de uma específica medida disciplinar.

Há, em primeiro lugar, o malferimento do princípio da autonomia estadual (art. 25 da CF), pelo qual os Estados são dotados de liberdade para se auto-organizarem e administrarem. Consectário lógico dessa autonomia é a competência para regulamentarem o regime jurídico de seus servidores, a organização administrativa de seus órgãos e repartições, a prestação de serviços públicos de interesse da população, como é o caso das atividades de segurança pública.

Conforme já me manifestei em outros precedentes editados pela CORTE, em especial a ADI 4173 e a ACO 3396, cumpre ressaltar que o federalismo e suas regras de distribuição de competências legislativas são um dos grandes alicerces da consagração da fórmula Estado de Direito , que, conforme salientado por PABLO LUCAS VERDÚ, ainda exerce particular fascinação sobre os juristas. Essa fórmula aponta a necessidade de o Direito ser respeitoso com as interpretações acerca de diferentes dispositivos constitucionais que envolvem diversas competências legislativas, para que se garanta a previsão do legislador constituinte sobre a divisão dos centros de poder entre os entes federativos, cuja importância é ressaltada tanto por JORGE MIRANDA (Manual de direito constitucional. 4. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1990, t. 1, p. 13-14), quanto por JOSÉ GOMES CANOTILHO (Direito constitucional e teoria da Constituição. Almedina, p. 87).

A essencialidade da discussão não está na maior ou na menor importância do assunto específico tratado pela legislação, mas sim, na observância respeitosa à competência constitucional do ente federativo para editá-la (MAURICE DUVERGER. Droit constitutionnel et institutions politiques. Paris: Prees Universitaires de France, 1955. p. 265 e ssss.), com preservação de sua autonomia e sem interferência dos demais entes da federação, pois, como salientado por LUCIO LEVI:

"a federação constitui, portanto, a realização mais alta dos princípios do constitucionalismo. Com efeito, a ideia do Estado de direito, o Estado que submete todos os poderes à lei constitucional, parece que pode encontrar sua plena realização somente quando, na fase de uma distribuição substancial das competências, o Executivo e o Judiciário assumem as características e as funções que têm no Estado Federal". (NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI, GIANFRANCO PASQUINO (Coord.). Dicionário de política. v. I, p. 482).

O equilíbrio na interpretação constitucional sobre a distribuição de competências na história do federalismo iniciou com a Constituição norte-americana de 1787. A análise de suas características e consequências, bem como do desenvolvimento de seus institutos vem sendo realizada desde os escritos de JAY, MADISON e HAMILTON, nos artigos federalistas, publicados sob o codinome Publius , durante os anos de XXXXX-1788, até os dias de hoje, e mostra que se trata de um sistema baseado principalmente na consagração da divisão constitucional de competências, para a manutenção de autonomia dos entes federativos e equilíbrio no exercício do poder (THOMAS McINTYRE COOLEY. The general principles of constitutional law in the United States of America. 3. ed. Boston: Little, Brown and Company, 1898. p. 52; DONALD L. ROBINSON. To the best of my ability: the presidency the constitution . New York: W. W. Norton & Company, 1987. p. 18-19). Em 1887, no primeiro centenário da Constituição norte-americana, o estadista inglês WILLIAM GLADSTONE, um dos mais influentes primeiros-ministros ingleses, afirmou que se tratava da"mais maravilhosa obra jamais concebida"pelo homem, por equilibrar o exercício do poder.

É importante salientar, dentro dessa perspectiva da"mais maravilhosa obra jamais concebida", que a questão do federalismo e do equilíbrio entre o Poder Central e os Poderes Regionais foi das questões mais discutidas durante a Convenção norte-americana, pois a manutenção do equilíbrio Democrático e Republicano, no âmbito do Regime Federalista, depende do bom entendimento, da definição, da fixação de funções, dos deveres e das responsabilidades entre os três Poderes, bem como da fiel observância da distribuição de competências legislativas, administrativas e tributárias entre União, Estados e Municípios, característica do Pacto Federativo, consagrado constitucionalmente no Brasil, desde a primeira Constituição Republicana, em 1891, até a Constituição Federal de 1988.

A Federação, portanto, nasceu adotando a necessidade de um poder central, com competências suficientes para manter a união e a coesão do próprio País, garantindo-lhe, como afirmado por HAMILTON, a oportunidade máxima para a consecução da paz e da liberdade contra o facciosismo e a insurreição (The Federalist papers, IX), permitindo à União realizar seu papel aglutinador dos diversos Estados-Membros e de equilíbrio no exercício das diversas funções constitucionais delegadas aos três poderes de Estado.

Durante a evolução do federalismo, passou-se da ideia de três campos de poder mutuamente exclusivos e limitadores, segundo a qual a União, os Estados e os Municípios teriam suas áreas exclusivas de autoridade, para um novo modelo federal baseado principalmente na cooperação, como salientado por KARL LOEWENSTEIN (Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1962. p. 362).

O legislador constituinte de 1988, atento a essa evolução, bem como sabedor da tradição centralizadora brasileira, tanto obviamente nas diversas ditaduras que sofremos, quanto nos momentos de normalidade democrática, instituiu novas regras descentralizadoras na distribuição formal de competências legislativas, com base no princípio da predominância do interesse, e ampliou as hipóteses de competências concorrentes, além de fortalecer o Município como polo gerador de normas de interesse local.

O princípio geral que norteia a repartição de competência entre os entes componentes do Estado Federal brasileiro é, desse modo, o princípio da predominância do interesse, não apenas para as matérias cuja definição foi preestabelecida pelo texto constitucional, mas também em termos de interpretação em hipóteses que envolvem várias e diversas matérias.

A própria Constituição Federal, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos, União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União ( CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios ( CF, arts. 24 e 30, inciso I).

Atuando dessa maneira, se, na distribuição formal de competências, houve um maior afastamento do federalismo centrípeto que sempre caracterizou a república brasileira, na distribuição material, nossas tradições históricas, político-econômicas e culturais, somadas ao próprio interesse do legislador constituinte, que permaneceria como poder constituído (Congresso Nacional), após a edição da Constituição de 1988, produziram grande generosidade do texto constitucional na previsão dos poderes enumerados da União, com a fixação de competência privativa para a maioria dos assuntos de maior importância legislativa.

Consequentemente, concordemos ou não, no texto da Constituição de 1988, as contingências históricas, político-econômicas e culturais mantiveram a concentração dos temas mais importantes no Congresso Nacional, em detrimento das Assembleias locais, como salientado por JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO (Teoria geral do federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 317), e facilmente constatado ao analisarmos o rol de competências legislativas da União estabelecidas no artigo 22 do texto constitucional.

Essa opção inicial do legislador constituinte, ao centralizar nos poderes enumerados da União ( CF, artigo 22) a maioria das matérias legislativas mais importantes, contudo, não afastou da Constituição de 1988 os princípios básicos de nossa tradição republicana federalista, que gravita em torno do princípio da autonomia, da participação política e da existência de competências legislativas próprias dos Estados/Distrito Federal e Municípios, indicando ao intérprete a necessidade de aplicá-los como vetores principais em cada hipótese concreta em que haja a necessidade de análise da predominância do interesse, para que se garanta a manutenção, o fortalecimento e, principalmente, o equilíbrio federativo (GERALDO ATALIBA. República e constituição . São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 10), que se caracteriza pelo respeito às diversidades locais, como bem salientado por MICHAEL J. MALBIN, ao apontar que a intenção dos elaboradores da Carta Constitucional Americana foi justamente estimular e incentivar a diversidade, transcendendo as facções e trabalhando pelo bem comum (A ordem constitucional americana . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 144), consagrando, ainda, a pluralidade de centros locais de poder, com autonomia de autogoverno e de autoadministração, para que se reforçasse a ideia de preservação da autonomia na elaboração do federalismo, como salientado por ALEXIS DE TOCQUEVILLE, ao comentar a formação da nação americana (Democracia na América: leis e costumes . São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 37 e ss.), que serviu de modelo à nossa Primeira Constituição Republicana, de 1891.

Nos regimes federalistas, respeitadas as opções realizadas pelo legislador constituinte e previamente estabelecidas no próprio texto constitucional, quando surgem dúvidas sobre a distribuição de competências e, consequentemente, a necessidade de definição do ente federativo competente para legislar sobre determinado e específico assunto, que engloba uma ou várias matérias com previsão ou reflexos em diversos ramos do Direito, caberá ao intérprete priorizar o fortalecimento das autonomias locais e o respeito às suas diversidades como pontos caracterizadores e asseguradores do convívio no Estado Federal, que garantam o imprescindível equilíbrio federativo (JUAN FERRANDO BADÍA. El estado unitário: El federal y El estado regional.

Madri: Tecnos, 1978, p. 77; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO. O Estado federal brasileiro na Constituição de 1988 . Revista de Direito Administrativo, n. 179, p. 1; RAUL MACHADO HORTA. Tendências atuais da federação brasileira . Cadernos de direito constitucional e ciência política, n. 16, p. 17; e, do mesmo autor: Estruturação da federação. Revista de Direito Público, n. 81, p. 53 e ss.; CARLOS MÁRIO VELLOSO. Estado federal e estados federados na Constituição brasileira de 1988: do equilíbrio federativo . Revista de Direito Administrativo, n. 187, p. 1 e ss.; JOSAPHAT MARINHO. Rui Barbosa e a federação . Revista de Informação Legislativa, n. 130, p. 40 e ss.; SEABRA FAGUNDES. Novas perspectivas do federalismo brasileiro . Revista de Direito Administrativo, n. 99, p. 1 e ss.).

Com efeito, em que pese a previsão do art. 22, XXI, da CF, o legislador constituinte delegou aos Estados a competência legislativa para tratar das especificidades atinentes aos temas previstos no artigo 142, § 3º, X, da Constituição em relação aos militares que lhes preste serviço.

É o que se depreende da leitura do art. 42, § 1º, abaixo destacado:

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.

O artigo 142, § 3º, X, por sua vez, dispõe que"a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra".

De fato, a concepção de normas de caráter geral relaciona-se ao estabelecimento de diretrizes e de princípios fundamentais regentes de determinada matéria, sem ser possível ao legislador federal lançar mão de disciplina relativa a peculiaridades ou especificidades locais, descendo indevidamente a minúcias normativas mais condizentes com a atividade do legislador estadual ou municipal. A compreensão da terminologia"diretrizes e princípios fundamentais"não pode ser ampliada a ponto de tolher a capacidade de produção normativa conferida pela Constituição aos demais entes federativos, sob pena de se vulnerar o pacto federativo.

Nesse sentido, é necessário considerar, tal como oportunamente destacado pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que" problema sério, na questão da competência concorrente, é a demarcação do âmbito normativo das chamadas ́normas gerais ́. E, nesse ponto, como assinalou o Ministro NELSON JOBIM, essa competência federal do art. 22, inciso XXI, para legislar sobre ́normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares ́, há que ser interpretada restritivamente, dentro de princípios básicos da organização federativa: ela só se justifica em termos da imbricação dos prismas gerais da estruturação das polícias militares com o seu papel de ́forças auxiliares e reserva do Exército ́ (Const., art. 144, § 6º) "( ADI 1.540, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, DJ de 16/11/2001).

No caso em apreço, a pretexto de editar normas gerais, veio a União a delimitar aspecto específico e sensível do regime disciplinar dos militares estaduais.

Em que pese as previsões dos incisos I a VI serem meramente expletivos de princípios que, em qualquer hipótese, incidiriam no tratamento da matéria por força da própria Constituição Federal, o inciso

VII -" vedação de medida privativa e restritiva de liberdade "- invade domínio normativo próprio e tradicionalmente exercido pelos Estados, por meio da edição de regulamentos disciplinares que usualmente preveem a prisão administrativa como medida necessária para a manutenção da hierarquia e disciplina das instituições militares.

Ainda que se admita a competência da União na matéria, a deflagração de processo legislativo seria reservada ao chefe do Poder Executivo, na forma do art. 61, § 1º, II, da CF, a seguir transcrito:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas; II - disponham sobre:

(...)

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.

No julgamento da ADI 2.867 (Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 9/2/2007), firmou-se a seguinte tese: A locução constitucional regime jurídico dos servidores públicos corresponde ao conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes. A distinção foi explorada com percuciência pelo Min. CELSO DE MELLO no julgamento da ADI 776 (DJ de 27/5/1994), quando discriminou as matérias que deveriam ser incluídas na cláusula de reserva de iniciativa tratada no art. 61, § 1º, II, c, da CF (grifos aditados):

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto e especialmente no que concerne ao sentido da locução constitucional regime jurídico dos servidores públicos , que esta expressão exterioriza o conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes.

Trata-se, em essência, de noção que, em virtude da extensão de sua abrangência conceitual, compreende todas as regras pertinentes (a) às formas de provimento; (b) às formas de nomeação; (c) à realização do concurso; (d) à posse; (e) ao exercício, inclusive as hipóteses de afastamento, de dispensa de ponto e de contagem de tempo de serviço; (f) às hipóteses de vacância; (g) à promoção e respectivos critérios, bem como avaliação do mérito e classificação final (cursos, títulos, interstícios mínimos); (h) aos direito e às vantagens de ordem pecuniária; (i) às reposições salariais e aos vencimentos; (j) ao horário de trabalho e ao ponto, inclusive os regimes especiais de trabalho; (k) aos adicionais por tempo de serviço, gratificações, diárias, ajudas de custo e acumulações remuneradas; (l) às férias, licenças em geral, estabilidade, disponibilidade, aposentadoria; (m) aos deveres e proibições;

(n) às penalidades e sua aplicação; (o) ao processo administrativo.

No caso em julgamento, já não haveria qualquer dúvida em concluir que, tratando-se de norma atinente ao regime jurídico de servidores do Poder Executivo, incidiria a regra que reserva ao chefe desse Poder a inciativa na proposição de leis que tratem de sanções disciplinares. E, considerando as previsões especiais constantes do texto constitucional a respeito dos militares, impõe-se reconhecer a inconstitucionalidade formal da norma impugnada.

Do ponto de vista material, deve-se registrar que a possibilidade de aplicação de medidas administrativas de restrição da liberdade de agentes públicos sujeitos à hierarquia e disciplina das instituições militares tem assento no próprio texto constitucional, como já destaquei academicamente (Direito constitucional. 37. ed. São Paulo: Atlas, 2021, capítulo 4. item 1.18).

O art. 142, § 2º, da Constituição Federal estabelece que não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. Essa previsão constitucional deve ser interpretada no sentido de que não haverá habeas corpus em relação ao mérito das punições disciplinares militares.

Da mesma maneira, o artigo , inciso LXI da Constituição Federal ao estabelecer que:

"ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".

Dessa forma, a Constituição Federal prevê expressamente a possibilidade de prisão disciplinar por transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, inclusive, afastando - em regra - a possibilidade de habeas corpus, o que não impede o exame pelo Poder Judiciário dos pressupostos de legalidade a saber: hierarquia, poder disciplinar, ato ligado à função e pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente ( HC 70648, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 09/11/1993, DJ de 4/31994)

Veja-se que, na vigência da Constituição Federal de 1946, PONTES DE MIRANDA (História e prática do habeas corpus. 4. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. p. 479) já admitia a possibilidade de habeas corpus para a presente hipótese e explicava que:

"quem diz transgressão disciplinar refere-se, necessariamente a (a) hierarquia, através da qual flui o dever de obediência e de conformidade com instruções, regulamentos internos e recebimentos de ordens, (b) poder disciplinar, que supõe: a atribuição de direito de punir, disciplinarmente, cujo caráter subjetivo o localiza em todos, ou em alguns, ou somente em algum dos superiores hierárquicos; (c) ato ligado à função;

(d) pena, suscetível de ser aplicada disciplinarmente, portanto,

sem ser pela Justiça como Justiça",

para concluir

"ora desde que há hierarquia, há poder disciplinar, há ato e há pena disciplinar, qualquer ingerência da Justiça na economia moral do encadeamento administrativo seria perturbadora da finalidade mesma das regras que estabelecem o dever de obediência e o direito de mandar".

Ressalte-se que a EC 18/1998 passou a prever expressamente matéria pacificada na doutrina e jurisprudência, sobre o não cabimento de habeas corpus também em relação ao mérito das punições disciplinares aplicadas aos militares dos Estados, do Distrito Federal e Territórios.

De fato, a prisão disciplinar sempre figurou na história constitucional brasileira, transparecendo nos preceitos que, ao tratarem da concessão de habeas corpus , impediam sua concessão para os casos de transgressão disciplinar ( CF/1934, CF/1937, CF/1946 e CF/1967).

No Anteprojeto Afonso Arinos, o instituto recebeu o mesmo tratamento topográfico, tendo como única referência (implícita) a restrição ao uso do habeas corpus nas transgressões disciplinares, cuja impetração estaria limitada aos casos em que fosse verificada a ausência de pressupostos formais .

O Primeiro Substitutivo deslocou a proibição de seu assento tradicional, entre os direitos e as garantias individuais em ordens constitucionais pretéritas, encampando-a no Capítulo destinado às Forças Armadas. O sintético preceito assim permaneceu ao longo dos trabalhos da Assembleia Constituinte até a promulgação da Constituição, vedando a concessão do writ em caso de punições disciplinares militares.

O Constituinte Ricardo Fiuza, relator da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, na Assembleia Constituinte de 1988, prescreveu a necessidade de subtrair o habeas corpus do regime jurídico militar:

O SR. RELATOR (Ricardo Fiuza): [...]

" Não caberá habeas corpus nas transgressões disciplinares militares. "

Este ponto foi polemico. Entendem alguns companheiros que o habeas corpus deveria haver dentro dos quartéis. Sr. Presidente, teríamos que modificar toda a Constituição, teríamos que tirar instituições permanentes e organizadas na base da hierarquia e da disciplina. Existe dentro das Forças Armadas e das polícias todo um elenco que permite a defesa dentro dos processos administrativos, seria inverter todo um processo, querer levar um procedimento da sociedade civil para uma sociedade que é composta de forma hierarquicamente organizada.

Posteriormente, foi sugerida emenda infrutífera segundo a qual não caberia quaisquer recursos à Justiça Comum para apreciar punições disciplinares, excluindo da apreciação do Poder Judiciário qualquer sanção castrense:

O SR. CONSTITUINTE ARNALDO MARTINS : - Sr. Presidente, Srs. Constituintes:

A nossa emenda é mais abrangente e diz que"não caberá habeas corpus,"somente no caso de habeas corpus. Colocamos que" não caberão recursos à justiça comum nas punições aplicadas em decorrência de transgressões disciplinares militares ", isto porque nos próprios regulamentos militares, o militar teria condições de utilizar a parte administrativa já prevista em seus regulamentos: De maneira que, nos casos de punições, não houvesse interferência de Justiça Militar, logicamente, nos casos de transgressões disciplinares militares. É claro que não estamos entrando em caso de crime, e, sim, nas transgressões disciplinares, e que existem, dentro das Forças Armadas e das forças auxiliares, os regulamentos próprios para que aqueles que se julgarem injustiçados possam recorrer.

O Poder Constituinte ainda enfatizou a autonomia da sanção

administrativa ao formulá-la como exceção às limitadas hipóteses de prisão (por flagrante delito ou por ordem judicial). Embora não constasse do anteprojeto, nem dos substitutivos, a exceção foi introduzida ao longo dos trabalhos. Várias emendas tentaram suprimir a expressão"judiciária"do dispositivo de forma a permitir que outras autoridades legalmente competentes também pudessem ordenar a prisão, recebendo inclusive parecer favorável do relator, mas a redação final acabou por acomodar tanto a reserva de jurisdição quanto a necessidade disciplinar. Os debates registrados em ata, contudo, não entraram no mérito da discussão:

O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães) - Como se vê, acrescenta-se, aqui, o crime e transgressões militares, principalmente. Informo à Casa que esse texto, que e apresentado à decisão soberana da Assembleia não envolve um compromisso geral e total das Lideranças.

Cada Partido, cada Bancada decidirá conforme entenda que melhor sirva à disciplina do assunto. Repito, não e uma emenda de entendimento geral. Deu-se uma oportunidade, com este texto, de o Plenário decidir sobre a matéria conforme a responsabilidade de cada Bancada, de cada liderança.

Em suma, a punição disciplinar que, em ordenamentos passados, era disciplinada no contexto normativo específico do habeas corpus passou a também caracterizar o regramento que limita a prisão à reserva de jurisdição e à flagrância.

A hierarquia e a disciplina, vetores constitucionais que legitimariam a aplicação de sanções disciplinares restritivas de liberdade, caracterizam tanto a atuação das Forças Armadas quanto das polícias militares e dos bombeiros militares, por expressa previsão constitucional. Conformam, pois, o regime jurídico aplicável a todos militares brasileiros, federais e estaduais.

Hierarquia pressupõe a organização escalonada das funções individualizadas. A disciplina denota a subordinação funcional. Esses princípios de organização se justificam por sua destinação à defesa da pátria e à garantia da independência nacional (art. 1º, I e art. 4º, I), dos poderes constitucionais e, excepcionalmente, por iniciativa destes, da lei e da ordem (art. 142 da CRFB/88).

(Mendes, Gilmar Ferreira; Streck, Lenio Luiz; Sarlet, Ingo Wolfgang; Leoncy, Léo Ferreira; Canotilho, J. J. Gomes. Comentários À Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013).

O Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80) já previa que os regulamentos disciplinares das Forças Armadas deveriam classificar as transgressões disciplinares e normatizar a aplicação das penas, limitando as sanções de detenção e de prisão ao prazo máximo de 30 dias.

Naquele contexto, ainda sob a ordem constitucional pretérita, o Decreto-Lei 667/69, em cujo bojo encontra-se o dispositivo impugnado, previa originalmente que as Polícias Militares deveriam ser regidas por regulamento disciplinar semelhante àquele editado para o Exército. Os regramentos a serem então positivados pelos estados, no âmbito de seus ordenamentos locais, deveriam refletir o regime aplicado aos militares federais.

Assim, a título de ilustração, tomando por base o atual Regulamento Disciplinar do Exército (R-4), que prevê punições" em ordem de gravidade crescente ", estabelecendo a detenção disciplinar e a prisão disciplinar como as últimas sanções a serem aplicadas antes do licenciamento e da exclusão, limitadas a 30 dias, tal também deveria ser a regulamentação em âmbito estadual.

Naquele contexto normativo, as polícias militares estavam subordinadas ao Exército. O Decreto 88.777/1983, responsável por estabelecer o Regulamento para as Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (R-200), ainda sob a ordem anterior, outorgou ao Ministério do Exército o controle sobre as polícias militares, abrangendo inclusive questões relacionadas à disciplina.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, os integrantes da

Polícia Militar foram qualificados originalmente como servidores militares estaduais. As ECs 18/1998 e 20/1998 retiraram-lhes a denominação de servidor, mas mantiveram seus integrantes na esfera de competência estadual, entendimento sufragado pela subordinação devida aos governadores estaduais.

As emendas estabeleceram diversos condicionamentos ao seu regime jurídico, entre os quais a necessidade de lei estadual específica regular diversos aspectos relacionados à carreira, deslocando matérias que, no tocante às Forças Armadas, são regulamentadas pela União, ao crivo do legislador estadual.

Decentralizou-se, portanto, ao estado-membro a competência para regulamentar o regime jurídico a ser aplicado aos membros da Polícia Militar, o que demonstra, como já exposto acima, que a norma impugnada invadiu a competência estadual para legislar sobre o regime aplicado à polícia militar ou simplesmente consubstanciou norma geral validamente positivada pela União.

Ressalte-se, que foi a própria Constituição Federal que estabeleceu a aproximação entre o regime jurídico dos membros das Forças Armadas e os membros das polícias e corpos de bombeiros estaduais.

A EC 18/1998 alterou integralmente a redação da Seção III, do Capítulo VIII, do Título III, da Constituição Federal, passando a denominá-la"Dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios"; além de alterar a redação de seu único artigo.

Dessa forma, a Constituição Federal passou a tratar em capítulos diversos os Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios ( CF, art. 42) e as Forças Armadas ( CF, art. 142). Antes mesmo dessa alteração, a organização e o regime único dos servidores públicos militares já diferiam entre si, até porque o ingresso nas Forças Armadas dá-se tanto pela via compulsória do recrutamento oficial, quanto pela via voluntária do concurso de ingresso nos cursos de formação oficiais; enquanto o ingresso dos servidores militares das polícias militares ocorre somente por vontade própria do interessado, que se submeterá a obrigatório concurso público. A citada EC 18/98 pretendeu equacionar essas diferenças, deslocando o tratamento jurídico-constitucional das Forças Armadas, somente para o art. 142 da Constituição Federal.

A própria Constituição Federal, porém, determina - EXPRESSAMENTE - a aplicação aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, das disposições previstas no art. 14, § 8º, no art. 40, § 9º, e no art. 142, §§ 2º e , pelos quais, como já assinalado, caberá à lei estadual especificar sobre o ingresso dos Militares dos Estados, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares dos Estados, consideradas as peculiaridades de suas atividades.

Importante apontar, igualmente, que foi por meio da EC 18/1998 que o texto constitucional passou a prever expressamente matéria já pacificada na doutrina e jurisprudência, sobre o não cabimento de habeas corpus em relação ao mérito das punições disciplinares aplicadas aos policiais militares bombeiros dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Por força desse enquadramento, tem-se que aos militares estaduais são proibidas a sindicalização e a greve, em face das funções a eles cometidas pela Constituição Federal, relacionadas a tutela da liberdade, da integridade física e da propriedade dos cidadãos, bem assinalado, portanto, que as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares são instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, e, segundo o art. 144, § 6º da CF, são forças auxiliares e reserva do Exército, subordinados aos Governadores.

Tem integral substrato constitucional, portanto, a atribuição de regime disciplinar diferenciado a esses agentes públicos, em vista da relação de especial sujeição às instituições que integram, as quais exigem critérios mais rigorosos para a manutenção da unidade e controle de seus efetivos, como expressamente reconhecido pelo texto constitucional.

Além disso, como já tive oportunidade de assinalar em outros

julgamento - como o ARE XXXXX, Rel. Min. EDSON FACHIN, Relator p/ acórdão Min, ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 05/04/2017 - os órgãos de segurança pública constituem o braço armado do Estado para a segurança pública, assim como as Forças Armadas são para a segurança nacional, mostrando-se evidente o paralelismo entre segurança interna e a segurança nacional. É de se frisar, portanto, que a atividade policial é carreira de Estado sem paralelo na atividade privada, o que a diferencia de várias outras atividades essenciais e justifica a necessidade de adoção de um regime disciplinar mais gravoso.

Portanto, o legislador ordinário não pode descaracterizar o perfil constitucional das instituições em questão, seu caráter militar, mitigando aspecto que o próprio texto constitucional atribuiu a instituições dessa natureza, qual seja, a possibilidade de prisão disciplinar.

Em vista do exposto, ACOMPANHO o Ministro Relator e julgo PROCEDENTE a Ação Direta, para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal 13.967/2019.

É o voto.

18/12/2021 PLENÁRIO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro em face do art. , VII, Lei Federal 13.967/2019, que alterou o artigo 18 do Decreto-lei 667/69, e vedou o uso disciplinar das medidas restritivas e privativas de liberdade no âmbito das policias militares e dos corpos de bombeiros militares.

Alega-se violação aos arts. 2º; 5º, inciso LXI; 18; 22, inciso XXI; 42, § 1º c/c 142, § 3º, inciso X; e 61, § 1º, inciso II, alínea f; todos da Constituição da Republica de 1988.

Sustenta-se, inicialmente, a inconstitucionalidade formal da lei por vício de iniciativa, tendo em vista tratar-se de lei de autoria parlamentar. Defende-se ser prerrogativa do Chefe do Poder Executivo de cada ente federativo a iniciativa de lei que trate do regime jurídico dos militares estaduais.

Argumenta-se que o dispositivo ora combatido vai além de estipular normas gerais sobre a organização e garantias dos policiais miliares e bombeiros militares ( CF, art. 22, XXI), avançando sobre matérias de competência do legislador estadual ( CF, art. 142, § 3º, X).

Aponta-se, ainda, haver vício de inconstitucionalidade material do do dispositivo impugnado, tendo em vista a previsão contida no art. , LXI, da Constituição, que trata da prisão de integrantes das corporações militares nos casos de transgressão disciplinar ou crime militar, definidos em lei. Tece-se considerações sobre a singularidade do regime militar que deve observância ao princípio da organização militar, estruturado sobre a hierarquia e disciplina.

Nesse sentido, defende-se que tais previsões são instituídas no interesse dos destinatários dos serviços de segurança pública e defesa civil, o que é reforçado pela previsão constitucional do não cabimento de habeas corpus em relação ao mérito das punições disciplinares que venham a restringir a liberdade de locomoção de seus apenados ( CF, art. 142, § 2º).

Pugna-se, ao final, pela declaração de inconstitucionalidade do inciso VII do art. da Lei 13.967/2019.

Prestadas informações pela Presidência da República e pelo Senado Federal, a Advocacia-Geral da República manifestou-se pela improcedência do pedido. A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, opinou pela inconstitucionalidade do dispositivo vergastado.

O Ministro Ricardo Lewandowski, Relator, traz voto pela procedência do pedido, por entender configurados os vícios formais e materiais alegados na inicial. No mesmo sentido do Relator, votou o Ministro Alexandre de Moraes.

Acompanho também o Relator quanto ao mérito da presente ação direta de inconstitucionalidade.

De fato, entendo configurado o vício formal de iniciativa alegado, por invasão de competência do chefe do Poder Executivo dos Estados para tratar sobre regime jurídico de seus servidores militares.

Isso porque o dispositivo impugnado não dispõe sobre normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação ou mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares dos Estados ( CF, art. 22, XXI), vindo a adentrar em matéria de organização administrativa dos entes federados, ao descer em minúcias referentes à proibição da aplicação de uma medida disciplinar específica aos servidores militares estaduais e distritais.

Há jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal Federal, no sentido

de que a iniciativa de lei que trate do regime jurídico dos servidores militares estaduais e distritais é reservada ao Chefe do Poder Executivo local, por força do art. 61, § 1º, II, f, da Constituição Federal.

Cito, a propósito, além dos precedentes citados pelo il. Relator, as ADIs 2.966, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Dj 6.5.2005; ADI 858, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 28.3.2008; ADI 2.102, Rel. Min. Menezes Direito, Dje 21.8.2009; ADI 5.075, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 8.9.2015; e ADI 4.590, de minha relatoria, Dje 25.6.2021.

Acompanho também o Relator quanto à apontada inconstitucionalidade material do dispositivo.

A Constituição Federal reservou aos policiais militares e bombeiros militares um regime jurídico diferenciado àquele destinado aos servidores públicos civis, tendo em vista não apenas a relevância de suas atividades para a garantia da segurança pública e da defesa civil, mas também os seus valores estruturantes, fundados na hierarquia e disciplina, impostas aos militares para o atendimento da supremacia do interesse coletivo sobre os particulares.

Não por outro motivo que a própria Constituição Federal prevê medidas restritivas de liberdade aos militares por motivos disciplinares, ressalvando, da garantia prevista no art. 5º, LXI, os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

Esse regime diferenciado também se evidencia na restrição imposta ao Judiciário em apreciar o mérito das questões atinentes às punições disciplinares militares, conforme previsão do art. 142, § 2º, da Constituição Federal.

Diante do exposto, acompanho integralmente o Min. Relator quanto à procedência do pedido.

É como voto.

PLENÁRIO

EXTRATO DE ATA

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595

PROCED. : DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

Decisão: Após os votos dos Ministros Ricardo Lewandowski (Relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que julgavam procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal nº 13.967/2019, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Plenário, Sessão Virtual de 10.12.2021 a 17.12.2021.

Composição: Ministros Luiz Fux (Presidente), Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Nunes Marques.

Carmen Lilian Oliveira de Souza

Assessora-Chefe do Plenário

23/05/2022 PLENÁRIO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595 DISTRITO FEDERAL

VOTO-VISTA

O Senhor Ministro Dias Toffoli (Relator):

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, com pedido liminar, por meio da qual se impugna o art. , inciso VII, da Lei nº 13.967/2019, o qual extinguiu a pena de prisão disciplinar no âmbito das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares.

Eis o teor da norma vergastada:

"Art. O art. 18 do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 18. As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina, aprovado por lei estadual ou federal para o Distrito Federal, específica, que tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Disciplina Militares, observados, dentre outros, os seguintes princípios:

[...]

VII - vedação de medida privativa e restritiva de liberdade "(grifo nosso).

Anteriormente à Lei nº 13.967/2019, vigia a redação original do art. 18 do Decreto-Lei nº 667/1969, que tinha o seguinte teor:

"Art. 18 As Polícias Militares serão regidas por Regulamento Disciplinar regido à semelhança do Regulamento

Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada Corporação."

O julgamento do presente feito foi iniciado em sessão do Plenário Virtual, ocasião em que o Relator, Ministro Ricardo Lewandowski , votou pela procedência do pedido para declarar a inconstitucionalidade formal e material do diploma legal em epígrafe.

Pedi vista do autos para melhor refletir sobre a matéria.

Após reexaminar detidamente o caso, não encontro razões para dissentir do eminente Relator.

De fato, a Lei nº 13.967/2019, cuja norma central foi acima transcrita, padece de vícios formal e material .

No tocante ao primeiro aspecto, verifica-se que a norma questionada decorre de projeto de lei de iniciativa parlamentar, enquanto a orientação jurisprudencial da Suprema Corte é firme no sentido de ser reservada ao chefe do Poder Executivo local a iniciativa para dispor sobre o regime jurídico dos servidores militares estaduais, por força do art. 61, § 1º, inciso II, alínea f, da Constituição, que constitui norma de observância obrigatória pelos demais entes federados (v.g., ADI nº 858, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski , DJe de 28/3/08; ARE 657.984- AgR-Terceiro, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes , DJe de 9/4/15; ADI nº 4.928, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio , redator do acórdão Ministro Alexandre de Moraes, DJe 2/2/22).

Quanto ao vício material, importa observar que os servidores militares estaduais, dada a relevância de sua missão e a natureza peculiar de suas atribuições, submetem-se a um regime jurídico diferenciado, que está fundado nos princípios da hierarquia e da disciplina, nos termos dos arts. 42, caput, e 142, caput, da Constituição. Vide:

" Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina , são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios "(Redação dada pela Emenda (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998).

"Art. 142 As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina , sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."

Nas palavras de José Afonso da Silva:

"Hierarquia é o vínculo de subordinação escalonada e graduada de inferior a superior. Ao dizer-se que as Forças Armadas são organizadas com base na hierarquia sob a autoridade suprema do Presidente da República, quer-se afirmar que elas, além da relação hierárquica interna a cada uma das armas, subordinam-se em conjunto ao Chefe do Poder Executivo federal, que delas é o comandante supremo (art. 84, XIII).

Disciplina é o poder que têm os superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores. Correlativamente, significa o dever de obediência dos inferiores em relação aos superiores. Declarar-se que as Forças Armadas são organizadas com base na disciplina vale dizer que são essencialmente obedientes, dentro dos limites da lei, a seus superiores hierárquicos (...).

‘Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, às ordens, normativas e individuais, emanadas dos órgãos superiores’. A disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica"(Curso de Direito Constitucional Positivo , 17a Ed., São Paulo: Forense, 1999).

Ou seja, as instituições castrenses são marcadas pela verticalidade das relações entre seus servidores e pelo primado do pronto atendimento do dever por todos eles. E é a partir de tais premissas que se estabelece o regime jurídico militar com todas as peculiaridades que lhe são próprias.

E não poderia ser diferente. Conforme explica Jocleber Rocha Vasconcelos:

"Seria extremamente desastroso deixar pessoas, que sofrem derrogações em inúmeros direitos, capacitados e treinados para o combate, com amplo acesso ao manuseio de informações, armamentos e equipamentos de alto poder destrutivo, desprovidas de normas repressivas eficazes. Nesse ponto, as regras de hierarquia e disciplina militar impõem um caráter educativo e ao mesmo tempo repressivo, possibilitando a manutenção ou restauração do padrão almejado.

Em sede específica do poder punitivo do Estado, o corolário é a previsão nos diplomas legais de um sistema disciplinar mais recrudescido, inclusive no que toca às punições. A restrição da liberdade deixa de ser, portanto, sob uma ótica mais ampla, uma simples violação de garantia individual para se tornar um mecanismo necessário de eficiência da força militar."(Elementos para a interpretação constitucional da prisão disciplinar militar. Revista Jus Navigandi, ISSN , p. 1518-4862).

Vale consignar, outrossim, que a ordem constitucional inaugurada em 1988 não repudiou a pena de prisão de militares pelas transgressões disciplinares. Pelo contrário. Ao dispor que"ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei"(art. 5º, inciso LXI), a Constituição da Republica autorizou, de forma expressa, a prisão de militares pela transgressão das regras a que estão sujeitos por determinação de seus superiores hierárquicos.

O sistema disciplinar militar é fortalecido, ainda, pela proibição constitucional do manejo de habeas corpus contra punições disciplinares militares (art. 142, § 2º).

Pelo exposto, voto pela procedência do pedido formulado na presente ação direta, acompanhando o Ministro Relator.

PLENÁRIO

EXTRATO DE ATA

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.595

PROCED. : DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

Decisão: Após os votos dos Ministros Ricardo Lewandowski (Relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que julgavam procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal nº 13.967/2019, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Plenário, Sessão Virtual de 10.12.2021 a 17.12.2021.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade formal e material da Lei Federal 13.967/2019, nos termos do voto do Relator. Plenário, Sessão Virtual de 13.5.2022 a 20.5.2022.

Composição: Ministros Luiz Fux (Presidente), Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e André Mendonça.

Carmen Lilian Oliveira de Souza

Assessora-Chefe do Plenário

Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1624467353/inteiro-teor-1624467383

Informações relacionadas

Tribunal Regional Federal da 2ª Região
Jurisprudênciahá 6 anos

Tribunal Regional Federal da 2ª Região TRF-2 - Apelação: AC XXXXX-57.2015.4.02.5101 RJ XXXXX-57.2015.4.02.5101

Jurisprudênciahá 2 anos

Poder Judiciário do Estado do Acre TJ-AC - Direta de Inconstitucionalidade: ADI XXXXX-59.2022.8.01.0000 AC XXXXX-59.2022.8.01.0000

Rafael Kolonetz, Advogado
Modeloshá 3 anos

Modelo simples - Recurso Administrativo - Prova objetiva - Resultado preliminar

Superior Tribunal Militar
Jurisprudênciahá 4 anos

Superior Tribunal Militar STM - Recurso em Sentido Estrito: RSE XXXXX-62.2019.7.00.0000

Superior Tribunal Militar
Jurisprudênciahá 3 anos

Superior Tribunal Militar STM - Habeas Corpus: HC XXXXX-74.2020.7.00.0000